sábado, 24 de janeiro de 2009

"Do Cais de Alcântara para o outro lado do mar"

(...) As carruagens pareciam querer entrar silenciosas naquele imenso cais já repleto de agitada multidão, que se estendia angustiada ao longo do terraço do edifício da Companhia Colonial de Navegação, para se despedir “de um pedaço daquilo que consideravam seu e que lhes estava a ser arrancado”.
Já imobilizadas no Cais de Alcântara, as velhas carruagens foram vomitando, uns atrás dos outros, soldados exaustos e de semblante apreensivo, que depressa se alinharam em formatura depois de se terem juntado aos seus familiares, numa despedida breve que muitos desejavam que durasse uma eternidade.
Ignorando a ordem de regresso à formatura, alguns soldados foram arrancados dos abraços que os envolviam como se quisessem impedir a sua partida, sob o protesto daquele mar de gente que assistia inconformada à partida de um filho, marido ou amante.
Decorria o ano de 1971 e o calendário registava o dia 24 de Janeiro, quando o Batalhão de Caçadores 3834 iniciou o seu embarque a bordo do navio “NIASSA” com destino a Moçambique, esse pedaço térreo banhado pelo Índico que diziam ser nosso, mas onde a revolta há muito se fazia ouvir contrariando o que nos tinham decalcado nos bancos das escolas.
Integrado na Companhia de Caçadores 3309, eu marchava muito próximo do “Tremoço”
[1] que, com as suas faces rosadas meio inundadas de lágrimas, lá ia resmungando em surdina expressivos adjectivos bem vincados pelo sotaque da Rasca, pequena aldeia muito próximo da cidade que nos deu a conhecer Bocage, adjectivos que se insurgiam, ora contra os oficiais Generais que se perfilavam na tribuna de quem dizia serem os verdadeiros beneficiados da guerra; contra o representante da igreja católica e do MNF[2] que junto daqueles oficiais abençoavam aquela partida para a guerra, o que afinal justificava (no seu entender) que “comiam todos mesma gamela”.
Indiferente aos apelos angustiantes que ecoavam, o “NIASSA” foi engolindo aquele amontoado de jovens que subiam o portaló olhando com saudade o cais; uns (in)conscientes do dever pátrio que os chamava, enquanto outros, refreando o seu descontentamento, murmuravam protestos por não se reconhecerem naquela “cruzada colonial que amputava um pedaço da sua juventude”.
De lenços levantados, tentando fazer ouvir promessas que ninguém já as podia decifrar, o “NIASSA”, meio inclinado para estibordo cedendo ao peso de quem ainda parecia querer abraçar alguém, foi-se afastando das muralhas com os mastros repletos de soldados como se fossem cachos de uvas, enquanto que no cais se misturavam angústias moldadas pela resignação; protestos forjados pela indignação por verem alguém partir arrancado do seu aconchego familiar.
Embora mais contidos, alguns tentavam expressar o seu descontentamento por partirem para uma guerra que diziam não ser sua, ideais alimentados na luta que já vinha do interior dos portões das fábricas e das escadarias das Universidades, onde lhes foi dado a conhecer uma outra visão do conflito colonial, muito para além da retórica Salazarista impressa nos catecismos, que difundiam a pregação de uma igreja cada vez mais comprometida com o regime na sua cruzada evangelizadora do outro lado do mar (...)
Carlos Vardasca
24 de Janeiro de 2009
In "Onde o sol castiga mais. Crónicas de guerra 1970-1973", páginas 5 e 6. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2005.

[1] Alcunha de Licínio José de Jesus Lopes, Soldado Condutor Auto Rodas, NM 16985870 da Companhia de Caçadores 3309 (falecido em Agosto de 1999)
[2] Movimento Nacional Feminino.
Foto 1: No momento do embarque da Companhia de Caçadores 3309 a bordo do navio Niassa.
Foto 2: O adeus de despedida do Batalhão de Caçadores 3834.
Foto 3: Soldados Baltazar Carneiro, "Monção" e um outro companheiro (todos da C.CAÇ. 3309) a bordo do navio Niassa ainda no Cais de Alcântara.
Foto 4: Os Furriéis Calha, "Vilela", Barbudo, Neves, Arlindo e Costa da C.CAÇ. 3309 a bordo do navio Niassa já em pleno Atlântico.
Foto 5: Os Alferes Martins e Gonçalves da C.CAÇ. 3309 junto de outros oficiais do Batalhão de Caçadores 3834 a bordo do navio Niassa já em pleno Atlântico.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

