quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

"Foi há 38 anos, num natal tão distante"

Postal de Natal enviado do Aquartelamento de Nangade para os meus pais. Natal de 1971
Aquartelamento de Nangade (Cabo Delgado) 24 de Dezembro de 1971
Na foto: Alguns dos elementos da C.CAÇ. 3309 destacados em Nangade (da esquerda para a direita) Soldado Mecânico Lobo, 1ºs Cabos Mecânicos Silva e Rita, um Furriel da CCS do Batalhão de Artilharia 2918, 1º Cabo Condutor Nascimento, Soldado Cozinheiro Agostinho, Soldados Condutores Braz (eu) Saavedra, Almeida e Pereira. Aquartelamento de Tartibo (Cabo Delgado) 24 de Dezembro de 1971
Na foto: Alguns dos elementos da C.CAÇ. 3309 destacados em Tartibo (Da esquerda para a direita) Soldados de Transmissões Serrano e Carlão, Furriel Miliciano Gabriel, Alferes Miliciano Martins, Furriel Miliciano Barbudo e Soldado Atirador Moreira.
Aquartelamento de Balama. 24 de Dezembro de 1972 (Festa de natal) Já numa zona operacional mais tranquila e a três meses de regressarmos à "Metrópole".
Na foto: (Da esquerda para a direita) Furriel Miliciano Arlindo, 1º Cabo Atirador Pinto, Soldado Condutor "Foz" (Até hoje desconhece-se o seu paradeiro) e Soldado Condutor Pereira (já falecido)
(...) Ainda o helicóptero vinha no ar e já um dos pilotos, que era a primeira vez que ali se deslocava, dizia, estupefacto, olhando para aquele minúsculo aquartelamento circundado por montes de areia em todo o redor do seu perímetro defensivo:
- Porra! - Estes tipos até parece que os enviaram para ali de propósito para morrer.
Decorria o ano de 1971 e uma reportagem da RTP deslocava-se ao Aquartelamento de Tartibo para fazer a gravação das mensagens de natal aos militares ali estacionados.
Era de facto um minúsculo aquartelamento onde a Companhia de Caçadores 3309 se instalou em 30 de Setembro de 1971, depois de dias antes, no dia 03 do mesmo mês ter conquistado aquele espaço à FRELIMO, onde esta organização guerrilheira detinha uma pequena base camuflada por entre o arvoredo.
Enquanto os outros dois pelotões procediam a operações de reconhecimento nas imediações, os restantes soldados que se encontravam dentro do perímetro do aquartelamento já se alinhavam em fila indiana, ensaiando o seu discurso que, mesmo sendo curto, iria ser visto nos écrans de televisão espalhados por cidades, vilas e aldeias de um país que "teimava em manter um império" e que se via a braços com um conflito colonial que já durava à cerca de 13 anos e que parecia não ter fim à vista.
De barba que não via a lâmina há vários dias, com o fardamento meio rasgado, de mãos trémulas, de olhar triste e cansado mas prenhe de ansiedade e com uma vontade enorme em falarem para os seus ente queridos bem distantes, os soldados faziam um esforço soltando frases que surgiam desarticuladas, outras apagadas pelo nervosismo e por vezes incompletas, tal era a pressa dos operadores de televisão e dos próprios pilotos em se verem livres daquele local o mais rápido possível, não fossem eles também participar de um combate que a todo o momento poderia surgir do interior da mata circundante.
As breves e sentidas palavras das Mensagens de Natal dirigiam-se essencialmente aos pais, noivas e restantes familiares, terminando num mecanizado "adeus até ao meu regresso" mas já com o microfone nas mãos do soldado seguinte.
No final, e perante a ausência do Comandante da Companhia, o Capitão Miliciano Hélio Moreira, foi o Alferes Miliciano Barros que fez as "honras da casa" ao lembrar os soldados que não puderam estar presentes na gravação, enviando em seu nome "as boas festas e um próspero ano novo".
Com a partida do helicóptero que escureceu todo o aquartelamento com uma nuvem de poeira, quem ali tentava sobreviver voltou de novo ao isolamento que lhes fora imposto, enquanto aquelas câmaras levavam dentro de si alguns sorrisos contidos pelo medo, mas que iriam proporcionar momentos de felicidade a quem, numa aldeia distante e debruçado no alguidar das filhoses ansiava por notícias de quem fora enviado para aquelas terras distantes, "onde a guerra calava mais fundo e tornava o seu regresso cada vez mais incerto (...)
Carlos Vardasca
23 de Dezembro de 2009

