terça-feira, 16 de junho de 2009

Exemplos que marcam os heróis

Depois de ter abandonado o Aquartelamento de Nova Torres devido às cheias, e ter aberto em 25 de Setembro de 1971 um novo aquartelamento a que se deu o nome de Tartibo, a Companhia de Caçadores 3309 finalmente foi rendida, com a chegada a este Aquartelamento de dois Grupos de Combate da Companhia de Artilharia 3506 em 03 de Fevereiro de 1972.
Por razões de ordem táctica, de 14 a 20 de Junho de 1972 inicia-se a Operação "INTEGRAL" comandada pelo Capitão Barros (1) onde participaram 2 Grupos de Combate desta Companhia, com o objectivo de fazer protecção às máquinas de Engenharia na abertura do itinerário entre Tartibo e as coordenadas (1059-3959) onde foi aberto o novo Aquartelamento de Muidine. Entretanto, 2 Grupos de Combate desmontaram a Aquartelamento de Tartibo, carregaram e transportaram todo o material da Companhia em coluna-auto para Muidine onde a Companhia de Artilharia 3506 ficou instalada, onde Grupos de Combate da Companhia de Caçadores 3309 ali se deslocaram por variadíssimas vezes em missão de protecção, mais concretamente o 3º Grupo de Combate que ali permaneceu de 23 de Setembro a 25 de Outubro de 1972.
É neste contexto, e no período de rendição da C.CAÇ. 3309 pela C.ART. 3506 que em Março de 1972 ocorre algo insólito, que comprova o espírito de camaradagem existente entre os soldados em teatro de guerra, mesmo que os actos de coragem sejam exercidos em circunstâncias também adversas, mas em que o inimigo não é a FRELIMO mas o próprio meio natural. Por ser um acto louvável, digno de registo e um exemplo que marca os heróis, passo a transcrever a seguinte Ordem de Serviço emanada do Batalhão de Artilharia 3876, que louva a acção do 1º Cabo Luís Filipe Lopes Gomes, da Companhia de Artilharia 3506:

(...) Que em treze de Junho de 1972, foi louvado o 1º Cabo NM 01535171 Luís Filipe Lopes Gomes, porque no dia dezasseis de Março de 1972, tendo-se oferecido voluntário para uma patrulha de barco no rio Metumbué, quando o grupo em que seguia foi atacado por um enxame de abelhas selvagens, ataque esse em que as abelhas se contavam por milhares e durou cerca de seis horas, deu mostras de abnegação e força de vontade surpreendentes.
Apesar de ser dos mais atingidos, quando viu que o seu comandante de Companhia já estava praticamente sem forças e estando todos metidos dentro do rio, esteve durante perto de duas horas a segurar fora de água a cabeça do Comandante de Companhia impedindo que o mesmo se afogasse. Quando mais tarde, depois do sol pôr no regresso rio acima, num barco em condições muito deficientes, foi ainda o 1º Cabo Gomes quem com muito sacrifício, apesar de gravemente doente e praticamente sem ver, conduziu o barco rio acima até à Companhia, podendo dizer-se sem receio de exagero, que se deve à sua actuação não ter havido consequências mais graves.
Demonstrou o 1º Cabo Gomes grande admiração, espírito de sacrifício e espírito de camaradagem, pelo que é digno de ser louvado e apontado como exemplo a seguir por todos os seus camaradas (...)

(Ordem de Serviço nº 112 de 13 de Junho de 1972 do Batalhão de Artilharia 3876)


In: Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 3877. História da Companhia de Artilharia 3506, 3º Fascículo, período de 25 de Maio de 1972 a 25 de Junho de 1972, páginas 2 e 3. Arquivo Histórico Militar de Lisboa, 2008.

(1) Gabriel Monteiro Magno de Barros, Capitão da Companhia de Artilharia 3506 (de alcunha o "Capitão Pistolas") falecido em 28 de Abril de 1992.
Foto 1: Mapa da localização do Aquartelamento de Muidine. (Cedido pelo ex-Alferes Miliciano Bernardino Cassiano da Companhia de Caçadores 4243, que foi render a Companhia de Artilharia 3506 a Muidine). No mesmo mapa estão assinalados com uma cruz, os locais e as datas do falecimento em combate de militares da Companhia daquele ex-Alferes.
Foto 2: Vista aérea do Aquartelamento de Muidine, vendo-se no canto inferior direito uma extensa lângua onde as nossas tropas se abasteciam de água. No topo da foto pode ver-se o rio Rovuma e as montanhas da Tanzânia.
Foto 3: 1ª Secção do 3º Grupo de Combate da Companhia de Caçadores 3309 comandada pelo Furriel Leite (o único que não está em tronco nu), quando esteve em missão de protecção no Aquartelamento de Muidine.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Que Império?


