terça-feira, 29 de abril de 2008

Possivelmente serão pessoas diferentes




Foi com redobrada atenção que li o comentário de Fernando Ferrão, sobre um texto colocado por mim no blog com o título "Os homens requisitam-se, mas as Berliets custam 400 contos cada uma", comentário que desde já o agradeço e a que presto os esclarecimentos necessários com muito gosto.
Começo por referir que não coloco em causa o prestígio, a capacidade de chefia e o humanismo desse oficial a que se referiu aquele companheiro ex-combatente, mas gostaria de acrescentar que possivelmente não estaremos a falar da mesma pessoa, tendo em conta os dados que cita no seu comentário assim como os que vou explicitar. Digo que não é o mesmo oficial porque o que eu conheci em Nangade no período de 1971-1972, comandava a CCS do Batalhão de Artilharia 2918 embora fosse um oficial de Cavalaria (e não um Batalhão de Caçadores como refere aquele amigo) ao qual a minha Companhia (Companhia de Caçadores 3309) ficou adida, apesar de estar estacionada num outro aquartelamento junto ao rio Rovuma (Tartibo). Por outro lado, e a atestar que de facto estaremos possivelmente a falar de pessoas diferentes, nesse período quem estava em Moçimboa do Rovuma era a CCS do meu batalhão, o Batalhão de Caçadores 3834, e não a CCS do Batalhão de Cavalaria 2848, que poderia lá ter estado mas numa outra altura, possivelmente.
Conforme documentos que me foram cedidos pelo Arquivo Histórico Militar de Lisboa, o Batalhão de Artilharia 2918 de que fazia parte o Tenente Coronel Vasconcelos Porto a que eu faço referência, começou a ser rendido em Nangade pelo Batalhão de Artilharia 3876 no dia 27 de Janeiro de 1972, embora alguns dos seus efectivos lá permanecessem por mais algum tempo até à sua rendição total.
Acrescento que, no período em que eu estive em Nangade (de 25 de Fevereiro de 1971 a 03 de Novembro de 1972) as únicas companhias que ali estavam estacionadas eram (para além da CCS do Batalhão de Artilharia 2918), as Companhias de Artilharia 2745, a Companhia de Engenharia 2736 e mais tarde a CCS do Batalhão de Artilharia 3876 (que foi render o B.ART. 2918), assim como a Companhia de Artilharia 3506 que foi render a minha Companhia ao Tartibo em 03 de Fevereiro de 1972.
Quanto ao meu comentário, confirmo-o, assim como possivelmente a maioria dos soldados que passaram por Nangade naquele período, pois o assunto foi mais que comentado, se já não bastasse eu ter presenciado aquele episódio, uma vez que estava junto do alferes que comandava a coluna de reabastecimento quando ocorreu a emboscada e posteriormente o diálogo que se seguiu via rádio, para pedir o apoio aéreo para as evacuações a que faço referência no blog.
Prestados estes esclarecimentos, penso que a atestar pelos dados que o amigo Fernando Ferrão citou, fica mais claro que de facto se tratam de pessoas diferentes (embora com nomes idênticos) a que cada um de nós faz referência, agradecendo desde já a forma como colocou a questão.
Junto deste esclarecimento e a confirmar a veracidade da permanência daquele oficial em Nangade, junto um documento assinado por si no período quando estava naquele Aquartelamento a comandar a CCS o B.ART. 2918, assim como uma foto do mesmo junto do General Kaúlza de Arriaga e do então Governador Geral de Moçambique Engenheiro Pimentel dos Santos numa das suas visitas a Nangade, tirada na varanda da casa do Administrador de Posto junto daquele Aquartelamento.
Ao companheiro Fernando Ferrão, o meu obrigado e um abraço amigo.

