quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

"... Pequena crónica de uma viagem"



(...) Como a próxima e primeira escala era em Angola no porto da cidade de Luanda, alguns soldados refugiavam-se no fundo dos porões, rabiscando nos aerogramas pequenos "gatafunhos" que diziam ser notícias frescas para tranquilizar os familiares, enquanto outros, recostados num qualquer recanto do navio, iam tragando um naco de presunto e enxaguando a goela de "tintol" para dar sossego à sua inquietação. Num outro recanto e numa algazarra que mais parecia uma sala onde se transaccionavam valores bolsistas, amontoados sobre um baralho de cartas que depois de viradas distribuiam bastas tristezas e outras tantas alegrias, alguns soldados faziam tilintar moedas que já pareciam "cansadas e fartas de pertencerem a diversos donos", num vaivém que provocava a angústia de quem não tinha sorte ao jogo. Esgotadas as parcas moedas e "chutados para fora daquela contenda", apenas lhes restava a tranquilidade do porão escurecido e aí adormecer, até que a maresia lhes refrescasse as ideias e lhes desse outro alento para voltarem à "refrega da batota" do dia seguinte.
Nos salões do navio respirava-se outro ambiente, onde os oficiais e sargentos disfrutavam de um outro conforto e comodidade (diziam uns ser uma dádiva do regime e um direito de classe, enquanto outros, muito poucos, diziam ser uma afronta aos demais que ali navegavam para uma igual missão) que contrastava com a incomodidade de quem, mais parecendo saído do fundo de uma mina, sentado no convés, fazia dele sua sala de estar, e da maresia do Atlântico um sopro que lhes devolvia um pedaço da dignidade tão "amordaçada" no fundo dos porões (...)

Carlos Vardasca
31 de Janeiro de 2008
Foto 1: Soldado Condutor Almeida e eu (junto ao garrafão) da C.CAÇ. 3309 e outros dois companheiros do B.CAÇ. 3834.
Foto 2: Festa de aniversário do 1º Sargento Oliveira a bordo do Niassa.
Junto dele estão o Capitão Hélio Moreira, 1º Sargento Barreto (já falecido) e os Furrieis Vilela e Barbudo, todos da Companhia de Caçadores 3309.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

"... Homem ao mar... homem ao mar!

(...) Depois de dias antes, e quando o "Niassa" navegava nas águas quentes do Golfo da Guiné, onde se efectuou uma evacuação em alto mar para prestar assistência a um soldado que escorregara numa escada do navio e fracturara a coluna, o "Niassa" navegava agora com destino a Luanda e a um dia da sua chegada, quando a aparente acalmia fora interrompida por gritos de aflição:
- Homem ao mar... homem ao mar!
Logo todos nós fomos alertados para a ocorrência e corremos para o convés, saindo dos porões onde nos tinham encafuado "mais parecendo ratos que fogem da sua toca inundada". O "Tarzan"(1) (como ficou a ser conhecido depois deste acto irreflectido), numa atitude de desespero devido a uma discussão que tivera com Furriel da sua Companhia, e por este o ter repreendido por andar sempre empoleirado nos mastros do navio, atirou-se para as águas profundas do Atlântico. De imediato foram lançadas bóias de sinalização e iniciaram-se as manobras de salvamento, com aquele navio de transporte de tropas a desviar-se ligeiramente da sua rota e navegando em círculo, de onde foram arreadas algumas baleeiras com pessoal médico a bordo para lhe serem prestados os primeiros socorros. O mar estava calmo mas por ser de noite, as buscas foram dificultadas para o resgate do "Tarzan" daquelas águas infestadas de tubarões, tendo a sua "sorte" sido outra se da sua queda tivesse resultado algum ferimento, tornando-se presa fácil daqueles seláquios esfomeados.
As operações de busca não foram fáceis devido à escuridão, tendo a baleeira regressado uma das vezes ao navio sem qualquer contacto com o náufrago. Foi devido à insistência do Comandante Militar do navio (um oficial de Marinha) que ordenou aos que procuravam o náufrago que fizessem mais uma tentativa, tendo-lhes indicado outra zona para baterem.
Foi ao cabo de cerca de uma hora que se ouviram os gritos do "Tarzan" na noite, tendo sido recolhido pelos salvadores.
Contrariando as cenas que nos eram familiares na nossa infância e projectadas nos ecrans de cinema, naquele dia 04 de Fevereiro de 1971 e com 11 dias de navegação, "não foi o Tarzan que saltou das lianas para salvar a sua amada Jane, mas foi aquele salvo de ser tragado por um imenso monstro que diziam existir entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio" (...)