"Memórias de um tempo que não se apaga"

Exmo. Senhor Carlos Vardasca
Cumpre-me primeiro que tudo identificar-me...
Sou um ex-militar, em tempo Furriel Miliciano do Grupo GE 214, estacionado em Pundanhar... Furriel que, em Julho de 1972 chega àquelas paragens, comandando aquele grupo, porquanto o seu comandante de raiz, Alferes Lencastre, dos quadros da Companhia aí aquartelada, que não me recorda o seu número, mas fazendo parte do Batalhão de Nangade, foi ao tempo impedido de o fazer pelo Coronel Costa Campos.
Soube do desaparecimento do então colega de armas... o Guimarães, como era conhecido.
Mas, se a memória me não trai, aquando do sucedido, estava eu a chegar do Hospital Militar de Nampula, para onde fui evacuado para observação da paralisia de que era acometido.
De nada ter servido, porque acabei por ter saído mudo e regressar calado, como é costume dizer-se ao que nada se acaba por saber do que se padecia.
Só tive conhecimento desse mal aos 29 anos quando paralisei pela primeira vez (porque até hoje já vai na 5.ª), tendo aí sim, me sido detectado uma spinuo-bifida (parece-me de que é assim que se escreve.....rs), nas duas últimas lombares e na primeira do sacro.
Acabo de descrever tudo isto porque, por vezes somos denominados como inoperacionais, ronhas e sei lá o quê mais, como eu o fui por várias vezes denominado, disso tenho eu consciência, e o agravante de que com este problema não devida ter sido sequer militar porque nem auxiliares dava...
Não fui pela certa o único impossibilitado e injustamente naquelas circunstâncias....
Mas..... a vida continua, e ainda aqui estamos e o estejamos por mais algum tempo, mesmo assim...
Como a traz dizia, e, tentando dar-me a conhecer, transportei sob meu comando o dito Grupo GE 214 do Dondo até aquela localidade de Pundanhar, conjuntamente com os então Furriéis Cardoso e Telmo Lopes.
Porém, recorda-me de que no dia em que chego a Palma, nesse mesmo dia à tarde um avião que andava em missão de propaganda "PSICOLA", se desloca a Palma e me transporta a Pundanhar, e leva para o Nhica do Rovuma o então Alferes Costa Oliveira, de Pundanhar, que havia chegado há pouco do Dondo afim de comandar o GE 214 em substituição do digitado Alferes Lencastre, afim de reforçar Grupo GE 212, por este estar com apenas um graduado.
Deslocação esta por poucos dias, porque quem acaba por ficar sozinho com o grupo sou eu.
Naquele mesmo dia, os dois Furriéis, o Cardoso e o Telmo, caiem numa emboscada e são evacuados com mais 3 Soldados daquele Grupo.
E, pelo que vim a saber mais tarde, o Telmo fica sem a perna esquerda, cortada em segunda operação em Lourenço Marques, de onde me escreve a dar conta de tal sucedido. Segue mais tarde para a África do Sul como era costume aos naturais daquela Província. Desde aí perco-lhe o rasto, deixando de ter mais dele notícias. O Cardoso ainda regressa ao Grupo.
Mas a dado momento da sua permanência, apercebo-me de um estilhaço que se lhe estava a sair pela vista esquerda, e então é prontamente solicitada a sua evacuação, apenas sabendo de que mais tarde regressa ao Dondo e nada mais.
Mais tarde, por entre Maio ou Junho de 1973, e já sem o Alferes Costa Oliveira porque acaba por ser evacuado e não mais regressa, sou convidado a aceitar a graduação de Alferes.
Fiz referência ao meu problema físico e tudo porquê?
Porque por ele recuso o convite da graduação, não só por impossibilidades físicas, mas também porque já estava há muito tempo por aqueles lados, e, com a aceitação teria de por lá permanecer pelo menos mais 12 meses, o que, de ânimo leve, para mim seria de todo impossível.....
Concerteza que fiz mal..... porque..... com a minha recusa sou espoliado dos GE'S em Setembro daquele mesmo ano (1973), com ordem de embarque e destino a Mueda, transmitida pessoalmente ao grupo pelo então Capitão Pessoa de Amorim.
Naquela localidade fiquei a aguardar colocação até 4 de Janeiro de 1974, dia a seguir ao primeiro ataque ocorrido a Moçambique com misseis terra-ar mod 122.
Tomo o avião com destino a Nampula, onde a 22 daquele mesmo mês sai a ordem de desgraduação a Soldado, e com colocação e destino a Muembe, Niassa, onde estava uma Companhia do Batalhão de Tenente Valadim.
Meu caro, tudo o que li e acabei de descrever, acabam por ser memórias do tempo, que se apagam, mas, o tempo também as aviva quando lemos o que por aqui tenho andado a fazer..... reviver o passado.
Por isso tenhamos pois saúde para podermos pelo menos ainda tentar recordar os ausentes, porque os presentes vamos tentando localizá-los e dar-lhes um "OLÁ" e de que por aqui ainda se anda...

