quarta-feira, 28 de outubro de 2009

"Nem só para lavar a roupa eles serviam"

(...) Não me recordo do dia. Sei que tínhamos chegado muito recentemente a Moçambique, mais concretamente ao Planalto dos Macondes e tendo a C.CAÇ. 3309 sido destacada para o Aquartelamento de Tartibo.
Lembro-me que nesse dia eu ia integrado num Pelotão da Companhia de Caçadores 3309 que saíra do Aquartelamento de Tartibo com destino à picada, esperar por uma coluna de reabastecimento que acabara de sair de Pundanhar, vinda de Palma com destino a Nangade. A operação era meramente rotineira, sendo idêntica às que se efectuavam diariamente.
Saímos de Tartibo, sempre pela mata com destino a um determinado quilómetro, para fazer a picagem de parte do itinerário para que a coluna de reabastecimento chegasse o melhor e o mais rápido possível a Nangade e sem incidentes ou minas.
Depois de o Pelotão ter picado vários quilómetros, de apanharmos com um sol abrasador, com a água a esgotar-se e depois de várias paragens para descansar e esquecendo o conselho dos mais velhos, exausto, procurei a sombra de uma árvore sem medir as consequências de como por vezes "eram traiçoeiras aquelas sombras".
Foi quando me aproximei de uma árvore para descansar um pouco que o meu Mainato (1) que transportava a bolsa de enfermagem exclamou muito assustado:
- "Mina óé!!!...nosso Cabo, mina óé! -Então, com toda a cautela necessária naqueles momentos, recuei muito devagarinho e colocando sempre os pés nas pegadas que tinha deixado para traz, lá me afastei do local banhado em suores que me inundavam o corpo.
De facto, era uma mina anti-pessoal armadilhada com um fornilho, e quem o confirmou foi o Furriel Diamantino da nossa Companhia e que ainda não tinha sido destacado para os GEs.
Com uma faca de mato, ele raspou nas bordas do rectângulo que mal se notava no chão e, olhando-me fixamente, exclamou bastante aliviado:
- "Pareces bruxo", - Se não fosse o Mainato lerpavas que nem um tordo.
Depois de isolada e ter sido colocado um petardo e acrescentado alguns metros de fio, a referida mina e o respectivo fornilho foram rebentados à distância fazendo uma enorme cratera no chão.
Aquele Mainato (que para além de participar connosco nas operações também lavava a roupa aos soldados no Aquartelamento) de que já não me recordo do seu nome mas que era bastante novato com cerca de 15 anos de idade, com aquele acto de que lhe estou imensamente grato, "parecia ser de Olhão e jogar no Boavista", ao descobrir dissimulado no meio do capim todo aquele engenho explosivo, tendo-me salvo daquilo que seria mais que certo; - que seria a amputação de uma ou de ambas as pernas, dos "TIN-TINS" (2) e eu sei lá de que mais...
Actualmente, e passados que são cerca de 38 anos do ocorrido, reconheço que fui bastante ingrato com aquele Mainato que me salvou, ao não saber mais nada dele.
Mas a guerra era assim; muito injusta... muito injusta...

Manuel Inácio Cardoso
ex- 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem da Companhia de Caçadores 3309
Beiriz - Póvoa do Varzim
28 de Outubro de 2009
(1) Nativos que eram contratados para participar em operações com as nossas tropas, para o carregamento das bolsas de enfermagem e do rádio de transmissões.
(2) Testículos