Carlos Vardasca
29 de Janeiro de 2008

(1) Óscar de Oliveira Martins, Soldado Cozinheiro da CCS do Batalhão de Caçadores 3834.
Foto: O Óscar exibe um troféu de caça no Aquartelamento de Moçimboa do Rovuma. Moçambique 1971



sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

"...Quando as cheias nos inundaram alma"


(...) O que está acontecer no vale do Zambeze, com as cheias a inundarem vastas zona de Moçambique provocando o êxodo das populações, também a Companhia de Caçadores 3309 foi vítima desse flagelo quando ocupou o Aquartelamento de Nova Torres nas margens do rio Rovuma, junto à fronteira com a Tanzânia. Sabendo de que a zona era uma zona facilmente inundável e não tinha condições de habitabilidade devido às chuvas sazonais que provocavam grandes inundações no Aquartelamento, as chefias militares do sector insistiam para que a C.CAÇ. 3309 permanecesse naquele local dado tratar-se de uma zona de infiltração da guerrilha da FRELIMO, apesar de saberem que os soldados daquela Companhia já vinham à cerca de duas semanas improvisando camas em cima das árvores, atando os cobertores aos troncos e aí se refugiarem das águas revoltas dos rios Metumbué e do Rovuma que se juntavam, cujo caudal era engrossado pelas fortes chuvas que se abatiam sobre aquele minúsculo perímetro defensivo. Foram momentos dramáticos vividos, principalmente pelos 1º e 2º Pelotões da C.CAÇ. 3309 que para ali foram enviados inicialmente para render a Companhia de Artilharia 2745 que iria dar início à sua rotação mais para sul, dado que surgiram problemas de saúde na maioria dos soldados originando a evacuação de alguns para o Hospital de Mueda. Alimentados a ração de combate, sem poderem servir-se do forno improvisado para cozer o pão que passou a ser abastecido de helicóptero (que muitas das vezes caía dentro do lodo tornando-o impróprio para consumo), sem água potável e com o correio a ser lançado da mesma forma inutilizando muita da correspondência quando o saco do correio caia em cima das árvores e se rasgava espalhando-o por toda a área inundada, era normal que o moral das tropas se ia esgotando diariamente e a inquietação já estava a não ser fácil de conter.
Tal como em 1971 e no final das escarpas do Planalto dos Macondes, hoje, e em maior dimensão (o que acontece anualmente) as cheias em Moçambique provocam tragédias humanas de dimensões dramáticas, provocando o êxodo de populações das aldeias e das suas áreas de cultivo, contribuindo para o agravar das situações de má nutrição e de doenças num país tão fustigado pela fúria das catástrofes naturais.
É justo que a minha solidariedade seja transmitida àquele povo tão martirizado, embora sabendo que dos salões ministeriais do Maputo tardam soluções para a sua resolução, não sendo justo ainda atribuir ao regime colonial (após 33 anos de independência) a causa de tanto sofrimento.

Carlos Vardasca
29 de Janeiro de 2008

Fotos: 1) Cheias em Moçambique em 2008.
2) Aquartelamento de Tartibo inundado pela junção das águas dos rios Rovuma e
Metumbué, vendo-se em primeiro plano o 1º Cabo Enfermeiro Azevedo da Companhia da Caçadores 3309. Moçambique 1971.




quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

24 de Janeiro de 1971. "Uma viagem de regresso incerto"