Carlos Vardasca
29 de Abril de 2008
Foto: O Tenente Coronel Vasconcelos Porto entre o General Kaúlza de Arriaga, um ex-guerrilheiro da FRELIMO e o Governador Geral de Moçambique Eng. Pimentel dos Santos. Nangade, 17 de Julho de 1972
Documento: Comentário efectuado do pelo Tenente Coronel Vasconcelos Porto, a propósito da captura pela Companhia e Caçadores 3309 de um barco à FRELIMO no dia 25 de Junho de 1971. O documento tem no seu topo a referência ao B.ART. 2918 assim como a assinatura do referido oficial, o que comprova a sua estada em Nangade a comandar a CCS do Batalhão de Artilharia 2918.






segunda-feira, 28 de abril de 2008

"O que se escondia para lá do arvoredo"


(...) Apesar do seu vaguear lento, por vezes agonizante, as Berliets lá iam rasgando espaço no silêncio da mata, interrompido esporádicamente pelo piar agitado de algumas aves tropicais.
A beleza da paisagem mantinha-se indiferente ao seu esventrar, e por vezes obrigava-nos a mergulhar o olhar na sua frescura verdejante sem que pudéssemos traduzir os medos que fingíamos dispensar. Nós tínhamos consciência disso. Sabíamos que estávamos em guerra e, qualquer descuido para admirar o fascínio do manto esverdeado que nos envolvia poderia ser fatal, mas era totalmente impossível ficarmos indiferentes à beleza que se "espreguiçava" mesmo à nossa frente. Não sabíamos "quem tinha pintado aquele quadro imenso", que apesar de belo nos arrepiava de tanto medo, mas convictos de que cada pincelada que os nossos olhos inquietos conseguiam admirar pareciam ter sido desenhadas num cavalete montado algures por detrás de uma qualquer acácia já estrangulada pelas lianas.
Vezes sem conta a Companhia de Caçadores 3309 percorreu aquela espécie de "anfiteatro", coberto por um manto verde que nos roubava a luz do sol, "onde as pancadas de Molière soavam como um estrondo, anunciando o início da peça tragicamente a levar à cena, onde a escuridão se abatia sobre quem tombava no palco embora não fizesse parte do seu elenco".
Era de facto um percurso muito belo mas que encerrava em si uma tremenda inquietação. Com o suor a inundar os nossos olhares exaustos que iam contando cada planta que caía; cada arbusto que mexia ou tentavam traduzir outros sons que não os do roncar das Berliets, a picada entre Nangade e Pundanhar, apesar do desconforto da guerra "era um gigantesco quadro colectivo que os que se diziam ser seus autores defendiam agora com outros pincéis mais bélicos, de estranhos intrusos que há muito o teimavam como se fora seu".
Debaixo daquelas frondosas mas escuras sombras dissiparam-se tantas esperanças, cuja juventude pereceu "sem que sobre eles fosse derramado um pingo de seiva"; esses sim, verdadeiros heróis daquela façanha trágico-marítima de má memória, desaparecidos sem glória, "para que outros engordassem e se espojassem à volta daquela imensa gamela" só quebrada numa madrugada de Abril (...)
Carlos Vardasca
28 de Abril de 2008
Foto: Algures na Picada entre os Aquartelamentos de Nangade e Pundanhar. Cabo Delgado, Norte de Moçambique (foto cedida por Ilídio Costa).


quinta-feira, 24 de abril de 2008

"Parto de Abril"


Poemas trilhados pela denúncia
Prosas rasgadas na censura,
Ventos que não sopram de feição,
Grades, algemas, qual tortura.


Gentes que suam sem protesto,
Fatos de ganga gastos de cansaço,
Rostos silenciados pela noite,
Presos, carentes de um abraço.


Noite submersa manhã revolta,
Gargantas secas gritos roucos,
Fardas ingénuas na penumbra,
Vampiros do regime, depostos, loucos.


Ruas inundadas de mudança
Nascem, correm multidões mil,
Liberdade arrancada parida da revolta,
Abraça o nascer de Abril.