Um Abraço e até sempre, ao dispor......
Carlos Cêa
ex-Furriel Miliciano dos GEs 214
em Pundanhar. 1972

Foto 1: O Furriel Carlos Cêa (o primeiro a contar da esquerda) junto dos seus companheiros dos GEs 214. Aquartelamento de Pundanhar, 1972

Foto 2: O Furriel Carlos Cêa (segundo a contar da direita) dos GEs 214, junto de Furriéis e um Alferes da Companhia (?) que estava aquartelada em Pundanhar. Ao fundo pode ver-se a Messe dos Sargentos. Pundanhar 1973

Foto 3: Aquartelamento de Pundanhar e fotos do Furriel Carlos Cêa em destaque (nos GEs 214 e actualmente).

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

"Mais uma baixa no Batalhão de Caçadores 3834"

Conforme informação do passado dia 11 de Janeiro enviada por António Filipe Pinho de Sousa, ex-1º Cabo Atirador da C.CAÇ. 3311 (mais tarde "reconvertido" em Enfermeiro) informa-se que o nosso companheiro Agostinho César Gonçalves, ex-1º Cabo Mecânico Auto da Companhia de Caçadores 3311, natural de Bragança, faleceu no início do mês de Novembro de 2008 motivado por questões relacionadas com a sua saúde.
No convívio da C.CAÇ. 3311 realizado em Vila das Aves em 21 de Setembro de 2008 ele ainda esteve presente, conforme foto que se edita, cedida gentilmente por Militão Camacho, ex-Alferes da sua Companhia e tirada no restaurante "O Óscar", propriedade do "Tarzan" ex-Soldado Cozinheiro da CCS do mesmo Batalhão de Caçadores 3834.
No próximo dia 28 de Março em Chaves, quando o nosso Batalhão "tocar a reunir", o Agostinho será mais um que "não irá responder à chamada", mas decerto que o seu nome irá ser sempre lembrado (para além dos seus familiares) por todos os que com ele conviveram mais de perto, em especial a malta da Companhia de Caçadores 3311 que lhe fará a justa homenagem, mas também a totalidade do nosso Batalhão de Caçadores 3834, quando também recordar todos os nossos companheiros já desaparecidos após o nosso regresso e os que tombaram em combate naquela terra distante, quente, "que nunca nos refrescou a alma" apesar de ser banhada pelo Índico.
"Do Tejo ao Rovuma" associa-se desde já a esta homenagem, desejando que este nosso companheiro (esteja onde estiver) finalmente "encontre a tranquilidade que parece não ter encontrado enquanto vagueava por entre nós".

Carlos Vardasca
14 de Janeiro de 2009

Foto: Tirada no restaurante "O ÓSCAR", durante o convívio da Companhia de Caçadores 3311. Da esquerda para a direita: Óscar ("Tarzan") da CCS, Albuquerque Dias (C.CAÇ. 3310), Vilar e o malogrado Agostinho, ambos da C.CAÇ. 3311. Vila das Aves, 21 de Setembro de 2008.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

"Já está na estrada a organização do Encontro do Batalhão de Caçadores 3834"

