quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Uma noite na aldeia (conto)

Já se previa um inverno rigoroso. O manto de neve que cobria todo o distrito de Chaves há muito que também branqueava os campos em redor da aldeia de Moure, o que era sempre motivo de preocupação para os seus habitantes.
Os pastos rareavam. As cabras que era hábito a Gracinda (1) levar para o pastoreio já raramente saíam do estábulo, e o telhado coberto de neve já não fumegava pelos intervalos das placas de ardósia mas apenas pela velha chaminé, onde o odor daquela sopa gordurosa juntava à mesma mesa a frágil adolescência de Gracinda e os restos de saudade que consumiam a mãe, que ainda chorava a ausência do marido em parte incerta, e a angústia de quem mal tinha forma nem como gerir os parcos dinheiros que moldavam a sua pobreza.
Bastante agasalhada, acabada de chegar do forno comunitário da aldeia onde fora buscar o pão amassado pela Ana dos Currais, fascinada por tanta iluminação e depois de transpor o arvoredo que circundava a casa de quem, sendo médico em Lisboa apenas ali vinha ficar em épocas festivas, Gracinda abeirou-se de uma das janelas e ali ficou estupefacta, contemplando maravilhada a enorme árvore de natal e um amontoado de papéis de embrulho já rasgados que se espalhavam por toda a sala, depois de terem envolvido o que era agora o fascínio das crianças daquela numerosa e abastada família.
Já passava da meia-noite e a Gracinda antes de regressar a casa ainda foi dar de comer ao gado, acariciar uma das cabras que estava prestes a ter cria e espalhar algum feno pelo chão do estábulo para o tornar ainda mais confortável para os animais, tendo tempo ainda de passar pela casa da vizinha Cordoeira, certificando-se se o lume da lareira estava apagado, aconchegar-lhe os cobertores ao corpo e fazer-lhe um pouco da companhia que à muito se viu privada desde que o marido, operário da construção civil, falecera de forma trágica num acidente de trabalho num dos bairros de Paris.
Sozinha com a mãe, no meio de quatro paredes iluminadas por uma candeia de azeite que projectava as suas sombras na rudez das pedras de granito, Gracinda olhava inerte para a lareira e para o caldeiro de onde fumegava o mesmo odor que há muito lhe dava o sustento.
Enquanto a mãe Florinda (2) ainda esbracejava num alguidar para amassar o resto da massa dos cuscurões, Gracinda, de olhos abrilhantados pelo lume da lareira, lembrava a enorme árvore de natal da casa do médico que não lhe cabia dentro do casebre, imaginando-se criança e a brincar com os brinquedos que não vira mas que idealizava bonitos, a avaliar pela beleza dos papeis de embrulho que agora jaziam amarrotados num dos caixote do lixo.
Atenta que estava aos sons que viessem do outro lado das paredes da casa, ao menor sinal que lhe soou Gracinda correu apressada para o estábulo onde se iniciara o parto de mais um caprino, ajudando ao seu nascimento, aligeirando as dificuldades da velha cabra que soltava bramidos de dor.
Exausta, e depois de ter avisado a mãe que iria ficar no estábulo nessa noite para vigiar o animal que acabara de nascer, Gracinda, sentindo-se frágil mas inundada de felicidade, enroscou-se numa velha manta e aconchegou-se junto do pequeno cabrito de quem grande parte da noite não desviou o olhar, acariciando-o com a mesma ternura como se fora um brinquedo que nunca recebera, acabando por adormecer enquanto recordava todos momentos em que nunca tivera tempo para brincar.
No dia seguinte e de regresso ao trabalho do campo na companhia da mãe, Gracinda mais uma vez acabou por verificar que afinal tudo estava tal e qual como dantes, apesar do pároco da aldeia anunciar todos os anos que o mundo iria mudar “com o nascimento do menino”.