Carlos Vardasca
24 de Abril de 2008

Foto de Alfredo Cunha

"Tão tarde pela madrugada"


(...) Quando os homens são maiores que o chão que pisam não há limites para a ambição. Chegara pois o tempo do Infante que via sempre um pouco mais para além do horizonte; um homem que não cabia no chão que lhe deram.
Foi por isso que Portugal ficou maior que Portugal.
Portugal do tamanho da visão de um homem.
Portugal hiperbólico, ubíquo. global.
O Infante ia à frente da história e levava consigo a nação inteira, e a história teve que seguir atrás de Portugal.
Ainda a Europa toda pensava que o mar acabava onde começava o medo e o Infante inventou o mar para além do medo e deu-lhe Portugal como dono.
E Portugal cresceu até onde existia mundo; porém nenhuma pátria é suficientemente grande se não deixar crescer os homens dentro de si.
E também nenhum despotismo é suficientemente eficaz para evitar que um dia os negreiros se transformem em escravos.
E assim chegara o tempo do segundo infante, o descobridor de Portugal para aquém do medo, o navegador às arrecuas, o anti-Infante.
Já a Europa toda sabia que a liberdade era a maior dimensão humana e Portugal ainda cultivava a pequenez do medo.
Portugal implodido, paroquial, microcéfalo, autofágico.
Que imperialista pode ser tão tacanho que a sua ambição ocupe apenas o espaço dentro das próprias botas?
Em Portugal, homens livres, só os que estavam na prisão.
Os jovens combatiam em distantes paragens enquanto os seus pais se sentiam cativos em casa.
Os camponeses abandonavam a terra solteira, partindo como fazem as andorinhas quando já não acreditam na Primavera.
E quando os filhos da pátria regressavam finalmente a casa; a juventude amortalhada de silêncio, o último grito congelado no rosto; traziam no sítio destinado à alma, o relento pútrido da guerra longínqua.
Um manto de viuvez cobria as aldeias e os campos e uma dor calada asfixiava a esperança no peito.
Portugal estendido pelo mundo inteiro e os portugueses dentro de casa com falta de ar.
Mas nenhum tirano pode mobilizar a coragem do seu povo para defender um império distante e impor que viva cobardemente na sua pátria.
Por isso não faltaram vozes ocultas a traficarem a esperança nas esquinas cúmplices da noite.
Há sempre quem mantenha o lume aceso, mesmo quando ele esmorece na alma dos homens.
Há sempre quem sopre, sopre de mansinho, como quem passa a palavra, para que no âmago do carvão mais escuro se mantenha uma, ainda que ténue, brasa de esperança.
Que longa que foi a noite. Como tardava a amanhecer. Como é sempre mais difícil dobrar o insignificante Cabo Bojador, dentro de nós.
Porém finalmente os portugueses descobriram Portugal, acordando nele.
Nunca as armas foram empunhadas tão rente à poesia.
Nunca antes os soldados combateram dançando com o povo.
Nunca o ar madrugara tão leve.
E o Adamastor façanhudo que nos asfixiava transformou-se num rato, temendo a vingança daqueles que anoiteceram oprimidos e amanheceram livres.
Os tiranos tremeram.
Os esbirros assanharam-se inutilmente de pavor.
E os muito, muito estúpidos ainda continuam a perguntar-se porque vieram de repente todos os portugueses para a rua.
Os portugueses apenas navegaram mais uma vez para além do medo.
Os portugueses vieram para a rua só para respirar.
Manuel Bastos
23 de Abril de 2008
Foto: Manifestação popular junto ao Teatro Trindade no dia 26 de Abril de 1974 (foto de Guilherme Silva)

sábado, 19 de abril de 2008

"Os homens requisitam-se, mas as Berliets custam 400 contos cada uma"