Aquela reunião realizada no dia 06 de Janeiro de 2009 tinha como objectivo a organização do encontro do Batalhão de Caçadores 3834, a realizar no próximo dia 28 de Março de 2009 na cidade de Chaves, cujo programa será devidamente divulgado em data oportuna, ficando o "Homem do Jazz" (Rui Neves) de tratar das questões relacionadas com o alojamento em Chaves, o Militão Camacho do transporte e o Albuquerque Dias de elaborar o programa do evento e efectuar os contactos para as cerimónias oficiais.
Alguns dos presentes na reunião há muito que não se encontravam desde a "Epopeia trágico-marítima" que nos atirou para terras de África, embora outros por vezes se encontrem com alguma regularidade. Em todo o caso, foi um dia inesquecível, dado que, após a reunião e depois de num dos corredores "sermos atentamente olhados" por Adelino da Palma Carlos (1) fundador daquele gabinete de advogados, lá subimos ao 8º andar para a Associação de Cabo Verde onde a "ração de combate" foi uma saborosa Cachupa (2), bolo de coco, regados no final com o velho Grogue (3) ao som da bem temperada música daquele país africano.
"Responderam à chamada" e estiveram presentes naquela reunião-almoço de convívio os seguintes elementos do Batalhão de Caçadores 3834:

Albuquerque Dias, ex-Alferes da C.CAÇ. 3310
Militão Camacho, ex-Alferes da C.CAÇ. 3311
João Marques, ex-1º Cabo Radio-Montador da CCS
Armindo Gomes, ex-Furriel da C.CAÇ 3310
Leonel Correia, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCS
Manuel Maria Morais, ex-Alferes da C.CAÇ. 3310
Rui Neves, ex-Alferes da C.CAÇ. 3310
Victor Vieira, ex-Furriel da C.CAÇ. 3310
Carlos Vardasca, ex-Soldado Condutor da C.CAÇ. 3309
Ilídio Costa, ex-1º Cabo Mecânico da C.CAÇ. de Moçimboa da Praia-Palma (convidado especial que em breve partirá para Moçambique)
Já com o dia quase a escurecer e quando a "maioria das tropas já se tinham dispersado", um "Grupo de Combate" composto por Carlos Vardasca, Ilídio Costa, Militão Camacho e João Marques, ainda fez uma "nomadização" pela zona conturbada da baixa lisboeta, tendo feito uma incursão no "Martinho da Arcada" onde teve contacto com o "inimigo" (estávamos em dia de Reis) personificado num excelente e delicioso Bolo Rei que, depois de se ter "reconhecido a zona", foi abatido num ápice com a colaboração do Sr. António, estimável proprietário daquela emblemática casa (amigo de Militão Camacho) onde Fernando Pessoa para além de ler e escrever, também "bebia uns copos".
São reuniões destas que se querem ver realizadas mais vezes (seja a que pretexto for, mais que não seja para se beber mais um "Grogue") onde o espírito de confraternização e de camaradagem se fortaleça entre companheiros que viveram o conturbado período colonial, tendo cada um deles as suas próprias concepções sobre o mesmo, contribuindo no entanto para que essas diferenças sejam apenas factor de entendimento, onde prolifere, para além da amizade, uma salutar e respeitável diversidade de opiniões.
Carlos Vardasca
09 de Janeiro de 2009
Foto 1: Durante a reunião para a organização do Encontro do B.CAÇ. 3834.
Foto 2: Em plena "Cachupa" na Associação de Cabo Verde.
Fotos 3 e 4: No "Martinho da Arcada".
(1) Pintura a óleo daquele prestigiado advogado.
(2) Comida tradicional de Cabo Verde.
(3) Aguardente de Cabo Verde.




quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Ser Palestiniano, hoje!