"Outros combates que a todos nós compete travar"

In: Jornal "PÚBLICO" de 22 de Dezembro de 2009

Mais uma vez os países ricos impuseram a sua vontade. Até quando?

domingo, 20 de dezembro de 2009

"Uma linda missão em tempo de guerra" (Parte 2)

Não sei porquê, e talvez pela curiosidade e o interesse que despertou o texto editado anteriormente, lembrei-me de novo do Morais, recordando outro episódio que fez parte da nossa convivência enquanto estivemos juntos em Nangade, episódio aliás já divulgado neste blog em 05 de Janeiro de 2008, sob o título “Vale sempre a pena começar de novo” e que volto a publicar, para que se compreenda o porquê da evolução da vida de Morais após ter terminado a sua Comissão em Moçambique.

“Vale sempre a pena começar de novo”

(…) Acabado de chegar a Nangade, em rendição individual em substituição de um soldado da CCS do Batalhão ali estacionado e falecido em combate, meio perdido e sem conhecer ninguém, Morais refugiava-se todas as noites no abrigo feito "tasca" e ali tentava estabelecer novas amizades.
De aspecto meio rude e um pouco envergonhado, por vezes levava a "Laurentina" (1) para fora do abrigo e ali se saciava, sem contudo conseguir estabelecer qualquer conversação. Um dia, e porque estranhei aquele comportamento, afastei-me dos meus camaradas da Companhia e fui ter com ele fora do abrigo, forçando um diálogo que ainda hoje não me arrependo de o ter iniciado.
Morais já me dissera anteriormente que não sabia ler nem escrever, contando-me a sua angústia por o terem enviado para tão longe, e logo na altura que deixara na terra a sua mulher grávida de seis meses. A partir dos vários momentos que nos fomos encontrando fomos ficando amigos e, percebendo o porquê de tanto sofrimento, ofereci-me para lhe escrever as suas cartas e ler as que viessem da "Metrópole".
Foi de facto uma experiência muito gratificante que passei na guerra colonial, principalmente quando lhe li (entre tantas outras de igual significado) uma carta que lhe anunciava o nascimento do seu filho e observei a felicidade espelhada no seu rosto. Cada vez que chegava o helicóptero com o correio, ele corria à minha procura para lhe ler aquelas minúsculas letritas (como era hábito dizer) e, quando sabia que eu estava no mato envolvido em colunas de reabastecimento, ele guardava as cartas (preferindo não as dar a ler a mais ninguém) até que eu regressasse ao aquartelamento.
Por várias vezes aconteceu, tendo ele recebido correspondência da sua Albertina e ter que ir no mesmo dia para o mato integrado no seu Grupo de Combate, eu apenas tinha tempo de lhe ler as cartas, ao que ele me dizia, depois de me ter dado algumas sugestões para a resposta:
- Olha Braz, tu lês a carta e respondes mediante aquilo que eu te disse, mas quanto às mariquiçes (como costumava dizer em relação aos aspectos mais afectivos) fica ao sabor da tua imaginação. Quando regressava do mato e eu lhe lia aquilo que escrevera para ser enviado no helicóptero da tarde, ele dizia fascinado:
- Epá Braz, isto está mesmo bonito: - até parece que ela é que é a tua mulher.
Um dia lembrei-me de lhe dizer porque é que não ia aprender a ler e a escrever, pois um alferes do Batalhão tinha transformado uma pequena palhota em escola, e ali dava aulas aos miúdos da população nativa. Muito envergonhado disse-me:
- Eu! para o meio dos pretos aprender a ler? - Que vergonha.
Morais tinha como opinião de que os miúdos da escola eram inferiores a ele devido à cor da pele e, por isso (debaixo de um sentimento que exibia uma falsa superioridade) recusava-se a dar o primeiro passo, embora sentisse essa necessidade. Sem o querer ofender, decidi "ferir" o seu orgulho dizendo-lhe:
- Superior tu? - Eles é que são superiores a ti porque sabem duas línguas (a portuguesa e o seu dialecto local) e tu apenas sabes a tua e mal, e não a sabes escrever nem a ler:
Foi "remédio santo". No dia seguinte e todos os outros que ia tendo disponibilidade, lá estava ele à porta da palhota (agora escola), junto com outros soldados que também decidiram aprender as primeiras letras, exibindo os livros que nunca teve e que o trabalho árduo do campo não os deixou ler.
O Morais acabou a sua Comissão primeiro que eu e veio mais cedo para a "Metrópole" e, para meu espanto e quando a minha Companhia estava a fazer o espólio no RAL 1 em Lisboa, alguém me toca no ombro e me diz:
- Então amigo, ainda bem que também regressaste! - Era o Morais que, sabendo que a minha Companhia chegava a Lisboa naquele dia, se deslocou de Vilar dos Ossos para me cumprimentar, sem contudo não perder a oportunidade de me deixar um pouco envergonhado, virando-se para a mulher dizendo-lhe:
- Olha Albertina, era aqui o Braz que te escrevia as cartas: - acrescentando:
- Foi ele o teu "namorado" enquanto eu estive lá na guerra. Ao que Albertina respondeu de uma forma tão singela e impregnada de ruralidade:
- Obrigado senhor, por me ter ajudado a ser tão feliz durante a ausência do meu Morais.
Actualmente, e por ter continuado a estudar afincadamente desde que chegara da guerra, Morais é um médico com algum prestígio naquelas pequenas aldeias mais recônditas da Freguesia onde habita, pois ali se desloca com uma "assiduidade militante" já muito rara entre os da sua profissão, conduzindo um velho Opel por caminhos onde o desenvolvimento tarda em chegar, recebendo por vezes em troca alguns parcos haveres arrancados à terra por gente "já gasta de tanto cansaço" (...)