(...) Já há alguns dias que os abastecimentos em Nangade escasseavam, e as tropas se socorriam das rações de combate para sobreviver. A actividade da FRELIMO era bastante intensa, e por cada coluna de reabastecimento que se efectuava regra geral duas Berliets eram destruídas pelas minas anti-carro montadas pelos guerrilheiros na picada.
Com o Aquartelamento de Nangade carente de abastecimentos, foi necessário realizar nova coluna de reabastecimento a Palma, tendo esta saído de Nangade de madrugada, pelas 05,00 horas ainda o cacimbo flutuava sobre o capim. No seu caminhar lento e agonizante, as Berliets seguiam penetrando na densa mata verdejante indiferentes à beleza de alguns dos seus recortes, apesar da chuva que ameaçava cair.
Ao quilómetro 12, um estrondo imenso veio interromper a falsa tranquilidade que envolvia os militares que faziam escolta à coluna, e uma nuvem medonha de cor muito escura elevou-se por cima da copa das árvores e envolveu toda a mata circundante, enquanto as Kalashnikov dos guerrilheiros matraqueavam da mata flagelando as viaturas que seguiam logo atrás do "Rebenta Minas". Avaliados os estragos daquela violenta explosão de duas minas anti-carro e da emboscada que foi desencadeada logo de seguida, verificou-se a existência de dois mortos e quatro feridos, um deles com gravidade, tendo sido de imediato pedida a sua evacuação para o Hopital de Mueda. O Alferes que comandava a coluna de reabastecimento seguia ao meu lado na viatura com o soldado rádio telegrafista, e quando ouvia a sua comunicação do ocorrido para Nangade e a pedir os helicópteros, notei que a sua expressão se alterava significativamente. Em Nangade, quem comunicava com a coluna era o Tenente Coronel Vasconcelos Porto do Batalhão de Artilharia 2918, e perguntava ele ao Alferes se as Berliets tinham ficado muito danificadas.
Insurgindo-se contra esta falta de sensibilidade, o Alferes, não respeitando a comunicação que era obrigatório ser efectuada em código, respondeu-lhe imediatamente em claro e bastante indignado:
-Oh meu Coronel! - Então nós estamos aqui debaixo de uma chuva torrencial, com dois mortos e quatro feridos à espera do helicóptero, e em vez de me perguntar pelo estado dos homens pergunta-me se as Berliets estão muito danificadas?
Ao que o Tenente Coronel respondeu do outro lado:
- Sabe meu alferes, os homens requisitam-se a vêm às carradas dentro dos navios e as Berliets custam 400 contos cada uma.
Antes de esperar qualquer resposta da parte do Alferes o Tenente Coronel prosseguiu:
- E já agora, por questionar a minha observação e por ter violado o código de transmissões em plena acção de combate, ordeno-lhe que, quando regressar dessa missão, que se apresente no edifício de comando que eu quero ter uma conversa consigo.
Regressado ao fim de quatro dias da missão de reabastecimento, aquele Alferes, depois de se ter apresentado no edifício de comando, foi levado por dois agentes da PIDE/DGS para Lourenço Marques e nunca mais se soube do seu paradeiro (...)

Carlos Vardasca
19 de Abril de 2008

Foto: Momento da evacuação dos soldados vítimas daquele ataque dos guerrilheiros da FRELIMO à coluna de reabastecimento, efectuado na picada entre os Aquartelamentos de Nangade e Pundanhar.



"Há festa no cais de Lourenço Marques"