Carlos Vardasca
21 de Dezembro de 2008
In: “Tempos Inquietos 2”, páginas 63, 64. 21 de Dezembro de 2008.

(1) Gracinda da Conceição Correia Braz Vardasca (minha mãe)
(2) Florinda Correia (minha avó materna)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O que faz o "Héli" aqui?

Na foto podem ver-se da esquerda para a direita: Os Soldados de Transmissões Serrano e Carlão, Furriel Gabriel, Alferes Martins, Furriel Barbudo e o 1º Cabo Escriturário Nunes. Aquartelamento de Tartibo. Norte de Moçambique. Natal de 1971
O seu roncar já se ouvia à distância, e todos pensavam que se tratava apenas de mais uma passagem com outro destino, dado que naquele dia não estava previsto qualquer abastecimento ao Aquartelamento de Tartibo (1) .
Estávamos no ano de 1971, e faltavam poucos dias para o natal, quando o helicóptero sobrevoou o aquartelamento, pousando de imediato na clareira que fazia de campo de futebol.
A curiosidade apoderou-se de todos os militares ali presentes que rodearam o “Héli” (2) como se fossem formigas em redor de um torrão de açúcar.
Vá malta, vamos lá afastarmo-nos para facilitar a descarga dos abastecimentos ― Disse o capitão Hélio (3) , que entretanto chegara ao local um pouco rabugento:
Só queria saber quem são os cabrões que têm o hábito de cada vez que o helicóptero sobrevoa o aquartelamento se põem a berrar “olha o Hélio, olha o Hélio” ― O que provocou a risada geral.
Quando as portas se abriram é que todos os presentes verificaram que aquela “máquina voadora” não transportava desta vez caixas de cerveja nem sacos de batatas, mas uns estranhos passageiros que berravam intensamente e que durante a viagem já tinham empestado e conspurcado o interior do helicóptero.
Para nosso espanto, os “digníssimos passageiros” eram cinco belos cabritos que o nosso Vague Mestre (em conluio com as chefias da Manutenção Militar em Porto Amélia) nos quis brindar por altura do natal, como forma de fazermos uma breve pausa na já intragável ementa que oscilava entre o arroz com peixe ou o peixe com arroz.
Sem se aperceberem da sua sorte, os pobres bichos tiveram uma estadia no aquartelamento muito curtíssima, pois o natal estava mesmo ali “ao virar da esquina”, mas também porque a nossa voracidade em os tragar se sobrepôs a todos os afectos que lhes fomos dedicando nos dias em que se foram mantendo amarrados a uma das tendas à espera do “juízo final”.
Indiferentes ao que de facto lhes aconteceu, os cabritos naquela noite de natal jaziam já esquartejados, bem tostados em encardidos tabuleiros, acompanhados por batatas que devido à escuridão no interior das tendas não se adivinhavam estarem tão queimadas, mas que deixavam espaço para que no molho que as engordurava fossem mergulhados pequenos pedaços de caraças tão mal enjeitadas, que de imediato eram regadas até a saciedade por “Laurentinas” e “2M” (4) , que cumpriam a sua missão de refrescar gargantas gastas pelo cansaço, ressequidas pelo medo e o isolamento, mas também pela saudade de quem tão distante aguardava pelo seu regresso.
Assim se passou o natal de 1971, felizmente distante, mas tão próximo de nós quando ainda hoje recordamos os nossos companheiros que tombaram em combate, “sem jeito nem prosa”.

Carlos Vardasca
20 de Dezembro de 2011

(1) Aquartelamento situado na Província de Cabo Delgado (norte de Moçambique) junto à fronteira com a Tanzânia.
(2) Abreviatura de helicóptero.
(3) Hélio Augusto Moreira, capitão da Companhia de Caçadores 3309, de quem se fazia alguma chacota de cada vez que vinha ao aquartelamento um helicóptero, devido à semelhança do seu nome com a abreviatura daquela aeronave.
(4) Marcas de cerveja de Moçambique.