(...) O tempo não estava muito diferente do dia de hoje, só que naquela manhã um bando de gaivotas sobrevoava o Niassa, talvez em direcção a uma das lixeiras da cidade de Lisboa, depois de desesperadas terem esperado em vão algum alimento de uma das traineiras que acabara a faina e fundeara no Tejo. As tropas já haviam desfilado defronte da tribuna apinhada de oficiais generais, ladeados por "serviçais ocasionais da caridadezinha" do MNF(1), e estavam agora a ser "empurradas" para o fundo dos porões daquele velho cargueiro, que há muito já deveria ter sido desmantelado num qualquer estaleiro de sucata. Eram cerca de 11,00 horas do dia 24 de Janeiro de 1971, e o Cais de Alcântara assistia ao embarque do Batalhão de Caçadores 3834 composto pela Companhia de Comando e Serviços, da Companhia de Caçadores 3309 (de que eu fazia parte) e das Companhias de Caçadores 3310 e 3311, todas elas com destino ao reforço das tropas estacionadas em Moçambique, dando continuação à ocupação colonial daquele território banhado pelo Índico.
No cais o descontentamento dos familiares era generalizado, ouvindo-se por entre laivos de patriotismo alguns desabafos quase que em surdina, que expressavam outros protestos, mas também uma forte angústia por verem partir mais um familiar, cujos braços deixariam de empurrar o arado e espalhar as sementes na terra, ou de atear o fumeiro até que o cheiro das chouriças trespassasse os telhados de ardósia. Pelas 12,00 horas e após cinco apitos estridentes, o Niassa largara do cais ao som dos gritos e do acenar dos lenços que se transformavam numa onda de ausência colectiva. Amontoados no fundo dos porões, onde outrora se apinharam fartas mercadorias e se respirava um ar de tons ocres que tornava a respiração sufocante, alguns soldados meio pálidos eram presa fácil do enjoo, com o Niassa a deixar-se embalar pelas ondas do Atlântico já muito para lá da Torre do Bugio, enquanto os oficiais e sargentos se "espreguiçavam" nos seus camarotes e se banqueteavam servidos por empregados de mesa nos salões do navio, numa desigualdade tão perversa que aguçava a revolta dos mais inconformados.
Faz hoje 37 anos que iniciámos aquela "odisseia trágico-marítima", dando início a "uma breve pausa num tempo das nossas vidas" de onde alguns de nós não regressaram, arrancados à força de uma vida já gasta de cansaço, "sem jeito nem prosa".
Aqui fica um abraço solidário de quem sobreviveu (...)

Carlos Vardasca
24 de Janeiro de 2008

(1) Movimento Nacional Feminino.
Fotos: 1. Gare Marítima do Cais de Alcântara no dia da partida do Niassa.
2. A bordo do Niassa, num último adeus.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

" ... Há mestres que nunca se esquecem"