(...) Depois de ter feito escala por Luanda em 05 de Fevereiro, nove dias depois o navio "Niassa" atracava no porto de Lourenço Marques (Maputo) a 14 de Fevereiro de 1971 pelas 10,00 horas. O navio pareceria "exausto".
Depois de encostar à muralha, o velho navio parecia querer descansar de uma viagem prenhe de angústias, onde as incertezas começavam a avolumar-se à medida que os soldados se aproximavam da frente de batalha. Foi ali naquele porto que a todo o Batalhão foram entregues as G3 e outro material bélico ligeiro, material esse que os iria acompanhar até aos diversos destacamentos onde iriam ficar estacionadas as diversas Companhias que compunham o Batalhão de Caçadores 3834. À chegada do navio "Niassa" àquele porto, aguardava-o no cais uma fanfarra do exército e um cordão de tropas da Polícia Militar.
Os primeiros, entoavam uma marcha triunfal, que pretendia exaltar o espírito "patrioteiro" de quem há muito fora "arrancado do aconchego familiar" e se sentia prisioneiro do enjoo, e os segundos, tentando prestar guarda de honra a um amontoado de jovens que, depois de viajarem "acorrentados" nos porões, se viam agora alvo de uma cerimónia efémera, elevados momentaneamente à categoria de "celebridades" que muito rapidamente seriam esquecidas.
Sobre a população civil, nem viva alma compareceu no cais para "glorificar" aqueles militares, que a uns ia proteger alguns interesses e permitir-lhes uma vida faustosa na capital, mas a outros (apesar dos fracos recursos), garantir um ilusório "novo riquismo" personificado na "criadagem que mantinham a troco de nada", e a exibiam como troféus nas fotos que enviavam para a "Metrópole".
Era frequente ouvir-se nos seus "bocejos coloniais" um total desprezo por tudo o que se passava mais a norte, dizendo, com alguma desenvoltura e arrogância, revelando um total desprezo por todos quantos foram "arrancados" dos seus lares e ali chegavam para proteger a sua opulência:
- Guerra aqui? Nós não sentimos nada! - essa coisa das minas e das emboscadas e ataques, isso é lá para cima para norte, e além disso não é nada connosco".
Indiferente a tudo isto, o "Niassa", esse monte de ferro que há muito devia estar num qualquer estaleiro de desmantelamento, largou do cais de Lourenço Marques no dia seguinte pelas 21,00 horas rumo a Nacala, onde chegaria pelas 16,00 horas, já sem a Companhia de Caçadores 3311 que desembarcara em Lourenço Marques para seguir aerotransportada para Negomano, seu local de destino, onde chegou no dia 18 do mesmo mês (...)

Carlos Vardasca
19 de Abril de 2008

Foto: Momento da chegada do navio "Niassa" ao porto de Lourenço Marques (Maputo) no dia 14 de Fevereiro de 1971, transportando a bordo, entre outros Batalhões, o Batalhão de Caçadores 3834 de que fazia parte a Companhia de Caçadores 3309.


quinta-feira, 10 de abril de 2008

"Um regresso inglório"


(...) Dizem alguns historiadores, que a batalha de La Lys na I Grande Guerra Mundial (1914-1018) travada em 9 de Abril de 1918, foi mais um pretexto para Salazar criar (anos mais tarde) mais um mito para glorificar a epopeia além fronteiras das tropas portuguesas. Na verdade, as tropas alemãs nessa batalha impuseram uma estrondosa derrota às tropas portuguesas, tendo morrido nas nossas trincheiras cerca de 7 mil homens e feitos 6585 prisioneiros. As tropas portuguesas, que na sua grande maioria eram oriundas dos meios rurais, intervieram naquele conflito mal preparadas, mal armadas e sem o mínimo de preparação para nela intervirem, ao ponto de, num clima extremamente frio usarem fardas de verão, dormirem com mantas enlameadas devido ao estado degradante das trincheiras onde estavam posicionados, e sujeitas ao abandono a que foram votados por Lisboa. Daniel Vardasca (meu avô) participou nessa batalha e foi feito prisioneiro dos alemães até ao final do conflito. Em miúdo, e durante as férias do colégio que as ia passar a Santarém, ouvia em casa do meu avô várias histórias passadas naquele período, que foram bem marcantes para quem as viveu. Durante a sua prisão no campo de prisioneiros, dizia ele, que devido à escassez de alimentos, apanhavam ratos que circulavam pelas velhas casernas e os assavam, depois de devidamente esfolados. Com o final da I Grande Guerra Mundial e a libertação de todos os prisioneiros portugueses, estes foram embarcados em vários navios e enviados para Lisboa. Num deles, o vapor "Carvalho Araújo", chegou o meu avô a Lisboa, e sobre a sua chegada lembro-me de uma outra história contada por si. Segundo ele, Maria Branca Vardasca (sua mulher e minha avó) foi esperá-lo ao Cais de Alcântara, assim como milhares de familiares dos soldados que regressavam dos campos de prisioneiros. O meu avô estava irreconhecível, de barba e cabelo bastante grandes, muito sujo e muito magro que estava, que a própria mulher não o reconheceu, quando esta se lhe dirigiu a perguntar se o Daniel Vardasca vinha naquele navio.
Admirado e extremamente comovido por a mulher não o reconhecer, abraçou-a com tanta força e chorou no seu ombro demoradamente, até que a sua presença fora reconhecida e a minha avó se apercebeu de quem a abraçava (...)
Carlos Vardasca
10 de Abril de 2008
Foto: Corpo Expedicionário Português na despedida para a frente de batalha, e Daniel Vardasca a quando da sua incorporação na Guarda Nacional Republicana.

