As Berliet seguiam no seu vagaroso e agonizante andamento, enquanto que na mata circundante se multiplicavam os sons da natureza que enfrentavam a nossa indiferença.
A preocupação dos militares estava muito para além do chilrear das galinhas do mato e de outras aves tropicais que sobrevoavam as viaturas militares muito para lá da copa das árvores (também elas indiferentes aos medos que ali se faziam transportar) mas na mata cerrada, verdejante, que não deixava vislumbrar muito para além das longas lianas que ladeavam a picada e nos sacudiam o corpo à nossa passagem, “um outro cenário estava prestes a embelezar aquele anfi-teatro encharcado de incertezas”.
Estava-se em plena época das chuvas e o calendário, depois de arrancada a folha anterior, mostrava (tal como hoje) o terceiro dia do mês de Janeiro mas do ano de 1972.
Chovia torrencialmente, e as vinte viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas) transpor mais uma vez a "Descida dos Paus"[1], tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem para o desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos restantes soldados, alguns deles em tronco nu que deixavam inundar as toscas tatuagens que garantiam fidelidades eternas, cerrando troncos de árvores para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas preocupações e canseiras dava de cada vez que as colunas de reabastecimento por ali passavam durante a época das chuvas.
Embora com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi transposto e, depois de passarmos uma pequena ponte improvisada que já fora por várias vezes dinamitada pelos guerrilheiros da FRELIMO, a ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante ansiosas por chegar ao Aquartelamento mais próximo (Pundanhar).
Eu seguia no "Rebenta Minas"[2] com mais quatro militares de um Grupo de Combate da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia e da Companhia de Artilharia 2745 estacionada em Nangade (que faziam a protecção à coluna de reabastecimento em conjunto com a Companhia de Caçadores 3472[3] e que, por não nos termos apercebido do atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros.
Quando nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento e antes que conseguíssemos imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões de três minas anti-carro em simultâneo e accionadas electricamente, na retaguarda da viatura, que a destruiu imobilizando-a de imediato.
Logo após aqueles rebentamentos foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras por um grupo avaliado entre 6 a 8 guerrilheiros da FRELIMO[4] que, sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam na nossa direcção, apesar da nossa resistência.
Não fora a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que as que ocorreram. Daquela emboscada eu fui atingido numa mão por um tiro de Kalashnikov, e quanto aos restantes ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos (no peito e num ombro) e um outro com ferimentos ligeiros (numa perna) em resultado do disparo daquelas armas automáticas.
Efectuado o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma enquanto eram prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma clareira na mata com o derrube da algumas árvores para facilitar o acesso do helicóptero e efectuar a evacuação, tendo todos nós sido transportados para o Hospital situado mais a sul e no Aquartelamento de Mueda.
Foram momentos dramáticos e, sinceramente, durante toda a minha existência e desde o incêndio da Fragata D. Fernando II e Glória em 03 de Abril de 1963 a que sobrevivi com a idade de 13 anos, nunca como naquele dia me senti tão consciente de estar “tão próximo do outro lado do muro".
Carlos Vardasca
A preocupação dos militares estava muito para além do chilrear das galinhas do mato e de outras aves tropicais que sobrevoavam as viaturas militares muito para lá da copa das árvores (também elas indiferentes aos medos que ali se faziam transportar) mas na mata cerrada, verdejante, que não deixava vislumbrar muito para além das longas lianas que ladeavam a picada e nos sacudiam o corpo à nossa passagem, “um outro cenário estava prestes a embelezar aquele anfi-teatro encharcado de incertezas”.
Estava-se em plena época das chuvas e o calendário, depois de arrancada a folha anterior, mostrava (tal como hoje) o terceiro dia do mês de Janeiro mas do ano de 1972.
Chovia torrencialmente, e as vinte viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas) transpor mais uma vez a "Descida dos Paus"[1], tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem para o desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos restantes soldados, alguns deles em tronco nu que deixavam inundar as toscas tatuagens que garantiam fidelidades eternas, cerrando troncos de árvores para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas preocupações e canseiras dava de cada vez que as colunas de reabastecimento por ali passavam durante a época das chuvas.