Carlos Vardasca
05 de Janeiro de 2008

(1) Marca de cerveja de Moçambique.
Foto: Coluna de reabastecimento na picada entre Pundanhar e Nangade, vendo-se o Morais sentado ao lado direito no pára-brisas da segunda Berliet.

sábado, 19 de dezembro de 2009

"Uma linda missão em tempo de guerra" (Parte 1)

Nunca me tinha visto naquela situação. Apesar de tudo, foi uma experiência única que ainda hoje recordo como sendo a mais linda missão em que me envolvi em tempo de guerra, e que me deu a oportunidade de partilhar e receber uma extraordinária lição de vida.
Tudo aconteceu no ano de 1971, em plena Guerra Colonial e quando a Companhia de Caçadores 3309 de que eu fazia parte foi destacada para o aquartelamento de Nova Torres
[1], tendo alguns de nós por motivos operacionais ficado estacionados em Nangade[2].
Acabado de chegar em rendição individual para substituir um seu companheiro falecido em combate, o Morais, oriundo da aldeia de Vilar dos Ossos, chegara a Nangade num dos períodos mais conturbados do conflito colonial, e quando a FRELIMO desencadeava uma das ofensivas mais intensas após a Operação “NÓ GÓRDIO” e desde o início da sua luta armada de libertação do jugo colonial.
Sem saber ler nem escrever, e depois de algumas tentativas em se socorrer de quem o fizesse para se manter em contacto com a família (mas que por esse facto fora alvo de alguma chacota), o Morais
[3] refugiava-se no fundo do abrigo que nos servia de tasca e onde afogávamos as saudades da distância, sempre meio amargurado, emborcando copos de bagaço uns atrás dos outros, iluminado por uma luz muito ténue que os geradores a muito custo lá conseguiam emprestar àquele recanto, que também nos servia de refúgio quando o aquartelamento era atacado.
Estávamos em finais de Novembro do ano de 1971 e aproximava-se o mês do natal.
Ao descer para o abrigo, logo me dirigi ao pequeno balcão e me fiz acompanhar de uma Laurentina
[4] que me ajudou muitas vezes a saciar a secura das noites tropicais e, ao aperceber-me da presença do Morais num dos seus recantos, acerquei-me dele apesar de o conhecer muito recentemente, perguntando-lhe o porquê de tanta tristeza.
Encharcado em álcool o que tornava o seu vocabulário um pouco desconjuntado, cedo me apercebi dos motivos da sua angústia e de imediato me prontifiquei a erradica-la das suas preocupações, oferecendo-me para lhe escrever e ler a sua correspondência enquanto ele estivesse naquele aquartelamento.
Na noite seguinte, voltámo-nos a encontrar no abrigo (agora já decorado por um pequeno arbusto coberto por várias latas de cerveja vazias que substituíam as bolas de natal) e mesmo ali delineei os contornos do que viria a ser (na opinião do Morais, que me confessou mais tarde), uma das mais lindas prosas de natal que a sua jovem mulher (que deixara grávida de seis meses na Metrópole) já recebera.
Numa extraordinária experiência que muito gratificante se tornou para mim do ponto de vista humano, tornei-me, durante a permanência do Morais naquele aquartelamento seu confidente, lendo e escrevendo as cartas recebidas ou enviadas de e para os seus familiares, tendo especial significado os vários aerogramas
[5] que em seu nome escrevi para a sua mulher e as imensas cartas por mim lidas que esta lhe enviava.
Elaborado o rascunho, isolei-me na caserna e aí acertei os contornos finais do que tinha sido alinhavado no abrigo, imprimindo-lhe todo o vocabulário usual entre duas pessoas que se amavam e bruscamente separadas pela distância “sem jeito nem prosa”.
Sem nutrir qualquer simpatia pelo vocabulário litúrgico da época natalícia e sem dominar toda aquela fraseologia mercantilista e sazonal, esmerei-me no entanto em aplicá-la, socorrendo-me do que me fora inculcado aos oito anos de idade pelas freiras no colégio em S. João do Estoril, onde a minha relação com deus e com tudo o que se relacionasse com o foro religioso começou desde muito cedo a ser muito conflituosa, apesar de uma parte da minha educação ter sofrido aquele tipo de influência que ainda hoje considero ter-me sido imposta.
