sexta-feira, 22 de maio de 2009

Diário de um "CHECA"

(...) Após ter partido de Pundanhar às 07,00 horas, a coluna de reabastecimento tivera o primeiro incidente por volta das 07,30 horas com o rebentamento de uma mina anti-carro na roda traseira de uma Berliet.
A Berliet minada (de matrícula ME-70-66) ia em segundo lugar na coluna, logo a seguir ao Rebenta Minas, e quem a conduzia era o Lopes da Companhia de Caçadores 3309 que não sofrera nenhum ferimento, e que, por acaso, tal como eu, era a primeira vez que tinha ido para a picada participar numa coluna de reabastecimento. Daquele rebentamento apenas ficou ferido um soldado que, com o impacto da mina foi projectado para o ar e caiu em cima da carga (bidons de gasóleo) tendo sido assistido pelo enfermeiro que passou por mim, tal como o mecânico que se apressou a atrelar a Berliet para seguirmos rapidamente viagem, antes que fosse desencadeada alguma emboscada por parte da FRELIMO.
Já passava das 13,00 horas, e como a coluna não havia meio de iniciar o seu andamento, aproveitei, sai da minha viatura e fui ver a dimensão do buraco que a mina tinha feito na picada assim como os estragos que fizera na viatura minada.
Depois de ter batido a zona com o morteiro de 60mm, e quando o soldado desta especialidade passava por mim, de repente deu-se um novo rebentamento e eu fiquei com a cara e os olhos cheios de areia, tendo um dos soldados que também estava o meu lado apanhado com um pedaço de bota do soldado Africano que transportava o morteiro e que acabara de accionar uma mina anti-pessoal tendo ficado sem uma perna.
Quando olhei para o lado e no meio de toda aquela poeirada e confusão, é que vi que o africano tinha a perna cortada pelo joelho, e tinha um pedaço de osso à mostra sem carne que arrastava pela areia da picada, tendo ficado logo estendido no chão com o peito e a cara cheios de sangue.
Nesse dia eu parecia que andava maluco, pois o rebentamento foi mesmo ali a uns dois metros de mim tendo a minha arma sido projectada para o outro lado da picada.
Dirigi-me para a minha viatura e não mais saí de lá, estando sempre ao sol que queimava como lume.
Depois de retirarem alguma carga da Berliet minada e de a tirarem do buraco, tendo sido rebocada até Pundanhar, aos 12 quilómetros deste Aquartelamento voltaram a rebentar duas minas anti-carro (com a distância de 50 metros uma da outra) que feriram os dois condutores que conduziam as respectivas viaturas, tendo sido evacuados por helicóptero que se deslocou à picada (...)

Manuel Teixeira Gonçalves (1)
Soldado Condutor Auto Rodas NM 17679170
da Companhia de Caçadores 3309
17 de Novembro de 1971

in, Diário da Vida Militar. Páginas 23 e 24. Moçambique 1971.
(1) Foi integrado na Companhia de Caçadores 3309 em rendição individual, quando esta já se encontrava no Aquartelamento de Nova Torres, junto ao rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia.
Foto 1: O Gonçalves (mais conhecido por Lixa) junto a uma Berliet minada com uma inscrição para impressionar os "CHECAS" (2). Aquartelamento de Pundanhar. Norte de Moçambique,1971.
Foto 2: O Gonçalves junto a um abrigo de protecção contra ataques de morteiro 82 mm. Aquartelamento de Nangade. Norte de Moçambique, 1972.
(2) "CHECA". Adjectivo atribuído aos soldados recentemente chegados às zonas de combate.