Foto 1: O Cardoso em 1971 no Aquartelamento de Tartibo, assistindo ao reabastecimento por helicóptero de víveres. Em destaque a sua foto actual.
Foto 2: O Cardoso posa para a fotografia no Aquartelamento de Nova Torres, dentro de um barco de fibra capturado pela Companhia de Caçadores 3309 à FRELIMO, em 25 de Junho de 1971 numa operação no rio Rovuma.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Na sua deslocação em serviço à República de Moçambique, o meu amigo João da Rocha teve a amabilidade e a feliz lembrança de me perguntar, através de um mail que me enviou daquele país, o seguinte: - Sabendo ele dos meus gostos pela leitura, nomeadamente por livros de documentação histórica, - perguntou-me se eu pretendia alguma coisa dele já que se encontrava por aquelas terras banhadas pelo Índico.
Aproveitando aquela disponibilidade, perguntei-lhe se me poderia ver numa das livrarias de Maputo (cidade onde se encontrava a fazer um trabalho relacionado com as eleições em curso e que o levou àquele país) se conseguiria encontrar um livro que descrevesse o conflito colonial mas segundo o ponto de vista dos Moçambicanos, mais concretamente da FRELIMO, que sempre classificaram (o que alguns de nós entendíamos como sendo a Guerra do Ultramar) como Guerra de Libertação Nacional.
Antes de regressar, enviou-me novo mail confirmando que na prestigiada livraria MINERVA CENTRAL (que fizera 100 anos em 2008) encontrara o livro que eu pretendia.
Regressado a Portugal no passado dia 22 de Outubro e deixando a minha encomenda em casa da sua mãe (a minha grande amiga MATILDE que trabalhou comigo na Indesit Company) lá me desloquei a Setúbal para adquirir aquela preciosidade histórica, e acrescentá-la à minha razoável mas já vasta biblioteca pessoal.
A respectiva obra intitula-se "II Congresso da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Memórias de Raimundo Domingos Pachinuapa", ex-guerrilheiro da FRELIMO e actual Tenente General na reserva.
Ainda não li a presente obra, mas apenas por a ter folheado considero que é um excelente documento, devidamente ilustrado com fotografias tiradas nas Zonas Libertadas ou em operações de guerrilha efectuadas pela FRELIMO no Planalto dos Macondes, na Província de Cabo Delgado, onde a minha Companhia, a Companhia de Caçadores 3309 também desenvolveu a sua actividade operacional.
Por se tratar de uma obra de grande importância histórica para a compreensão do conflito colonial segundo a perspectiva de quem nós portugueses combatíamos e considerávamos inimigos, esporádicamente irei nas páginas deste blog descrever algumas passagens da mesma, acompanhando a sua descrição com algumas das fotos que a ilustram.
Ao meu amigo João da Rocha o meu obrigado por se ter disponibilizado em "vasculhar" na MINERVA CENTRAL aquele livro que é uma obra de grande importância documental, mas também o meu agradecimento por ter transformado aquela encomenda que eu estava a pensar pagar o seu custo (era essa a condição) em oferta, apesar da mesma ter custado 300,00 METICAIS e, estranha curiosidade (a que em Portugal ainda não nos habituaram) isenta de IVA.
Carlos Vardasca
26 de Outubro de 2009
Foto: Capa da obra, "II Congresso da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) Memórias de Raimundo Domingos Pachinuapa".
Nota: O II Congresso da FRELIMO foi realizado de 20 a 25 de Julho de 1968, em Matchedje, na província de Niassa. Moçambique.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O meu protesto em forma de indignação