(...) Antes de assentar praça no CICA 5 (1) em Lagos, ainda fiz uma incursão embora que breve na Marinha Mercante. Embarquei no navio "Benguela" em 18 de Novembro de 1968, e a bordo daquela geringonça que mais parecia uma lata flutuante, percorri toda a costa ocidental de África desde S.Tomé e Príncipe até à Baía dos Tigres, assim como a oriental desde a Cidade do Cabo até Porto Amélia (Pemba), até ser incorporado no exército em 27 de Julho de 1970. A bordo do "Benguela" conheci o cozinheiro Sungo, personagem bastante interessante originário do enclave de Cabinda, natural da aldeia de Tchinzaze e pertencente à etnia Kongo. O meu camarote ficava em frente do dele, e era com bastante frequência que ouvia o seu potente rádio sintonizar uma estação que debitava uma "lamuria" que eu não entendia. Mais tarde (e porque estabelecemos uma relação de confiança e até de amizade, e soube que ele partilhava das minhas ideias anti-colonialistas) me confidenciou, que aquilo que eu chamava "lamuria" era a "Voz dos Combatentes de Cabinda", transmitida no seu dialecto da mata pelos guerrilheiros da FLEC (2). O cozinheiro Sungo era um excelente profissional de cozinha e uma pessoa muito carinhosa, mas ao mesmo tempo muito revoltado com o comportamento da maioria da tripulação do navio (em especial dos empregados de mesa) que troçavam dele de uma forma tão cruel sempre que se aproximava a hora das refeições:
- Então "escarumba", o comer já está pronto? Repetindo a frase até à exaustão com o objectivo de o provocar:
- Seus racistas de merda - respondia indignado até as lágrimas lhe inundarem a face negra. Devido à nossa diferença de idades, sempre me tratou por "miúdo" e era com bastante ternura que comigo se libertava dos seus silêncios e desabafava os seus lamentos. Sabendo das minhas preferências musicais, um dia de regresso de uma longa viagem de seis meses e quando o "Benguela" estava atracado no Cais da Rocha de Conde Óbidos em Lisboa, levou a sua esposa ao meu camarote e me ofereceu um LP dos Beatles (Sargeant Pepper's Lonely Hearts Club Band) que ainda hoje o conservo como recordação sua. Recordo tão bem esse dia, porque foi no dia em que a PIDE inesperadamente irrompeu pelo navio a dentro e arrancou o Sungo do Camarote, assim como a esposa que ali se encontrava de visita, e os levou presos, acusados de conspiração política. Mais tarde, soubemos que fora o padeiro de bordo que o denunciara, pois há muito que o vigiava fingindo-se seu amigo. Só voltei a ver o velho Sungo quando já tinha regressado de Moçambique e logo após o 25 de Abril de 1974, numa manifestação no Rossio contra a Guerra Colonial, onde me disse emocionado quando me viu, que a esposa falecera na prisão vítima das torturas que lhe foram infligidas pelos "chacais do regime", como era seu hábito dizer quando se referia àquela polícia política Marcelista.
Para além das muitas referências que ajudaram a moldar a minha personalidade, o velho Sungo é também uma delas, porque foi com ele que, antes de participar naquele conflito tomei mais consciência da questão colonial e do sabor amargo da repressão, sobre quem apenas queria ser livre e desprezava a humilhação racial.
Não sei se Sungo já faleceu, mas constou-se que logo após a independência das ex-colónias regressou à sua aldeia no interior de Cabinda, e lá construiu uma pequena casa com telhado de colmo, onde sempre dizia querer passar os seus últimos dias (...)

Carlos Vardasca
23 de Janeiro de 2008

(1) Centro de Instrução e Condução Auto
(2) Frente de Libertação do Estado de Cabinda, organização de guerrilha do norte de Angola, fundada em 04 de Agosto de 1963

sábado, 19 de janeiro de 2008

"... Deambulando pelos subúrbios do céu"