sábado, 16 de maio de 2009

Nós, a FRELIMO e a contra informação

(...) Na cantina, repleta de soldados que se encharcavam de Laurentinas[1] a comemorar o nascimento do filho do Juvenal, as atenções viraram-se por momentos para as notícias emanadas de um pequeno rádio que transmitia de Dar-Es-Salaam[2] ou de uma estação de rádio perdida algures na mata:
- “... Aqui Rádio da liberdade; voz da FRELIMO, transmitida das zonas libertadas do colonialismo: - O comité de libertação da nossa pátria informa que, neste momento, está prestes a ser tomado o aquartelamento de Nangade pelos nossos guerrilheiros, e exortamos todos os soldados aí estacionados e que ainda resistem, a renderem-se, porque o nosso inimigo não são eles mas sim, o regime opressor, que de Lisboa os envia para esta guerra para morrem inocentes...”
Perante a estupefacção dos presentes que comentavam o que acabavam de ouvir, alguém disse ironizando:
- Estes cabrões não têm juízo?!
- Então a malta está aqui descansadinha e beber umas cervejolas e eles dizem que nos estão a expulsar daqui?
- Oh Nabais, se não te importas, espreita aí pela janela e, se vires alguns turras, diz a eles para esperarem só um bocadinho, ou então, eles que aproveitem, entrem e bebam com a malta umas latitas de cerveja:
- disse o “Mogadouro”
[3] em tom jocoso, entornando sobre si o que restava da 2M[4] que já bebia a muito custo.
Braz, que acabara de ler a sua correspondência e permanecia encostado ao balcão feito de troncos de árvores, ouvia em silêncio a reacção às notícias, esboçando um leve sorriso, ao mesmo tempo que se juntava ao aglomerado das fardas camufladas, reagindo, de forma a tornar evidente tamanha incompreensão, na tentativa de esclarecer algum desconhecimento ou ignorância que ainda pairava nalgumas daquelas mentes:
- É pá! — vocês ainda não perceberam que isto é pura propaganda psicológica para levantar a moral dos guerrilheiros espalhados pela mata? - aliás: - continuou:
- Ainda ontem, se não ouviram, mas está ali o Almeida e o Pereira que não me deixam mentir; a rádio “Do Comandante ao Combatente” do Estado Maior General das nossas Forças Armadas também dizia:
- “...Neste momento, dois pelotões da Companhia de Caçadores 3309 estacionada em Nova Torres, atravessaram o rio Rovuma e apreenderam variado material de guerra aos terroristas em pleno território da Tanzânia, e desmantelaram vários aquartelamentos da FRELIMO que serviam de apoio às suas actividades subversivas”.
- Ora, todos nós sabemos que ontem não foi apreendido nenhum material de guerra nem a 3309 nesse dia saiu para o mato, muito menos entrar pela Tanzânia a dentro:
- Estas informações
- continuou Braz - tanto de um lado como de outro, são normais em tempo de guerra, e estes métodos eram já utilizados na Segunda Guerra Mundial tanto pelos Aliados assim como pelas forças nazis:
- Trata-se de pura guerra de contra informação com conteúdo ideológico, que visa minar a moral do inimigo
- concluía Braz, sendo interrompido pelo “Mogadouro” de uma forma tão agressiva:
- Lá estás tu com a tua mania de intelectual, sempre a defender a porra dos turras pá! - Se é isso que aprendes nos livros que andas a ler e se gostas assim tanto dos gajos pá, porque é que não te passas para o outro lado da barricada?! - disse “Mogadouro”, bem alto, depois de ter emborcado todo o conteúdo de outra lata de cerveja de uma assentada (...)


Carlos Vardasca
16 de Maio de 2009

in, "Fardados de Lama", páginas 91 e 92. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2008.

Foto: Da esquerda para a direita: Camelo, Leite, Braz (Carlos Vardasca) Nabais e o Almeida sentado em cima da Berliet, todos pertencentes à Companhia de Caçadores 3309. Aquartelamento de Nangade 1972.

[1] Marca de cerveja de Moçambique.
[2] Capital da Tanzânia.
[3] Alcunha do soldado Condutor Leite, por ser natural de Variz e morar em Vilarinho dos Galegos, concelho de Mogadouro.
[4] Marca de cerveja cuja abreviatura era alusiva a Maurice Mac-Mahon, presidente da República Francesa (1873-1879), que arbitrou em 1875 o litígio entre a Inglaterra e Portugal votando a favor das pretensões portuguesas sobre a administração da cidade de Lourenço Marques que ficou a pertencer a Moçambique.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Ao "Guerrilheiro da Malcata"