Caros amigos
Em resposta ao comentário do meu amigo António Filipe, Ex-Enfermeiro da Companhia de Caçadores 3311 (Batalhão de Caçadores 3834) aproveito para vos dizer a todos vós que também estou profundamente indignado com a alteração efectuada pelo actual governo ao Suplemento Especial de Pensão dos ex-combatentes da Guerra Colonial.
Eu inicialmente recebia 185,70€ e este ano só recebi 150,00€. Portanto, é mais que justo considerar que foi um roubo de 35,70 € que o actual governo me fez, assim como à grande maioria dos ex-combatentes da Guerra Colonial, ao dividir os ex-combatentes em três escalões e colocar como escalão máximo os 150,00€, no que resultou numa redução substancial em todos eles.
Parece que não, mas foram uns largos milhares de Euros que o governo arrecadou nos seus cofres, dinheiro esse usurpado do esforço de guerra de milhares de ex-combatentes, em prol de uma Elite que vive sempre à “sombra do orçamento” e que sempre comeu “à volta da mesma gamela”.
Eu sei que esta verba é uma ninharia que para muitos de nós “nem aquece nem arrefece” e que seria muito mais bem empregue se fosse aplicada em favor daqueles que ainda hoje sofrem os efeitos da guerra e continuam desprezados pelas instituições, mais bem necessitados do que nós, que vivem com uma reforma de miséria, e o que viesse deste Suplemento Especial de Pensão (agora substancialmente reduzido) seria mais um aconchego para aliviar uma pequena parte das suas carências.
No entanto, e apesar de reconhecer a realidade descrita no início do parágrafo anterior, não deixo também de considerar de que se tratou de um roubo aquilo que o governo fez aos ex-combatentes da Guerra Colonial.
Eu penso que isto merecia um violento protesto por parte dos ex-combatentes, não com o objectivo de que nos seja restituída essa verba, mas que o montante total arrecadado em resultado das reduções efectuadas seja aplicado na assistência medicamentosa e apoio social aos ex-combatentes que dela necessitam, e vivam em condições degradantes em função do seu grau de deficiência motivado pela guerra.
O que acham? Que pensam sobre esta questão?
Um abraço a todos

Carlos Vardasca
Ex-combatente
Da Companhia de Caçadores 3309
(Moçambique 1971-1973)
Foto: Acidente de guerra na picada de Maniamba. Vila Cabral. Moçambique

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Quando o seu silêncio nos perturbou...

Nome do "Almada" (1) inscrito no Mural em homenagem aos combatentes falecidos na
Guerra Colonial. Belém, Lisboa.
O "Almada" aos nove anos de idade, e (de lenço negro ao pescoço) junto do Serrinha da C.CAÇ. 3309 e do "João Azeitão" da C.CAÇ. 2703 mo Aquartelamento de Pundanhar. Moçambique.

O "Almada" (o segundo a contar da esquerda) antes de ter falecido em combate, junto dos três enfermeiros que mais tarde, nos dias 1 e 2 de Outubro de 1971 lhe prestaram assistência (sem êxito) no dia do ataque da FRELIMO ao Aquartelamento de Tartibo em 01 de Outubro de 1971.

O "Almada" (o segundo a contar da esquerda, em baixo) junto
de camaradas da C.CAÇ. 3309 no Aquartelamento de Nova Torres. No dia seguinte ao ataque da FRELIMO ao Tartibo, o corpo do "Almada" chega no
helicóptero ao Hospital de Mueda. Moçambique, 02 de Outubro de 1971.

Aquartelamento de Tartibo onde a C.CAÇ. 3309 sofreu o seu mais
violento ataque ao Aquartelamento e onde veio a falecer o "Almada".

Um dos vários estilhaços de Morteiro 82mm que foram retirados do corpo do "Almada".

Primeira página do relatório do ataque da FRELIMO ao Aquartelamento de Tartibo.

Depoimento do Serrinha, ex- 1º Cabo Atirador da C.CAÇ. 3309 sobre o dia do ataque onde veio a
falecer o "Almada".
Depoimento do Cardoso, ex- 1º Cabo Enfermeiro da C.CAÇ. 3309 sobre a assistência prestada ao
"Almada" no dia do ataque a Tartibo.

Depoimento do Silva, ex- 1º Cabo Enfermeiro da C.CAÇ. 3309 sobre o ocorrido no dia do
ataque a Tartibo onde veio a falecer o "Almada".

(1) Pedro Manuel Gaspar Augusto (natural de Lisboa mas residente em Almada) 1º Cabo Atirador NM 13619570 da Companhia de Caçadores 3309, falecido em combate no dia 02 de Outubro de 1971 em virtude dos graves ferimentos resultantes do ataque da FRELIMO ao Aquartelamento de Tartibo no dia 01 de Outubro de 1971.

In: Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas. História da Companhia de Caçadores 3309. Moçambique 1971-1973.

Um abraço solidário de quem sobreviveu

Carlos Vardasca