O helicóptero só vinha buscar o correio pelas onze horas da manhã e, mesmo ali junto da secretaria do seu Batalhão e “numa espécie de cerimónia que se assemelhava à largada de um pombo de correio” e antes de fechar o aerograma, fiz questão de lhe ler o que escrevera durante a noite com base no que fora acordado no fundo do abrigo, mas, claro, com algumas alterações que ajudaram a embelezar e a enriquecer o texto do ponto de vista sentimental e até mesmo religioso, o que foi do agrado do Morais, dado que desde criança se habituara às lamurias e ladaínhas do Pároco da sua aldeia.
Á medida que eu ia soletrando as breves linhas impressas pela minha SHEAFFER
[6] e que se acotovelavam no pequeno aerograma, os olhos do Morais não se descolavam dos meus lábios, insistindo para que voltasse a ler algumas das frases que considerava serem de uma beleza extrema, mas que o trabalho árduo do campo nunca permitiu que as aprendesse a exprimir.
Reparei sempre, no final da leitura de cada aerograma que lhe escrevia, que o seu rosto transpirava de alegria, exteriorizando uma certa fascinação pelo que acabara de ouvir.
― Porra Braz! Escreves tão bem! ― Quando a minha "miúda" receber este aerograma vai ficar tão feliz com as coisas lindas que escreveste:
― Até parece que és tu o marido dela
― Acrescentando, excessivamente emocionado:
― Como é que tu, que dizes não acreditar em deus nem nestas coisas do natal, e consegues escrever coisas tão lindas que até parece que andaste no seminário?
Foi de facto uma experiência muito gratificante e muito intensa do ponto de vista emocional, dado que em certos momentos cheguei a partilhar o calor afectivo trocado entre aquele companheiro e a sua jovem esposa, ao ponto de ambos termos por várias vezes chorado quando se tratava de responder ou ler algo mais pessoal e que mexesse bem fundo nos seus afectos.
De cada vez que o Morais recebia correspondência, lá vinha ele ter comigo sempre com o mesmo sorriso rasgado que transbordava de felicidade, mesmo que já tivesse recebido as cartas há alguns dias, ao que eu lhe dizia:
― Olha lá Morais! ― Então porque é que nestes dias que eu estive no mato não deste a ler a tua correspondência a outro soldado? ― Ao que ele respondia denotando alguma indignação, lembrando-se da chacota de que já fora alvo:
― Eu já não confio nessa malta; ― Eu não me importo de esperar mais um dia ou outro, mas as cartas lidas e escritas por ti têm outro sentido.
Quando na semana seguinte o helicóptero voltava ao aquartelamento de Nangade e no saco do correio trazia alguma carta da sua mulher, o Morais corria apressado de caserna em caserna à minha procura, por vezes perante a risota de alguns militares que presenciavam a sua azáfama e gracejavam em tom jocoso:
― Vai! ― Corre a contar-lhe os segredos da “tua Maria” e quando deres por ela já ele te roubou a tua miúda.
Indiferente aos gracejos, sentava-se ao meu lado debaixo de um cajueiro muito próximo do Obus 14
[7], olhando em redor certificando-se se mais ninguém estava presente, rasgando ele próprio uma das extremidades do envelope enquanto exteriorizava o seu contentamento:
― Olha! ― Pelo tipo de letra parece ser da minha Albertina.
Era deveras interessante vê-lo quase que a soletrar as frases que lhe ia lendo, como se as quisesse mastigar muito lentamente para lhe tomar bem o gosto.
Por vezes (e muito em particular uma das cartas que recebera naquele mês de natal de 1971) cheguei a ler a sua correspondência repetidas vezes e durante vários dias, tal era a necessidade do Morais em recordar os momentos de felicidade que aquelas cartas transportavam dentro de si (gabando excessivamente a minha paciência), dizendo-me por vezes, bastante emocionado e com algumas lágrimas a escorrerem-lhe pela face:
― Eu sei que não acreditas na existência de deus nem passas cartucho nenhum ao natal, mas olha amigo Braz:
― Deixa-me pelo menos e só por um bocadinho, “vender o meu peixe”:
Deus te pague ― Eu e a minha Albertina
[8] nem sabemos como te agradecer por nos teres proporcionado momentos tão felizes neste natal de 1971.