terça-feira, 8 de abril de 2008

"Eles estavam em todo o lado onde houvesse resistência"


(...) Quando se iniciou a Guerra Colonial, o esforço da PIDE-DGS em tentar controlar todos os movimentos que lhes parecessem subversivos, fez com que esta polícia política fizesse destacar agentes seus para a maioria dos Aquartelamentos situados nas zonas de conflito, em especial para o norte de Moçambique onde a guerra era mais intensa. Não era difícil descortinar no meio de tanto militar e das populações dos aldeamentos onde andava um agente da PIDE-DGS, pois eles passeavam-se por Nangade exibindo a sua indumentária colonialista, assistindo sempre à chegada dos helicópteros ou dos Táxi-aéreos ou assistindo a qualquer cerimónia oficial.

Sempre que eram capturados elementos da guerrilha da FRELIMO, lá estavam eles, depois do tradicional interrogatório que era sempre violento, a encaminhá-los para o Táxi-aéreo para serem levados para a Ilha do Ibo e aí serem encarcerados até à sua libertação que não se sabia quando ou até serem esquecidos.

Pior sorte (dizia-se no "jornal da caserna" mas também confirmado por alguns pilotos) tinham aqueles guerrilheiros que eram transportados de helicóptero e não chegavam ao seu destino.

Alguns guerrilheiros (dizia-se), depois de devidamente amarrados e introduzidos no helicóptero e este levantar voo, antes de chegar ao seu destino eram lançados sobre o Oceano Índico tendo uma morte horrenda, sendo esta prática uma violação dos mais elementares direitos humanos dos prisioneiros em tempo de guerra, consagrados na Convenção de Genebra em 1949 (...)

Carlos Vardasca
08 de Abril de 2008

Foto: Dois guerrilheiros da FRELIMO aguardam o embarque no Táxi-aéreo que os levará para a prisão na Ilha do Ibo. O indivíduo que está de costas é o famigerado agente da PIDE-DGS destacado no Aquartelamento de Nangade.

"Sempre atentos à correspondência"


(...) A minha Companhia já tinha sido transferida para o Aquartelamento de Nova Torres e, muito poucos, na sua maioria condutores, ficámos em Nangade a prestar assistência às colunas de reabastecimento. Tivemos algum tempo sem qualquer responsável da nossa Companhia, e, quando se efectuava a distribuição do correio, tínhamos que nos dirigir ao Batalhão de Artilharia 2918 que fazia chegar a correspondência destinada aos soldados da C.CAÇ. 3309 que ali tinham ficado adidos. Naquele dia estranhei não ter correio, pois aguardava uma encomenda com algumas revistas, mas disse cá para mim: " - Possivelmente vem no helicóptero da semana seguinte". Quando me dirigia para a caserna ouço alguém que me chama e me pergunta:

"- És tu que és o Braz da C.CAÇ. 3309?"