(...) Apesar do seu pseudo-marialvismo e de ser uma personagem que aparentava alguma perturbação emocional, que possívelmente escondia a ausência de afectos, eu gostava muito dele. Comecei a conviver mais com ele já no Regimento de Infantaria nº 9 em Viana do Castelo, onde a nossa Companhia (Companhia da Caçadores 3309) aguardava embarque para Moçambique. Sabia-se que era de origem humilde (como todos nós) e com o pai emigrado nos EUA, mas não deixava no entanto de exibir um snobismo sem consistência quando dizia com algum exibicionismo que morava na Foz do Douro. O "Foz"(1) como ficaria a ser conhecido entre nós, tinha as suas origens em S.Pedro de Agostém, próximo de Chaves, e por isso mesmo tentava esconder a sua ruralidade fingindo ser daquele zona "chique" do Porto. Depressa nos demos conta disso, mas não lhe atribuímos qualquer importância pois privilegiámos essencialmente a solidificação da nossa amizade tão necessária para os momentos conturbados que iríamos viver na frente de batalha. Enviados para o norte de Moçambique, mesmo para o centro do conflito no Planalto dos Macondes, onde "o sol castigava mais", alguns de nós, na véspera de saída para o mato, procurávamos refúgio no fundo do abrigo (a nossa tasca) impregnando-nos de "Suruma"(2), para nos esquecermos do "inferno" para onde éramos enviados sem saber se dele regressávamos. O "Foz", mais vulnerável e fragilizado, deixou-se "agarrar", partindo para outros consumos que aos poucos lhe vidraram o olhar e lhe toldaram as ideias. Regressado da guerra e apesar dos nossos esforços para o encontrarmos, ninguém mais soube da sua existência, dizendo-se que deambulava pelos labirintos escuros das ruas do Porto no consumo de estupefacientes. Um dia, estava eu em casa a almoçar e a ver o programa TOP-MAIS na RTP1, fiquei espantado e ao mesmo tempo esperançado com o que vi. Estava a passar um video-clip do Pedro Abrunhosa com a canção "Quem me leva os meus fantasmas", ao mesmo tempo que iam passando imagens dos "sem abrigo" da cidade do Porto, quando me fixei numa das personagens por não me ser totalmente estranha. Embora mais velho, de gorro enfiado na cabeça talvez para esconder a calvície e de barba espessa para encobrir a magreza, os seus olhos, apesar de profundos, ainda transmitiam o mesmo brilho (embora mais baço) quando nas casernas falava das "meninas da Foz" e mais tarde dos corpos esbeltos das negras do aldeamento de Palma. Sem demora, entrei em contacto com o site daquele cantor para me certificar se de entre aqueles "sem abrigo" que se dispuseram a participar naquele video-clip, se algum deles se chamava Eduardo da Silva Machado. Fiquei de facto muito emocionado quando me confirmaram a sua identidade. Contactei de novo aquele site para me informarem do seu paradeiro e para que lhe transmitissem a identidade de quem andava à sua procura, dizendo no entanto que aceitaria e respeitaria todas as hipóteses que por ele fossem colocadas, entre elas, dar-lhe o meu contacto para nos encontrarmos e conversarmos sobre a sua "odisseia", ou de querer manter o seu anonimato e continuar a viver nos "subúrbios do céu", como era seu hábito dizer quando dizia estar "em viagem" pelos odores da erva queimada.
O "Foz" parece ter optado por esta última, dado que nunca mais recebi qualquer informação a seu respeito. É pena, pois todos na C.CAÇ. 3309 há muito que o procurávamos para o receber entre nós e, se possível, ajudá-lo a "afugentar os seus fantasmas", contribuindo para minorar as suas dificuldades, convidando-o a participar nos nossos Encontros que realizamos anualmente, tentando indicar-lhe um "novo rumo para a sua viagem" que parece continuar a ser muito atribulada (...)
Carlos Vardasca
19 de Janeiro de 2008
(1) Alcunha de Eduardo da Silva Machado, ex- Soldado Condutor Auto Rodas NM 15189470 da Companhia de Caçadores 3309.
(2) Planta da África oriental, nociva como ópio, que os nativos costumam fumar.
Foto: O "Foz" ao volante de um Unimog 404, quando a C.CAÇ. 3309 foi forçada a retirar de Nova Torres para ocupar o novo Aquartelamento de Tartibo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

"Quando passámos uma rasteira ao Vagomestre"



(...) Como os recursos eram escassos, a alimentação não variava muito para além do arroz com peixe ou do peixe com arroz, passando pelos "ciclistas" com atum (1) e da esparguete acompanhada por uma carne intragável, daquela que vinha não se sabe bem de onde em barricas de madeira, e que exalava um cheiro nauseabundo. Um dia, inesperadamente, o rancho no aquartelamento de Tartibo onde estava estacionada a C.CAÇ. 3309 foi melhorado, graças ao Pelotão comandado pelo Furriel Garcia (já falecido após o nosso regresso de Moçambique). Iniciado o regresso ao aquartelamento depois de concluída a operação, aquele Grupo de Combate ouviu um barulho estranho no capim e, pensando ser guerrilheiros da FRELIMO em patrulha, todos logo se abrigaram na mata para no momento certo fazer a sua intercepção. O barulho, cada vez mais próximo, começou a tornar-se mais familiar assemelhando-se a um cavalo a esfregar os cascos na terra, e logo a tranquilidade se apoderou de todos ao verificarem que as suspeitas eram infundadas, pois tratava-se apenas de uma Impala que por ali vagueva sozinha. Assustada por ter dado pela presença dos militares, a Impala ainda tentou fugir mas logo caiu por terra com um tiro certeiro do Furriel Garcia, para contentamento de todos os presentes que elogiaram os seus dotes de caçador. Na altura houve até quem dissesse:

- Porra pá! Hoje vamos ter rancho melhorado. Hoje vamos passar uma "rasteira" ao Vagomestre (2). Ele que ponha o arroz com peixe com que nos vem atafulhando todos os dias nas bordas do cu .