(...) As palmeiras tombavam sobre o aquartelamento e o emaranhado de palhotas que se entrelaçavam por entre as tendas militares; a verdejante folhagem das bananeiras e a azáfama da população local que se misturava por entre os soldados que envergavam camuflados já esventrados pelo tempo, prisioneiros do arame farpado que lhes esventrava a liberdade e que rodeava todo o aquartelamento numa dualidade tão perversa, emprestava, apesar de tudo, àquela linha de defesa militar encostada a uma extensa lângua prenhe de vida animal, um cenário paradisíaco esquecido entre o arvoredo deslumbrante que deixava trespassar raios de sol tão brilhantes, mas também, a realidade cruel para quem participava numa guerra nos confins do inferno e convivia de braço dado com o isolamento.
Já com a escuridão a inundar todo o Aquartelamento, inesperadamente, e apesar de decorrer o final da estação seca, a noite caiu tempestuosa sobre Pundanhar, e os soldados que se tinham enroscado debaixo dos telhados de colmo das palhotas de adobe ou das viaturas militares e aí encontraram algum aconchego, assistiam, embrulhados em cobertores e nas capas de oleado, à forte chuvada e ao troar dos trovões que se abatiam sobre aquela frente de batalha.
Um forte clarão iluminou o Nabais que permanecia sentado do outro lado da rua debaixo do alpendre de uma palhota, sempre com a “canhota”
[1] por perto e uma lata de “Laurentina” entre as pernas, parecendo mastigar um cigarro ou tentando mastigar outras tantas lembranças intragáveis.
- A merda do tempo e as recordações da minha aldeia não me deixam pregar olho; - disse Nabais que, apesar de estar sozinho continuava a gesticular termos gramaticais meio desarticulados, acompanhados de um verbalismo desconjuntado pelo álcool:
- Pretos d'um cabrão, que mal é que eu lhes fiz para estar agora a aturá-los?
Braz, que se mantinha acordado e deitado debaixo de uma Berliet no lado oposto, aproximou-se de Nabais atravessando a rua enlameada que os separava debaixo de forte chuvada, e respondeu-lhe como se a pergunta lhe tivesse sido dirigida, mas sem que antes não deixasse de lhe dar uma séria recomendação:
- Já viste Nabais, durante toda a tarde, desde que chegámos aqui a Pundanhar que ainda não paraste de beber?
- Se continuas a emborcar tanta cerveja, podes vir a ser prejudicado e a pagar caro essa forma como tentas afogar as tuas lamurias.
- Deixa-te de merdas Braz: - lá vens tu com os teus moralismos e o caralho da bebida: ripostou Nabais, acrescentando irritado:
- Eu nunca vou morrer pá. Um “guerrilheiro da Malcata” nunca morre.
Voltando ao motivo da conversa que o fez aproximar do companheiro, Braz sentou-se ao seu lado enroscado na manta e no dólmen, encostando a sua arma à “canhota” do Nabais.
- Está bem, eu não falo mais em bebida mas o que eu te queria dizer é que nenhum de nós (disse baixinho, certificando-se de que em seu redor apenas tinha por companhia aquela robusta árvore e alguns soldados que dormiam)
fez mal a alguém para estar aqui, nem essa questão se coloca dessa forma.
- Repara bem nisto que te vou dizer:
- Por acaso gostavas que arrombassem a porta da tua casa e ficassem a viver dentro dela sem o teu consentimento? - argumentou Braz percebendo pelo semblante carregado do Nabais que este se apressava a responder parecendo ter despertado da embriaguês.
- Lá vens tu com essa treta da colonização e da libertação dos povos das colónias:
- Eu desde os meus tempos de escola que sempre ouvi dizer que estes territórios sempre foram nossos, e vens agora tu contrariar em dois minutos aquilo que eu aprendi nos bancos da escola, e que sempre tenho ouvido até agora aos meus vinte e dois anos.
- Sabes Nabais, na escola, contaram-te; e a mim também, claro, o lado errado da nossa história, e hoje estamos todos aqui longe da nossa família convencidos que estamos a lutar para salvar a pátria, enquanto os donos dos cafezais, das plantações de algodão, das prospecções de petróleo e das minas de diamantes se pavoneiam nas belas estâncias balneares a fornicarem com belas mulheres, enquanto nós estamos aqui a estoirar os nossos cornos, perdidos neste inferno, todos “cagados”, sempre à espera que a puta de uma bala se atravesse no nosso caminho, mas “felizes porque estamos aqui com a bênção do Cardeal Cerejeira” (...)


in: "Fardados de Lama", páginas 69,70 e 71. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2008.
[1] Alusivo à espingarda automática G3.


O João Luís dos Santos Nabais (2) (O "Guerrilheiro da Malcata", como gostava de se intitular quando recordava as suas aventuras por terras de Espanha no tráfico do café) depois de vários anos emigrado no Canadá onde tentou "endireitar a vida", veio a falecer em 07 de Maio de 2007 vitima da mesma doença que começou por ser "sua companheira" nos momentos em que a solidão se transformava em raiva, e o suor se misturava com o orvalho que se soltava do capim que ladeava a picada no itinerário Nangade-Pundanhar-Palma.
Em sua homenagem, aqui fica um abraço solidário de quem sobreviveu.

Carlos Vardasca
07 de Maio de 2009
(2) João Luís dos Santos Nabais, Soldado Condutor Auto Rodas NM15467570 da Companhia de Caçadores 3309
Foto 1: Após o rebentamento de uma mina anti-carro na viatura que conduzia. O Nabais está debaixo da Berliet, em tronco nu e de lenço preto ao pescoço, colaborando na preparação da viatura para ser rebocada. Em destaque, uma foto sua mais recente antes de falecer.
Foto 2: No Aquartelamento de Pundanhar com outros companheiros da C.CAÇ.3309 e da C.CAÇ. 2703 ali estacionada. O Nabais é o que está mais encoberto pelos companheiros e de bigode.
Foto 3: Em Nangade, na companhia dos seus companheiros condutores e mecânicos da C.CAÇ. 3309. O Nabais está em pé, de boina e de camuflado.