Carlos Vardasca
19 de Dezembro de 2009

[1] Aquartelamento das nossas tropas situado junto ao rio Rovuma, na fronteira de Moçambique com a Tanzânia.
[2] Aquartelamento situado no Planalto dos Macondes, a cerca de vinte quilómetros do rio Rovuma.
[3] Depois de ter acabado a sua comissão em Moçambique, o Morais dedicou-se aos estudos. Actualmente é um médico muito estimado pela sua simplicidade com que presta assistência nas aldeias vizinhas da sua terra, recebendo em troca, dos aldeãos mais carenciados, pequenos parcos haveres em produtos agrícolas como forma de pagamento das consultas que efectua.
[4] Marca de cerveja Moçambicana.
[5] Pequeno impresso distribuído pelo Movimento Nacional Feminino (MNF) que se enviava por correio aéreo, sem necessidade de sobrescrito ou qualquer custo para o seu envio, usado pelos militares destacados na Guiné, Angola e Moçambique durante a Guerra Colonial.
[6] Marca da minha esferográfica.
[7] Peça de artilharia pesada que fazia parte das defesas do aquartelamento.
[8] O Morais e a Albertina, depois de aquele ter concluído a sua comissão em Moçambique fortaleceram o seu casamento (que ainda hoje perdura) com o nascimento de mais dois filhos, para além daquele que nascera ainda o Morais estava a cumprir a sua comissão em Moçambique.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

"Ninguém morre besuntado de azeite"