Devido ao barulho do tiro e para que a posição daqueles militares não fosse detectada pela FRELIMO, improvisou-se apressadamente uma pequena padiola para transportar o animal, e o Grupo de Combate reiniciou em marcha apressada o regresso ao aquartelamento. À noite, e contrariando as previsões da ementa já pré estabelecida, o rancho foi de facto bem melhorado, onde se abriram muitas latas de cerveja que ajudaram a afogar as tristezas e esquecer o isolamento (...)


Carlos Vardasca
12 de Janeiro de 2008
(1) Feijão frade
(2) Furriel Costa
Foto: Soldados da Companhia de Caçadores 3309 exibem o troféu. Tartibo 1971

" O mainato Raimundo"

(...) Cada vez que chegavam novas tropas a Nangade, junto das casernas e das tendas aglomeravam-se sempre muitas crianças dos aldeamentos que ladeavam o aquartelamento, na ânsia de encontrarem um novo "patrão". As mães, sabendo que os soldados necessitavam da sua roupa lavada, por não terem tempo de o fazer devido às operações militares onde se iriam envolver, para ali enviavam os seus filhos à procura de trabalho que lhes ajudasse a tornear a extrema pobreza em que viviam. Aquelas concentrações (salvo as devidas diferenças) assemelhavam-se às concentrações dos trabalhadores agrícolas no Alentejo, no centro das aldeias, onde os agrários ali iam contratar os mais aptos para a época da ceifa. No meio de toda aquela criançada lá estava o Raimundo, miúdo de 10 anos, de olhar muito brilhante e de sorriso sempre presente, que oferecia os seus préstimos (como todos os outros) pela módica quantia de pouco mais de 40 escudos. Antes de o escolher para "meu Mainato" ainda lhe perguntei:
- Como te chamas? - ao que ele me respondeu com alguma desenvoltura:
- Eu chamar Raimundo, aqui nos Nangade e em todo os Planalto dos Maconde pá! - acrescentando de seguida:
- Se tu me escolher para teu mainato, meu irmã ir lavar os teu roupa maningue bem!


Achei engraçada a forma como articulava o seu português meio desajeitado mas perceptível, e lá o escolhi para ser o "meu mainato" até ao final da minha comissão enquanto estive no Aquartelamento de Nangade. Comentou-se depois no aquartelamento, que os pais do Raimundo eram suspeitos de colaborarem com a FRELIMO, o que se confirmou mais tarde, quando o pai foi morto pelas sentinelas de um posto de vigia junto ao arame farpado localizado na área do aldeamento Maconde, quando (possivelmente vindo de uma das suas missões do interior da mata) tentava penetrar em Nangade pela calada da noite. Apesar desse acontecimento e contrariando todas as opiniões que me aconselhavam a fazer o contrário, Raimundo continuou a ser o "meu mainato". Era de facto um miúdo impecável. Parecendo adivinhar a minha chegada das operações de reabastecimento, lá estava ele à porta da caserna com a roupa que a irmã tratava com algum zelo, dizendo-me com alguma ternura:
- Olha patrão, tens aí os teu roupa. - Ainda está quente dos ferro pá!
Um dia, passados alguns meses e porque achei que à muito ele ganhava os mesmos 40 escudos que combinámos inicialmente, e porque tive muita pena dele quando o pai faleceu e a mãe fora feita prisioneira pela PIDE, acusada de também colaborar com os guerrilheiros, ficando a viver sozinho com a irmã e os dois irmãos mais novos, disse-lhe:


- Olha Raimundo, como a minha roupa vem sempre muito bem lavada e impecavelmente passada, e porque tu mereces, eu vou aumentar o teu salário para 50 escudos:
- O que é que achas? - disse-lhe eu - ao que ele me respondeu, sempre daquela forma tão característica mas muito meiga, e que sempre achei muito engraçada, devido ao esforço que fazia em tentar articular o seu português que lhe saía sempre muito desconjuntado:

- Se os patrão ter esse ideia, eu ficar maningue contente mas os probrema é sua, você é que sei!
Entendi ser aquela a forma mais simples de me querer agradecer, vendo-o correr muito contente em direcção ao aldeamento, possivelmente para dar a boa notícia à irmã.
Actualmente e se ainda for vivo, e ainda viver naquele planalto inóspito onde as acácias convivem e namoram com as sombras dos cajueiros, Raimundo tem neste momento 45 anos de idade, e decerto continua a não variar a sua alimentação muito para além do milho e da mandioca triturada no pilão, que sempre foi a base da sua alimentação, mas que por vezes era trocada pelos restos da ração que sobravam das marmitas dos militares (...)

