(...) As carruagens pareciam querer entrar silenciosas naquele imenso cais já repleto de agitada multidão, que se estendia angustiada ao longo do terraço do edifício da Companhia Colonial de Navegação, para se despedir “de um pedaço daquilo que consideravam seu e que lhes estava a ser arrancado”.
Já imobilizadas no Cais de Alcântara, as velhas carruagens foram vomitando, uns atrás dos outros, soldados exaustos e de semblante apreensivo, que depressa se alinharam em formatura depois de se terem juntado aos seus familiares, numa despedida breve que muitos desejavam que durasse uma eternidade.
Ignorando a ordem de regresso à formatura, alguns soldados foram arrancados dos abraços que os envolviam como se quisessem impedir a sua partida, sob o protesto daquele mar de gente que assistia inconformada à partida de um filho, marido ou amante.
Decorria o ano de 1971 e o calendário registava o dia 24 de Janeiro, quando o Batalhão de Caçadores 3834 iniciou o seu embarque a bordo do navio “NIASSA” com destino a Moçambique, esse pedaço térreo banhado pelo Índico que diziam ser nosso, mas onde a revolta há muito se fazia ouvir contrariando o que nos tinham decalcado nos bancos das escolas.
Integrado na Companhia de Caçadores 3309, eu marchava muito próximo do “Tremoço”[1] que, com as suas faces rosadas meio inundadas de lágrimas, lá ia resmungando em surdina expressivos adjectivos bem vincados pelo sotaque da Rasca, pequena aldeia muito próximo da cidade que nos deu a conhecer Bocage, adjectivos que se insurgiam, ora contra os oficiais Generais que se perfilavam na tribuna de quem dizia serem os verdadeiros beneficiados da guerra; contra o representante da igreja católica e do MNF[2] que junto daqueles oficiais abençoavam aquela partida para a guerra, o que afinal justificava (no seu entender) que “comiam todos mesma gamela”.
Indiferente aos apelos angustiantes que ecoavam, o “NIASSA” foi engolindo aquele amontoado de jovens que subiam o portaló olhando com saudade o cais; uns (in)conscientes do dever pátrio que os chamava, enquanto outros, refreando o seu descontentamento, murmuravam protestos por não se reconhecerem naquela “cruzada colonial que amputava um pedaço da sua juventude”.
De lenços levantados, tentando fazer ouvir promessas que ninguém já as podia decifrar, o “NIASSA”, meio inclinado para estibordo cedendo ao peso de quem ainda parecia querer abraçar alguém, foi-se afastando das muralhas com os mastros repletos de soldados como se fossem cachos de uvas, enquanto que no cais se misturavam angústias moldadas pela resignação; protestos forjados pela indignação por verem alguém partir arrancado do seu aconchego familiar.
Embora mais contidos, alguns tentavam expressar o seu descontentamento por partirem para uma guerra que diziam não ser sua, ideais alimentados na luta que já vinha do interior dos portões das fábricas e das escadarias das Universidades, onde lhes foi dado a conhecer uma outra visão do conflito colonial, muito para além da retórica Salazarista impressa nos catecismos, que difundiam a pregação de uma igreja cada vez mais comprometida com o regime na sua cruzada evangelizadora do outro lado do mar (...)
Já imobilizadas no Cais de Alcântara, as velhas carruagens foram vomitando, uns atrás dos outros, soldados exaustos e de semblante apreensivo, que depressa se alinharam em formatura depois de se terem juntado aos seus familiares, numa despedida breve que muitos desejavam que durasse uma eternidade.
Ignorando a ordem de regresso à formatura, alguns soldados foram arrancados dos abraços que os envolviam como se quisessem impedir a sua partida, sob o protesto daquele mar de gente que assistia inconformada à partida de um filho, marido ou amante.
Decorria o ano de 1971 e o calendário registava o dia 24 de Janeiro, quando o Batalhão de Caçadores 3834 iniciou o seu embarque a bordo do navio “NIASSA” com destino a Moçambique, esse pedaço térreo banhado pelo Índico que diziam ser nosso, mas onde a revolta há muito se fazia ouvir contrariando o que nos tinham decalcado nos bancos das escolas.
Integrado na Companhia de Caçadores 3309, eu marchava muito próximo do “Tremoço”[1] que, com as suas faces rosadas meio inundadas de lágrimas, lá ia resmungando em surdina expressivos adjectivos bem vincados pelo sotaque da Rasca, pequena aldeia muito próximo da cidade que nos deu a conhecer Bocage, adjectivos que se insurgiam, ora contra os oficiais Generais que se perfilavam na tribuna de quem dizia serem os verdadeiros beneficiados da guerra; contra o representante da igreja católica e do MNF[2] que junto daqueles oficiais abençoavam aquela partida para a guerra, o que afinal justificava (no seu entender) que “comiam todos mesma gamela”.
Indiferente aos apelos angustiantes que ecoavam, o “NIASSA” foi engolindo aquele amontoado de jovens que subiam o portaló olhando com saudade o cais; uns (in)conscientes do dever pátrio que os chamava, enquanto outros, refreando o seu descontentamento, murmuravam protestos por não se reconhecerem naquela “cruzada colonial que amputava um pedaço da sua juventude”.
De lenços levantados, tentando fazer ouvir promessas que ninguém já as podia decifrar, o “NIASSA”, meio inclinado para estibordo cedendo ao peso de quem ainda parecia querer abraçar alguém, foi-se afastando das muralhas com os mastros repletos de soldados como se fossem cachos de uvas, enquanto que no cais se misturavam angústias moldadas pela resignação; protestos forjados pela indignação por verem alguém partir arrancado do seu aconchego familiar.
Embora mais contidos, alguns tentavam expressar o seu descontentamento por partirem para uma guerra que diziam não ser sua, ideais alimentados na luta que já vinha do interior dos portões das fábricas e das escadarias das Universidades, onde lhes foi dado a conhecer uma outra visão do conflito colonial, muito para além da retórica Salazarista impressa nos catecismos, que difundiam a pregação de uma igreja cada vez mais comprometida com o regime na sua cruzada evangelizadora do outro lado do mar (...)
Carlos Vardasca
24 de Janeiro de 2009
24 de Janeiro de 2009
In "Onde o sol castiga mais. Crónicas de guerra 1970-1973", páginas 5 e 6. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2005.
[1] Alcunha de Licínio José de Jesus Lopes, Soldado Condutor Auto Rodas, NM 16985870 da Companhia de Caçadores 3309 (falecido em Agosto de 1999)
[2] Movimento Nacional Feminino.
[2] Movimento Nacional Feminino.
Foto 1: No momento do embarque da Companhia de Caçadores 3309 a bordo do navio Niassa.
Foto 2: O adeus de despedida do Batalhão de Caçadores 3834.
Foto 3: Soldados Baltazar Carneiro, "Monção" e um outro companheiro (todos da C.CAÇ. 3309) a bordo do navio Niassa ainda no Cais de Alcântara.
Foto 4: Os Furriéis Calha, "Vilela", Barbudo, Neves, Arlindo e Costa da C.CAÇ. 3309 a bordo do navio Niassa já em pleno Atlântico.
Foto 5: Os Alferes Martins e Gonçalves da C.CAÇ. 3309 junto de outros oficiais do Batalhão de Caçadores 3834 a bordo do navio Niassa já em pleno Atlântico.
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