(…) Em data que não consigo lembrar-me, num fim de tarde, chegou ao Aquartelamento de Tartibo antigo (Nova Torres) uma coluna de abastecimentos. Não me perguntem se a coluna correu bem ou mal, não faço a mínima ideia. Do que eu me lembro bem é que nesse dia não se conseguiu arrumar todo o material transportado, ficando a maior parte em pilhas junto do depósito de géneros e da secretaria. Aconteceu que nessa noite, depois de passada a “hora Maconde” resolvi procurar o escriturário para abrir a porta da secretaria para ir lá escrever umas cartas e talvez algum aerograma. Lembro-me que com o escriturário veio outro militar de que não consigo lembrar-me. Lembro-me também de que à porta da secretaria se encontrava a poucos metros um Unimog 404 parcialmente descarregado de bidões de vinho e azeite.
Estávamos na secretaria todos os três, bem calados, a escrever, eu, o escriturário e o outro militar acima referido, quando caiu bem perto dali uma morteirada. Fora da secretaria estava tudo às escuras, mas a reacção dos nossos Obuses de artilharia não se fez esperar e começaram logo a bater todos os pontos prováveis de ataque. Eu abriguei-me de imediato debaixo do Unimog 404 e suponho que o escriturário e o outro militar fizeram o mesmo.
Lembro-me como se fosse hoje, comecei a sentir que estava molhado numa das pernas. Apalpei e tive na altura a sensação de que estaria ferido porque confirmei que estava mesmo molhado, com um líquido quente e pegajoso e receei que naquele momento tinha chegado o meu fim. Presumo que desmaiei e a certa altura dei por mim quando alguém me puxava por uma perna e perguntava:
- “… meu capitão, meu capitão, está ferido?
- “Respondi que não, mas só depois de confirmar a minha integridade física dos braços e das pernas. Verifiquei no fim que não perdi sequer uma gota de sangue e que apenas me encontrava sujo de terra e azeite ou óleo alimentar ainda quente devido à exposição ao sol deste produto durante o percurso da coluna e que na altura se derramou por não se encontrar o bidão bem fechado, ou por efeito de algum estilhaço. Não indaguei por motivos óbvios por se tratar de uma história pouco edificante (...)

Hélio Augusto Moreira
ex-Capitão Miliciano NM 36048760 da Companhia de Caçadores 3309
Linhares, 06 de Janeiro de 2005

In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". História da C.CAÇ. 3309. Moçambique 1971-1973, página 191, Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009.

Foto 1: O Capitão Miliciano Hélio Augusto Moreira (em primeiro plano com uma garrafa de cerveja na mão) na companhia de: (da esquerda para a direita) Saavedra (Soldado Condutor), Pepino (Soldado Corneteiro), Costa (Furriel Vague Mestre), Leite (Soldado Condutor), "Françês" (Soldado Cozinheiro) e do Cardoso (1º Cabo Auxiliar de Enfermagem), num petisco onde se comemorava o 1º aniversário da C.CAÇ. 3309. 24 de Janeiro de 1972.
Foto 2: O Capitão Miliciano Hélio Augusto Moreira, na companhia do Alferes Mendes (Checa) e dos Furrieis Milicianos Felisberto João de Almeida Costa (Vague Mestre) e José Maria Ferreira da Silva (Enfermeiro), quando almoçavam no Aquartelamento de Nova Torres, 28 de Junho de 1971.
(Em destaque uma foto actual do autor do texto).

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

“Quem me dera que a tropa fosse sempre assim ...”

(...) Tínhamos atravessado o rio Metumbué, afluente do rio Rovuma, para a instalação do novo aquartelamento no Tartibo, na margem direita daquele rio, já que na esquerda vislumbrávamos a Tanzânia e o nosso inimigo. Tudo isso nos deixou de rastos, — corpos desnudos num calor infernal.
Arrastávamo-nos cambaleantes, pois não existiam pontes nem barcaças.