Carlos Vardasca
12 de Janeiro de 2008
Foto: Raimundo e os seus dois irmãos mais novos.

sábado, 5 de janeiro de 2008

"...Vale sempre a pena começar de novo"


(...) Não sei porquê, lembrei-me do Morais. Acabado de chegar a Nangade, em rendição individual em substituição de um soldado da CCS do Batalhão ali estacionado e falecido em combate, meio perdido e sem conhecer ninguém, Morais refugiava-se todas as noites no abrigo feito "tasca" e ali tentava estabelecer novas amizades. De aspecto meio rude e um pouco envergonhado, levava a "Laurentina" (1) para fora do abrigo e ali se saciava, sem contudo conseguir estabelecer qualquer conversação. Um dia, e porque estranhei aquele comportamento, afastei-me dos meus camaradas da Companhia e fui ter com ele fora do abrigo, forçando um diálogo que ainda hoje não me arrependo de o ter iniciado. Morais não sabia ler nem escrever, e contou-me a sua angústia por o terem enviado para tão longe, e logo deixara na terra a sua mulher grávida de seis meses. A partir daquele momento ficámos amigos e, percebendo o porquê de tanto sofrimento, ofereci-me para lhe escrever as suas cartas e ler as que viessem da "Metrópole". Foi de facto uma experiência muito gratificante que passei na guerra colonial, principalmente quando lhe li a carta que lhe anunciava o nascimento do seu filho e observei a felicidade espelhada no seu rosto. Cada vez que chegava o helicóptero com o correio, ele corria à minha procura para lhe ler aquelas minúsculas letritas (como era hábito dizer) e, quando sabia que eu estava no mato envolvido em colunas de reabastecimento, ele guardava as cartas (preferindo não as dar a ler a mais ninguém) até que eu regressasse ao aquartelamento. Por várias vezes aconteceu, tendo ele recebido correspondência da sua Albertina e ter que ir no mesmo dia para o mato integrado no seu Grupo de Combate, eu apenas tinha tempo de lhe ler as cartas, ao que ele me dizia, depois de me ter dado algumas sugestões para a resposta:

- Olha Braz, tu lês a carta e respondes mediante aquilo que eu te disse, mas quanto às mariquiçes (como costumava dizer em relação aos aspectos mais afectivos) fica ao sabor da tua imaginação. Quando regressava do mato e eu lhe lia aquilo que escrevera para ser enviado no helicóptero da tarde, ele dizia fascinado:

- Epá Braz, isto está mesmo bonito: - até parece que ela é que é a tua mulher.

Um dia lembrei-me de lhe dizer porque é que não ia aprender a ler e a escrever, pois um alferes do Batalhão tinha transformado uma pequena palhota em escola, e ali dava aulas aos miúdos da população nativa. Muito envergonhado disse-me:

- Eu! para o meio dos pretos aprender a ler? - Que vergonha.

Morais tinha como opinião de que os miúdos da escola eram inferiores a ele devido à cor da pele e, por isso (debaixo de um sentimento que exibia uma falsa superioridade) recusava-se a dar o primeiro passo, embora sentisse essa necessidade. Sem o querer ofender, decidi "ferir" o seu orgulho dizendo-lhe:

- Superior tu? - Eles é que são superiores a ti porque sabem duas línguas (a portuguesa e o seu dialecto local) e tu apenas sabes a tua e mal, e não a sabes escrever nem a ler:

Foi "remédio santo". No dia seguinte e todos os outros que ia tendo disponibilidade, lá estava ele à porta da palhota (agora escola), junto com outros soldados que também decidiram aprender as primeiras letras, exibindo os livros que nunca teve e que o trabalho árduo do campo não os deixou ler.