Era um Alferes da CCS do B.ART. 2918 que me pediu para o acompanhar ao edifício de comando. Quando entrei, reparei que o tenente Coronel Vasconcelos Porto (comandante daquela companhia) tinha na mão uma encomenda que disse me ter sido enviada da "Metrópole" e que fez questão de ser ele a entregar-ma, para que a mesma não fosse violada, dado que o embrulho vinha todo rasgado podendo ver-se o seu conteúdo, onde reparei que eram as revistas "Salut les Copains" (1) que recebia com regularidade e que pensava não terem chegado naquele helicóptero. Quando me preparava para retirar e agradecer a preocupação, um indivíduo à civil que se encontrava junto do Tenente Coronel (mais tarde vim a saber que era da PIDE-DGS) interferiu dizendo-me:
" - Oh nosso soldado, esqueceu-se disto, e tenha lá cuidado com essas leituras" - acrescentando: " - Essa mania de meterem estes livrécos no meio de revistinhas inocentes é uma táctica que nós já a conhecemos de ginjeira".
Era a edição 41 dos Cadernos D.Quixote (2) que versava o tema da Guerra do Vietname, e que pareceu incomodar tanto aquele eunuco do regime, ao ponto de fazer toda aquela encenação que pareceu ter a conivência daquele oficial. Antes de sair ainda me aconselhou que lesse antes as foto novelas da Corin Tellado ao que eu, disfarçando a minha ingenuidade, ainda lhe disse que aqueles Cadernos eram de venda e de circulação livre e Editados pelas Edições D. Quixote, ao que o agente respondeu já um pouco agressivo:
" - Oh nosso soldado, deixe-se de merdas; - são de venda livre mas nós sabemos a quem se dirigem e a mensagem que pretendem transmitir"
A partir daquele dia, fiquei sempre com a sensação de que as encomendas que me eram dirigidas eram sistematicamente violadas, por muito bem coladas que elas estivessem e sem qualquer suspeita de quem me as entregava (...)
Carlos Vardasca
08 de Abril de 2008
(1) Salut les Copains, revista musical francesa muito em voga na época.
(2) Cadernos D.Quixote nº 41 das Publicações D.Quixote, de Novembro de 1971.

"Aplaudidos à partida, esquecidos à chegada"


(...) Os antigos combatentes são muitas vezes "aplaudidos à partida e, regra geral, esquecidos à chegada", afirmou o Presidente da Liga dos Combatentes, General Chito Rodrigues aos jornalistas após a cerimónia de abertura da XXI Conferência dos Antigos Combatentes e Vítimas de Guerra Europeus no Centro Cultural de Belém.
Aquele General afirmou ainda que "A Liga tem recebido apoios, simplesmente os problemas são diversos e o estado de saúde dos antigos combatentes é terrível", sublinhando que "Temos leis difíceis de implementar e alguns serviços não respondem convenientemente como, por exemplo, e rede nacional de saúde", acrescentando ainda que "Os antigos combatentes não são convenientemente atendidos, ou porque o médico de família não sabe preencher os papéis ou porque não existe psiquiatra nos centros de saúde". Da agenda de trabalhos da conferência, destacam-se questões como a cooperação internacional de saúde física e mental dos Veteranos de Guerra, análise dos resultados da Conferência Internacional sobre a Segurança Europeia e o Interesse Nacional e a apresentação da Federação Mundial dos Veteranos.
Portugal está representado nesta reunião que decorre até ao dia 11 de Abril, pela Associação dos Deficientes das Forças Armadas e pela Liga dos Combatentes que organizam o evento. A primeira apresentará à discussão quatro projectos de resoluções (versando sobre o carácter indemnizatório das pensões e outros abonos, isenção social dos deficientes das Forças Armadas, assistência médica aos deficientes militares e a questão dos combatentes africanos.
A Liga dos Combatentes apresentará um projecto sobre stress pós-traumático e outro sobre projectos estruturantes para os antigos combatentes (...)