Quando o velho cargueiro “Êxodos” atracou em 1947 em terras da Palestina, todo aquele amontoado de “emigrados” comoveu a opinião pública internacional, devido às condições degradantes em que vinham vivendo dentro daquela embarcação, sem o mínimo de condições básicas de sobrevivência, na ânsia de chegar à “terra prometida”.
As potências militares da altura, por uma questão de ordem religiosa, política e até económica; nomeadamente a Inglaterra que era a potência colonizadora na região, apresentaram ao mundo aquela e outras situações dramáticas que se seguiram como justificação para aquele povo ter o direito a uma pátria, criando na opinião pública um sentimento de solidariedade em redor de uma questão que aparentemente parecia ser legítima, dado o inquestionável prestígio que os judeus vinham granjeando com o findar da II Grande Guerra Mundial, por terem sido um povo perseguido pelo regime nazi, e que ninguém, perante este clima emocional e a força das armas inglesas que se colocaram ao seu lado ousou questionar.
Ao reconhecer-se aos Judeus (com base numa mera questão bíblica sem qualquer fundamento jurídico) o direito a uma pátria “encaixando-os” pela força das armas num território usurpado a um outro povo que ironicamente ainda teimam em não reconhecer, estava-se já, nessa altura, a tentar redesenhar o mapa do Médio Oriente em favor das potências ocidentais, “espetando uma cruz no coração da Palestina”, bem no centro do mundo árabe, cujo mapa tem sido várias vezes desenhado “bem ao jeito das Cruzadas” e que tem vindo, até aos nossos dias, a colocar os Palestinianos numa situação como se fossem uns estranhos na sua própria terra e violentados de forma tão cruel na sua identidade.
Por tudo isto, ser Palestiniano, hoje, é compreender a revolta de quem na sua própria terra se vê obrigado a vegetar indefinitivamente em tendas e rodeado de arame farpado; a ter que se deslocar dentro da sua pátria e identificar-se diariamente ao ocupante como se fosse um estranho dentro da sua própria casa; ver as suas terras invadidas ilegalmente por colonos que avançam com buldozers sob protecção militar israelita, ou a ser sistematicamente bombardeado e assistir à destruição das suas cidades e aldeias enquanto os colonatos vão proliferando, tentando colonizar todo o espaço que possa ser colonizável, reduzindo cada vez mais o espaço territorial Palestiniano, visando, a longo prazo, o seu controlo total.
Ser Palestiniano, hoje, é saber condenar a violência do ocupante israelita e compreender a angústia e o desespero daquele povo, mas é também, não aprovar os actos suicidas desencadeados por grupos extremistas contra alvos civis israelitas que na maioria dos casos vitimam inocentes, e que poderão, aos invés do pretendido, criar uma certa indignação mesmo na opinião pública israelita favorável à criação de um estado Palestiniano, alimentando novos inimigos quando o que se pretende é o contrário, ou seja, granjear um maior apoio na comunidade israelita e internacional a um verdadeiro processo de paz para a região e à criação de um Estado Palestiniano.
Ser Palestiniano, hoje, é desejar a paz por quem tantos já deram a vida, mas também é estar um pouco céptico e questionar como é que é possível que, passados que são cerca de cinquenta e seis anos, ver judeus que reivindicavam para si o direito a ter uma pátria, negar aos Palestinianos o direito a terem um estado seu, no seu próprio território, onde possam viver com dignidade, educarem os seus filhos e criarem uma sociedade próspera onde a convivência entre os diferentes povos seja uma realidade.
Ser Palestiniano, hoje, embora sedento de paz e ansioso por abandonar os campos de refugiados e regressar à sua pátria finalmente livre após a retirada israelita, é também desconfiar das recentes negociações à volta do duvidoso “Roteiro para a paz” desenhado por George. W. Bush com a aprovação amuada de Ariel Sharon; é estranhar o afastamento das negociações de Yasser Arafat e da Autoridade Palestiniana, e considerar muito suspeito que um “pistoleiro profissional e um falcão terrivelmente predador” se tenham reconvertido em “pombas brancas de ramo de oliveira no bico”, e venham agora falar de paz depois de terem semeado em seu redor um campo de mártires a troco de uns barris de petróleo.
Ser Palestiniano, hoje, é reconhecer que o que se passou no Iraque visou também enfraquecer a sua luta, e que não passou de mais um embuste com objectivos estratégicos, com fins económicos e obscuras intenções neocoloniais para o Médio Oriente, ornamentado com o falso resgate de Jessica Lynch que visou levantar a moral das tropas dos EUA tão necessitadas desde a derrota no Vietname.
Ser Palestiniano, hoje, é saber negociar com inteligência mas resistir à agressão israelita “não dando a outra face”; é não deixar tombar a bandeira que flutua prenhe de indignação que será o fertilizante que fará florescer a sua pátria; um verdadeiro Estado Palestiniano.

Carlos Vardasca

13 de Junho de 2003

In jornal “O RIO” nº 134 de 1 a 15 de Julho de 2003.