O Morais acabou a sua Comissão primeiro que eu e veio mais cedo para a "Metrópole" e, para meu espanto e quando a minha Companhia estava a fazer o espólio no RAL 1 em Lisboa, alguém me toca no ombro e me diz:

- Então amigo, ainda bem que também regressaste! Era o Morais que, sabendo que a minha Companhia chegava a Lisboa naquele dia, se deslocou de Vilar dos Ossos para me cumprimentar, sem contudo não perder a oportunidade de me deixar um pouco envergonhado, virando-se para a mulher dizendo-lhe:

- Olha Albertina, era aqui o Braz que te escrevia as cartas: - acrescentando:

- Foi ele o teu "namorado" enquanto eu estive lá na guerra. Ao que Albertina respondeu de uma forma tão singela e empregnada de ruralidade:
- Obrigado senhor, por me ter ajudado a ser tão feliz durante a ausência do meu Morais.

Actualmente, e por ter estudado afincadamente desde que chegara da guerra, Morais é um médico com algum prestígio naquelas pequenas aldeias mais recônditas da Freguesia onde habita, pois ali se desloca com uma "assiduidade militante" já muito rara entre os da sua profissão, conduzindo um velho Opel por caminhos onde o desenvolvimento tarda em chegar, recebendo por vezes em troca alguns parcos haveres arrancados à terra por gente "já gasta de tanto cansaço" (...)


Carlos Vardasca
05 de Janeiro de 2008


(1) Marca de cerveja de Moçambique.
Foto: Coluna de reabastecimento na picada entre Pundanhar e Nangade, vendo-se o Morais sentado ao lado direito no pára-brisas da segunda Berliet.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

03 de Janeiro de 1972. "Nascido para viver"


(...) As Berliets seguiam no seu vagaroso e agonizante andamento, enquanto que na mata circundante se multiplicavam os sons da natureza que enfrentavam a nossa indiferença. A preocupação dos militares estava muito para além do chilrear das galinhas do mato e de outras aves tropicais que sobrevoavam as viaturas militares, (também elas indiferentes aos medos que ali se faziam transportar) mas na mata cerrada, que não deixava vislumbrar muito para além das longas lianas que ladeavam a picada e nos sacudiam o corpo à nossa passagem. Chovia terrencialmente, e as vinte viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas) transpor mais uma vez aquela íngreme "Descida dos Paus", tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem para o desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos restantes soldados, em tronco nu, cerrando troncos de árvores para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas dores de cabeça dava, de cada vez que as colunas de reabastecimento por ali passavam durante a época das chuvas. Embora com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi transposto e, depois de passarmos uma pequena ponte que já fora por várias vezes destruída pelos guerrilheiros da FRELIMO, a ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante ansiosas por chegar ao Aquartelamento mais próximo (Pundanhar). Eu seguia na primeira Berliet ("Rebenta Minas") com mais quatro militares (da Companhia de Caçadores 2703) e que, por não nos termos apercebido do atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros. Quando nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento, e antes que conseguíssemos imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões de três minas anti-carro em simultâneo, na retaguarda da viatura que a destruiu imobilizando-a de imediato. Logo após aqueles rebentamentos foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras por um grupo avaliado entre 6 a 8 guerrilheiros da FRELIMO (3) que, sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam na nossa direcção, apesar da nossa resistência. Não fora a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que as que ocorreram. Do incidente eu fui atingido numa mão por um tiro de Kalashnikov, e os outros ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos (no peito e num ombro) e um outro com ferimentos ligeiros (numa perna) em resultado do disparo daquelas armas automáticas. Efectuado o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma, e enquanto eram prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma clareira na mata com o derrube da algumas árvores para facilitar o acesso do helicóptero e efectuar a evacuação, tendo os feridos sido transportados para o Hospital de Mueda. Sinceramente, durante a minha existência, nunca como naquele momento me senti tão consciente de estar tão próximo "do outro lado do muro" (...)

Carlos Vardasca
03 de Janeiro de 2008

Foto 1: Enquanto eu e os restantes feridos aguardávamos a chegada do helicóptero.
Foto 2: Momento da evacuação.
(3) Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo oitavo fascículo (Janeiro de 1972) Capítulo II, página 1. Arquivo Histórico Militar de Lisboa.