Texto retirado da Agencia LUSA-Agência de Notícias de Portugal, S.A. em 07 de Abril de 2008.
Foto: Embarque de mais um contingente de tropas a bordo do navio "Niassa", com destino à então denominada Província de Moçambique.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

"A malta gostou de lá estar"


(...) Geralmente, "quem toca o clarim" é o Arteiro (1), que anualmente (com arte e engenho) "toca a reunir" para que a malta compareça aos Encontros Nacionais da Companhia de Caçadores 3309, e a malta, como "obediente" que é e porque gosta de lá estar, lá vai comparecendo transportando em si uma imensa satisfação. Esta espécie de "chamada às trincheiras" já se realiza há 18 anos, tendo-se realizado a primeira reunião preparatória dos Encontros em 1988 no Porto, no restaurante "A Bruxa" (com a presença de apenas nove elementos) e o último em Pombal no passado dia 08 de Março de 2008 no restaurante Litoral.
Há quem venha todos os anos do Açores e até de França, porque vê naqueles momentos uma profunda e transbordante alegria, onde cada um também revê companheiros que há muito deixara de lhes "pôr a vista em cima" (como foi o caso deste ano do Valoura e do Pinheiro, que desde que regressámos de Moçambique nunca mais ninguém os viu) e agora voltaram ao nosso convívio ao fim de 35 anos de "deserção das fileiras". Nestes Encontros, as conversas são sempre tão transversais, que passam pela vida profissional, pela "chacota" amiga do estado físico já bastante volumoso de cada um, indo sempre, mesmo que não seja intencional nem com qualquer dose de saudosismo (como é óbvio) resvalar para os momentos conturbados por que passou a C.CAÇ. 3309 durante a sua presença no norte de Moçambique. No meio do entusiasmo que por vezes roça o tom ingenuamente "patrioteiro", lembram-se os locais das emboscadas, os companheiros tombados em combate; recordam-se tragédias, momentos de desânimo e de angústia, onde por vezes as lágrimas não perdem a oportunidade de escorrer pela face já rugosa do tempo, mas também momentos de alegria por partilharmos aquele dia com a nossa presença, num ambiente salutar, cuja confraternização nos fortalece como homens que presenciámos os mesmos medos e as mesmas incertezas. Só quem não presencia estas reuniões é que não compreende o porquê de tanta insistência em manter estes encontros de ex-combatentes. Por isso é que eu concordo que, por ser tão específica e diversificada a experiência de cada Companhia que compunha o Batalhão de Caçadores 3834 nas suas áreas de intervenção; por serem tão distintos e com características próprias os afectos que se forjaram entre si e que sobreviveram dos "escombros" daquela "breve pausa num tempo das nossas vidas" que nos retirou um pedaço da nossa juventude; por considerar que cada experiência é única e que cada um quer partilhá-la somente entre aqueles que a viveram como se só eles a soubessem interpretar, sou da opinião de que, para além dos Encontros que se poderão realizar esporadicamente a nível de Batalhão (onde cada um acabará, por uma razão lógica, por partilhar experiências e conviver mais com quem lhe é mais próximo e se identifique) que se continue no entanto a privilegiar anualmente os Encontros Nacionais ao nível das Companhias (onde e quando muito bem entenderem as respectivas Comissões Organizadoras) como forma de se manter e estreitar os laços entre aqueles que partilharam e comungaram das mesmas alegrias e angústias (...)
Carlos Vardasca
02 de Abril de 2008
Foto: XVIII Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309 realizado em Pombal, no dia 08 de Março de 2008
(1) João da Silva Arteiro, companheiro responsável (embora coadjuvado por outros) pela organização dos Encontros Nacionais da C.CAÇ. 3309 desde que estes se realizam até aos dias de hoje.