Nota: Embora escrito em 2003, este artigo mantêm toda a sua actualidade (apesar dos "falcões e dos predadores" e de outros intervenientes no conflito terem mudado de nome) no que se relaciona com a actual ofensiva israelita na Faixa de Gaza, que se insere (embora escudando-se por detrás de actos extremistas e reprováveis) na ocupação sistemática do território Palestiniano, como parte integrante da expansão sionista na construção da "grande pátria de Israel" com a cumplicidade dos Estados Unidos da América e de países europeus.




sábado, 3 de janeiro de 2009

"Tão próximo do outro lado do muro"

As Berliet seguiam no seu vagaroso e agonizante andamento, enquanto que na mata circundante se multiplicavam os sons da natureza que enfrentavam a nossa indiferença.
A preocupação dos militares estava muito para além do chilrear das galinhas do mato e de outras aves tropicais que sobrevoavam as viaturas militares muito para lá da copa das árvores (também elas indiferentes aos medos que ali se faziam transportar) mas na mata cerrada, verdejante, que não deixava vislumbrar muito para além das longas lianas que ladeavam a picada e nos sacudiam o corpo à nossa passagem,
“um outro cenário estava prestes a embelezar aquele anfi-teatro encharcado de incertezas”.
Estava-se em plena época das chuvas e o calendário, depois de arrancada a folha anterior, mostrava (tal como hoje) o terceiro dia do mês de Janeiro mas do ano de 1972.
Chovia torrencialmente, e as vinte viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas) transpor mais uma vez a "Descida dos Paus"
[1], tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem para o desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos restantes soldados, alguns deles em tronco nu que deixavam inundar as toscas tatuagens que garantiam fidelidades eternas, cerrando troncos de árvores para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas preocupações e canseiras dava de cada vez que as colunas de reabastecimento por ali passavam durante a época das chuvas.
Embora com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi transposto e, depois de passarmos uma pequena ponte improvisada que já fora por várias vezes dinamitada pelos guerrilheiros da FRELIMO, a ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante ansiosas por chegar ao Aquartelamento mais próximo (Pundanhar).
Eu seguia no "Rebenta Minas"
[2] com mais quatro militares de um Grupo de Combate da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia e da Companhia de Artilharia 2745 estacionada em Nangade (que faziam a protecção à coluna de reabastecimento em conjunto com a Companhia de Caçadores 3472[3] e que, por não nos termos apercebido do atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros.
Quando nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento e antes que conseguíssemos imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões de três minas anti-carro em simultâneo e accionadas electricamente, na retaguarda da viatura, que a destruiu imobilizando-a de imediato.
Logo após aqueles rebentamentos foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras por um grupo avaliado entre 6 a 8 guerrilheiros da FRELIMO
[4] que, sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam na nossa direcção, apesar da nossa resistência.
Não fora a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que as que ocorreram. Daquela emboscada eu fui atingido numa mão por um tiro de Kalashnikov, e quanto aos restantes ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos (no peito e num ombro) e um outro com ferimentos ligeiros (numa perna) em resultado do disparo daquelas armas automáticas.
Efectuado o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma enquanto eram prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma clareira na mata com o derrube da algumas árvores para facilitar o acesso do helicóptero e efectuar a evacuação, tendo todos nós sido transportados para o Hospital situado mais a sul e no Aquartelamento de Mueda.
Foram momentos dramáticos e, sinceramente, durante toda a minha existência e desde o incêndio da Fragata D. Fernando II e Glória em 03 de Abril de 1963 a que sobrevivi com a idade de 13 anos, nunca como naquele dia me senti tão consciente de estar
“tão próximo do outro lado do muro".

Carlos Vardasca
03 de Janeiro de 2009

Foto 1: Enquanto eu e os restantes feridos da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia aguardávamos a chegada do helicóptero para efectuar a nossa evacuação para o Hospital de Mueda. 03 de Janeiro de 1972
Foto 2: No Hospital de Mueda. 10 de Janeiro de 1972
[1] “Descida dos Paus”. Itinerário muito íngreme, de piso lamacento e escorregadio devido às fortes chuvadas, sendo necessário colocar troncos de árvores para facilitar a passagem das Berliet que integravam as colunas de reabastecimento entre os Aquartelamentos de Palma, Pundanhar e Nangade.
[2] “Rebenta Minas”. Berliet que seguia sempre na frente das colunas de reabastecimento, reforçada com sacos de areia para resistir ao impacto do rebentamento de minas anti-carro.
[3] Que rendeu a Companhia de Caçadores 2703 no Aquartelamento de Pundanhar em 02 de Janeiro de 1972.
[4] Registado no Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo oitavo fascículo (Janeiro de 1972) Capítulo II, página 1. Arquivo Histórico Militar de Lisboa.
In "Onde o sol castiga mais". Crónicas de guerra 1970-1973, páginas 15 e 16. Carlos Vardasca, 2005