Não sei como nem porquê, ficámos especados naquele imenso matagal. O resto da malta já havia destroçado para o aquartelamento.
E nós, meia dúzia de gatos-pingados, ficáramos ali não sei se esquecidos ou como guardas do
material que ainda ali ficara. Com muito medo e muito capim à nossa volta, perplexos e exaustos, desconhecedores da picada, perguntámos:
— E agora?
Sair dali era perigo iminente, a emboscada espreitava a cada passo, embora fossemos portadores duma G3.
— E o material?
O calor abrasava e a sede apertava. Beber água do Metumbué era suicídio certo; esta água era imprópria para lavar roupa…
— “Eureka”! — gritou alguém que no meio daquele material vislumbrou uma pipas amontoadas por entre o material. Era vinho.
Bebemos… e tanto bebemos que nos esquecemos de deixar de beber… depois, vendo vários trilhos, orientámo-nos pelo do meio anteriormente recalcado pelos nossos camaradas.
G3 às costas ou a tiracolo. Posição de tiro “nem pó”… risos provocados pelo elixir de Baco e a descontracção natural de qualquer turista de visita a terras de África.
Chegado ao aquartelamento (cerca de seis quilómetros) dirigi-me mais ou menos sóbrio ao Capitão e perguntei-lhe o porquê de tanta demora. Tínhamos sido esquecidos …
Recebemos uma menção honrosa pelo nosso destemor. No dia seguinte foram buscar o resto do material. Entre nós (os esquecidos e ainda estupefactos pela nossa pseudo-ousadia) houve alguém que comentou:
— Quem me dera que a tropa fosse sempre assim (…)

João da Silva Arteiro
ex-Soldado Condutor Auto Rodas NM 15393470 da Companhia de Caçadores 3309
Vila do Conde, 27 de Abril de 2007


Foto: João da Silva Arteiro na secretaria da C.CAÇ. 3309 em Nangade (1971) na companhia do 1º Sargento de Infantaria NM 50037311, Joaquim Eduardo Carvalho Barreto (falecido em 1975) e do Soldado dos Serviços Gerais NM 07013070, Albino dias de Sousa (em último plano na foto) falecido em combate em 20 de Julho de 1971 em virtude de um rebentamento de uma mina anti-carro no Unimog 404 onde seguia, conduzido pelo 1º Cabo Condutor Auto NM 11694170, Victor Manuel da Silva (também da C.CAÇ. 3309) que veio a falecer, assim como os restantes oito ocupantes da viatura, na sua totalidade trabalhadores agrícolas que se deslocavam para as machambas junto ao rio Litinguinha nas "Águas" do Aquartelamento de Nangade. (Em destaque uma foto actual do autor do texto).

In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". História da Companhia de Caçadores 3309. Moçambique 1971-1973, página 189.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

"Outros combates a que não resistimos"

Pedido de divulgação
Caros Amigos,
É com pesar que ajudo na divulgação da notícia do falecimento do José do Nascimento Rodrigues, além de amigo do coração, trata-se dum lutador que perdeu a batalha da vida.
Principal organizador dos Convívios do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 32, da Viagem a Moçambique, do Movimento Cívico de Antigos Combatentes e outras actividades sociais, era um empresário amigo dos seus colaboradores.
O velório efectuar-se-à a partir das 17,00 horas de hoje, na Igreja da Charneca da Caparica (junto às bombas da GALP) e o funeral às 08,30 horas de Sexta-Feira, seguindo para Aguiar da Beira, sua terra natal.
Caros amigos e camaradas Pára-quedistas
É com pesar que vos informo que o nosso camarada e amigo José Nascimento Rodrigues faleceu hoje, depois de dolorosa e prolongada doença.
Os que o conheceram sabem que era um homem bom, lutador de causas nobres, amigo dos desfavorecidos a quem ajudava sem regatear esforços.
Era seu desejo que quando partisse, os velhos camaradas da boina verde (que ele tinha sempre na mesa de cabeceira do hospital), soubessem da sua última viagem. É isso que estou a fazer ao dar-vos conhecimento desta triste notícia. Se puderem reencaminhar e divulgar esta informação pelos Páras que o conheceram, fico-vos agradecido.

Até sempre!
António Brito