Que Império ?

Este país que mais amo,
mais houvera, não sentia igual,
oh...que descobertas tão mentidas
como te sentes pequeno Portugal.

Vestiste África por medida
fixas-te valores que não eram teus,
iludiste a tua identidade,
colonizaste os filhos meus.

Impuseste a opressão colonial
amordaçando a voz que não era tua,
mergulhaste no silêncio das viúvas
mentiste, secas-te o suor de quem sua.

Fizeste embarques triunfais
de tropas famintas por desertar,
com mulheres acenando ao vento,
sob peso de botas a marchar.

Regressaste de África nu,
a tudo perdeste o direito,
com o saco das vitórias vazio
nas viúvas a angústia no peito.

Hoje choras com saudade
a orgia colonial que findou,
Portugal, que lindo és
tão pequeno tão saudável,
tão país que ficou.

Esta é a dimensão real
pedaço térreo que somos,
p´ra quê fingir...que Império ?
se colonizados sempre fomos.

Carlos Vardasca
10 de Junho de 2009
Foto de Alfredo Cunha

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Aquartelamento de Nova Torres. Onde a dignidade sobreviveu enlameada

(...) No dia seguinte, e após a chegada às margens do rio rio Metumbué onde os aguardava um dos pelotões da Companhia de Artilharia 2745 que ali tinham chegado em barcos pneumáticos ou a nado, para garantir a segurança da coluna no resto do percurso até ao aquartelamento de Nova Torres, foi aquele momento saudado por todos os presentes como se aquele local fosse a meta de uma qualquer prova desportiva e, exaustos, famintos e extenuados pela noite mal dormida, os soldados depois de sacudirem o pó que acumularam e lhes encardiu as entranhas, finalmente iriam repousar um pouco naquela terra cor de tijolo que ficava a cerca de vinte e cinco quilómetros de Nangade.
Meio desbotada, erguida num tronco de uma árvore que parecia seca, adormecida, flutuava uma bandeira já esfarrapada onde o verde e o vermelho já não brilhavam nem davam expressão a uma presença prenhe de conquistas que embelezaram uma expansão salpicada de massacres, mas que ali assinalava o aquartelamento improvisado
[1], que parecia adormecido entre vários intervalos, que se misturavam entre a beleza da paisagem e o sentimento estranho de quem acaba de chegar e não pretende perturbar a tranquilidade que aparentemente parecia ali reinar, e o ambiente desolador que se vivia naquela frente de batalha, com o aquartelamento de Nova Torres (situado entre dois rios) totalmente inundado pela junção das águas dos rios Rovuma e do Metumbué devido às chuvas torrenciais que se abatiam naquela zona na época das chuvas.
Num breve olhar por todo o aquartelamento que se situava num pequeno morro para evitar a sua inundação, não fora a guerra e as fardas camufladas dos soldados que por ali vagueavam enlameadas por entre todo o material bélico, parte dele submerso, Nova Torres, que ficava a poucos metros de distância dali, assemelhava-se ao Éden propagandeado por qualquer vulgar panfleto religioso. Na cor barrenta das águas do Rovuma emergiam por vezes hipopótamos e crocodilos desconfiados pela presença humana que há muito lhes interrompia a tranquilidade, enquanto pequenos troncos de árvores navegavam no seu leito transportando pequenos pássaros que faziam uma pausa no seu trajecto ao sabor da corrente. No céu, pincelado de um cinzento tumultuoso, esvoaçavam em formação desordenada várias espécies de aves, que num processo migratório acabavam de chegar ao que consideravam ser sua casa e, com o seu piar inquieto, pareciam estar incomodadas com uma presença que há muito consideravam estranha naquelas paragens (...)


In: "Fardados de Lama", páginas 51 e 52. Carlos Vardasca. Alhos Vedros 2008.

[1] A que foi dado o nome de código de “Posição DAMA”, que viria também a ser inundada obrigando as tropas ali estacionadas a abandonar aquela posição e refugiarem-se numa outra elevação e aí montar novo aquartelamento provisório a que se denominou “Posição FLECHA”.
Foto 1: Aquartelamento de Nova Torres. Nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia. Moçambique 1971.
Foto 2: Aspecto geral do Aquartelamento de Nova Torres antes das inundações. 1971.
Foto 3: Totalmente alagado, o Aquartelamento de Nova Torres apresentava este aspecto desolador. Na foto está o 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem NM 05802970, António da Silva Azevedo da Companhia de Caçadores 3309. Moçambique 1971.
Foto 4: Outro aspecto do Aquartelamento totalmente alagado, vendo-se na foto o Soldado Atirador NM 08857867, Luís Joaquim Mendes (de alcunha o "Noivo da Morte") da Companhia de Caçadores 3309, falecido em 1994. Nova Torres 1971.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

