(...) Quando os homens são maiores que o chão que pisam não há limites para a ambição. Chegara pois o tempo do Infante que via sempre um pouco mais para além do horizonte; um homem que não cabia no chão que lhe deram.
Foi por isso que Portugal ficou maior que Portugal.
Portugal do tamanho da visão de um homem.
Portugal hiperbólico, ubíquo. global.
O Infante ia à frente da história e levava consigo a nação inteira, e a história teve que seguir atrás de Portugal.
Ainda a Europa toda pensava que o mar acabava onde começava o medo e o Infante inventou o mar para além do medo e deu-lhe Portugal como dono.
E Portugal cresceu até onde existia mundo; porém nenhuma pátria é suficientemente grande se não deixar crescer os homens dentro de si.
E também nenhum despotismo é suficientemente eficaz para evitar que um dia os negreiros se transformem em escravos.
E assim chegara o tempo do segundo infante, o descobridor de Portugal para aquém do medo, o navegador às arrecuas, o anti-Infante.
Já a Europa toda sabia que a liberdade era a maior dimensão humana e Portugal ainda cultivava a pequenez do medo.
Portugal implodido, paroquial, microcéfalo, autofágico.
Que imperialista pode ser tão tacanho que a sua ambição ocupe apenas o espaço dentro das próprias botas?
Em Portugal, homens livres, só os que estavam na prisão.
Os jovens combatiam em distantes paragens enquanto os seus pais se sentiam cativos em casa.
Os camponeses abandonavam a terra solteira, partindo como fazem as andorinhas quando já não acreditam na Primavera.
E quando os filhos da pátria regressavam finalmente a casa; a juventude amortalhada de silêncio, o último grito congelado no rosto; traziam no sítio destinado à alma, o relento pútrido da guerra longínqua.
Um manto de viuvez cobria as aldeias e os campos e uma dor calada asfixiava a esperança no peito.
Portugal estendido pelo mundo inteiro e os portugueses dentro de casa com falta de ar.
Mas nenhum tirano pode mobilizar a coragem do seu povo para defender um império distante e impor que viva cobardemente na sua pátria.
Por isso não faltaram vozes ocultas a traficarem a esperança nas esquinas cúmplices da noite.
Há sempre quem mantenha o lume aceso, mesmo quando ele esmorece na alma dos homens.
Há sempre quem sopre, sopre de mansinho, como quem passa a palavra, para que no âmago do carvão mais escuro se mantenha uma, ainda que ténue, brasa de esperança.
Que longa que foi a noite. Como tardava a amanhecer. Como é sempre mais difícil dobrar o insignificante Cabo Bojador, dentro de nós.
Porém finalmente os portugueses descobriram Portugal, acordando nele.
Nunca as armas foram empunhadas tão rente à poesia.
Nunca antes os soldados combateram dançando com o povo.
Nunca o ar madrugara tão leve.
E o Adamastor façanhudo que nos asfixiava transformou-se num rato, temendo a vingança daqueles que anoiteceram oprimidos e amanheceram livres.
Os tiranos tremeram.
Os esbirros assanharam-se inutilmente de pavor.
E os muito, muito estúpidos ainda continuam a perguntar-se porque vieram de repente todos os portugueses para a rua.
Os portugueses apenas navegaram mais uma vez para além do medo.
Os portugueses vieram para a rua só para respirar.
Manuel Bastos
23 de Abril de 2008
Foto: Manifestação popular junto ao Teatro Trindade no dia 26 de Abril de 1974 (foto de Guilherme Silva)
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