Embora com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi transposto e, depois de passarmos uma pequena ponte improvisada que já fora por várias vezes dinamitada pelos guerrilheiros da FRELIMO, a ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante ansiosas por chegar ao Aquartelamento mais próximo (Pundanhar).
Eu seguia no "Rebenta Minas"[2] com mais quatro militares de um Grupo de Combate da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia e da Companhia de Artilharia 2745 estacionada em Nangade (que faziam a protecção à coluna de reabastecimento em conjunto com a Companhia de Caçadores 3472[3] e que, por não nos termos apercebido do atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros.
Quando nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento e antes que conseguíssemos imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões de três minas anti-carro em simultâneo e accionadas electricamente, na retaguarda da viatura, que a destruiu imobilizando-a de imediato.
Logo após aqueles rebentamentos foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras por um grupo avaliado entre 6 a 8 guerrilheiros da FRELIMO[4] que, sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam na nossa direcção, apesar da nossa resistência.
Não fora a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que as que ocorreram. Daquela emboscada eu fui atingido numa mão por um tiro de Kalashnikov, e quanto aos restantes ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos (no peito e num ombro) e um outro com ferimentos ligeiros (numa perna) em resultado do disparo daquelas armas automáticas.
Efectuado o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma enquanto eram prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma clareira na mata com o derrube da algumas árvores para facilitar o acesso do helicóptero e efectuar a evacuação, tendo todos nós sido transportados para o Hospital situado mais a sul e no Aquartelamento de Mueda.
Foram momentos dramáticos e, sinceramente, durante toda a minha existência e desde o incêndio da Fragata D. Fernando II e Glória em 03 de Abril de 1963 a que sobrevivi com a idade de 13 anos, nunca como naquele dia me senti tão consciente de estar “tão próximo do outro lado do muro".
Carlos Vardasca
03 de Janeiro de 2009
Foto 1: Enquanto eu e os restantes feridos da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia aguardávamos a chegada do helicóptero para efectuar a nossa evacuação para o Hospital de Mueda. 03 de Janeiro de 1972
Foto 2: No Hospital de Mueda. 10 de Janeiro de 1972
[1] “Descida dos Paus”. Itinerário muito íngreme, de piso lamacento e escorregadio devido às fortes chuvadas, sendo necessário colocar troncos de árvores para facilitar a passagem das Berliet que integravam as colunas de reabastecimento entre os Aquartelamentos de Palma, Pundanhar e Nangade.
[2] “Rebenta Minas”. Berliet que seguia sempre na frente das colunas de reabastecimento, reforçada com sacos de areia para resistir ao impacto do rebentamento de minas anti-carro.
[3] Que rendeu a Companhia de Caçadores 2703 no Aquartelamento de Pundanhar em 02 de Janeiro de 1972.
[4] Registado no Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo oitavo fascículo (Janeiro de 1972) Capítulo II, página 1. Arquivo Histórico Militar de Lisboa.
[1] “Descida dos Paus”. Itinerário muito íngreme, de piso lamacento e escorregadio devido às fortes chuvadas, sendo necessário colocar troncos de árvores para facilitar a passagem das Berliet que integravam as colunas de reabastecimento entre os Aquartelamentos de Palma, Pundanhar e Nangade.
[2] “Rebenta Minas”. Berliet que seguia sempre na frente das colunas de reabastecimento, reforçada com sacos de areia para resistir ao impacto do rebentamento de minas anti-carro.
[3] Que rendeu a Companhia de Caçadores 2703 no Aquartelamento de Pundanhar em 02 de Janeiro de 1972.
[4] Registado no Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo oitavo fascículo (Janeiro de 1972) Capítulo II, página 1. Arquivo Histórico Militar de Lisboa.
In "Onde o sol castiga mais". Crónicas de guerra 1970-1973, páginas 15 e 16. Carlos Vardasca, 2005
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