"Numa viagem de ida, sem volta"

(...) O Niassa passava agora defronte do Forte do Bugio que, na sua majestuosidade, assemelhava-se a um “guerreiro que na barra do Tejo luta contra as invasões muçulmanas”, protagonizadas pelas ondas alterosas que se “esmagavam contra as ameias do castelo”, defendido por um faroleiro que olhava o tabuleiro de xadrez equacionando a próxima jogada, defrontando à distância um outro faroleiro sitiado nas Ilhas Berlengas.
Estava um frio intenso e Braz permanecia no convés protegendo-se com o cachecol aconchegado ao pescoço, e uma manta velha que foi buscar à sua cama no porão.
Sentado e profundamente pensativo, mergulhando na angústia de quem parte sem ter a certeza de poder voltar, rabiscava num pequeno bloco pequenos apontamentos versados, dando largas a uma imaginação prenhe de tragédia, quadras soltas que o vento não conseguira arrancar do seu imaginário.
O balancear compassado do navio emprestava um ambiente fúnebre nas hostes militares, sentindo alguns que a terra lhes fugia debaixo dos pés, imaginando-se na companhia dos seus familiares na apanha da batata ou, como o Nabais, que fixava demoradamente a espuma branca das ondas através de uma das vigias redondas, recordando as fugas por entre os montes e vales próximos de Meimoa, junto à fronteira, em esconderijos por ele construídos na mata densa da Serra da Malcata enganando a Guarda Nacional Republicana.
Enquanto traficava alguns quilos de café e tabaco na Estremadura espanhola, em paralelo, Nabais também fazia passar a monte gente humilde que do outro lado das fronteiras ia “chafurdar” na opulência dos outros, apanhando no seu regaço as migalhas que sobravam das suas mesas fartas, dormindo em “bidon-villes” a troco de algumas moedas arrancadas à custa de muito cansaço e ingratidão, mas que ajudariam a construir lá longe na terra abandonada aos velhos, às jovens esposas carentes e às crianças famintas, um sonho feito de argamassa, que iria ser habitado por gente gasta pelo tempo, paredes meias com uma felicidade adiada, feita defunta pelo trabalho quase forçado em terras de França.
Indiferente à maresia que se fazia sentir e aos esporádicos farrapos de espuma das ondas que salpicavam o convés, o lápis, empunhado por mãos frágeis, trémulas, ligeiramente debilitadas por um corpo amarelado feito prisioneiro do enjoo, embalado pela ondulação descompassada, prosseguia na sua cruzada, imprimindo naquele papel húmido algumas prosas e quadras que não seriam rasgadas pela censura personificada pela agressividade do mar.
No folhear desordenado do pequeno caderno quadriculado onde decalcava as suas incertezas, Braz ainda foi encontrar meio perdido, entrelaçado no emaranhado de linhas azuis que se cruzavam num papel amarelecido pelo tempo, algo que escrevera três anos antes, quando assistia do alto do jardim defronte do Museu de Arte Antiga debruçado sobre a 24 de Julho, à partida da Gare Marítima da Rocha de Conde de Óbidos de contingentes de tropas para a guerra, quando ainda não sabia vir a ser um dos actores de uma mesma peça cuja encenação era previsível (...)

Navios que partem indiferentes
sequiosos por sulcar o mar.
Nos porões homens exaustos,
angustiados, expulsos do lar.

Lenços levantados da dor
de uma separação inesperada,
Cais da Rocha, lágrimas sem rosto
por uma partida forçada.

África no horizonte,
ecoam estrondos de revolta,
corpos silenciados, vencidos,
numa viagem de ida, sem volta.

In, "Fardados de Lama", páginas 21, 22 e 23. Carlos Vardasca. Alhos Vedros 2008

Foto 1: Os Furrieis Neves, Barbudo e Leite, na companhia do Alferes Martins, todos da C.CAÇ. 3309, a bordo do navio Niassa quando este já navegava em pleno Atlântico. Janeiro de 1971.
Foto 2: Elementos da C.CAÇ. 3309 em formatura, para se ensaiar medidas de salvamento a bordo do navio Niassa. Na foto podem ver-se, entre outros, o Valoura, Óscar, Pepino, Serrano, Vieira, Ruben e o Sousa (que viria a falecer em combate) e o Furriel Arlindo, na frente da formatura. Janeiro de 1971.