sábado, 12 de janeiro de 2008

" O mainato Raimundo"

(...) Cada vez que chegavam novas tropas a Nangade, junto das casernas e das tendas aglomeravam-se sempre muitas crianças dos aldeamentos que ladeavam o aquartelamento, na ânsia de encontrarem um novo "patrão". As mães, sabendo que os soldados necessitavam da sua roupa lavada, por não terem tempo de o fazer devido às operações militares onde se iriam envolver, para ali enviavam os seus filhos à procura de trabalho que lhes ajudasse a tornear a extrema pobreza em que viviam. Aquelas concentrações (salvo as devidas diferenças) assemelhavam-se às concentrações dos trabalhadores agrícolas no Alentejo, no centro das aldeias, onde os agrários ali iam contratar os mais aptos para a época da ceifa. No meio de toda aquela criançada lá estava o Raimundo, miúdo de 10 anos, de olhar muito brilhante e de sorriso sempre presente, que oferecia os seus préstimos (como todos os outros) pela módica quantia de pouco mais de 40 escudos. Antes de o escolher para "meu Mainato" ainda lhe perguntei:
- Como te chamas? - ao que ele me respondeu com alguma desenvoltura:
- Eu chamar Raimundo, aqui nos Nangade e em todo os Planalto dos Maconde pá! - acrescentando de seguida:
- Se tu me escolher para teu mainato, meu irmã ir lavar os teu roupa maningue bem!


Achei engraçada a forma como articulava o seu português meio desajeitado mas perceptível, e lá o escolhi para ser o "meu mainato" até ao final da minha comissão enquanto estive no Aquartelamento de Nangade. Comentou-se depois no aquartelamento, que os pais do Raimundo eram suspeitos de colaborarem com a FRELIMO, o que se confirmou mais tarde, quando o pai foi morto pelas sentinelas de um posto de vigia junto ao arame farpado localizado na área do aldeamento Maconde, quando (possivelmente vindo de uma das suas missões do interior da mata) tentava penetrar em Nangade pela calada da noite. Apesar desse acontecimento e contrariando todas as opiniões que me aconselhavam a fazer o contrário, Raimundo continuou a ser o "meu mainato". Era de facto um miúdo impecável. Parecendo adivinhar a minha chegada das operações de reabastecimento, lá estava ele à porta da caserna com a roupa que a irmã tratava com algum zelo, dizendo-me com alguma ternura:
- Olha patrão, tens aí os teu roupa. - Ainda está quente dos ferro pá!
Um dia, passados alguns meses e porque achei que à muito ele ganhava os mesmos 40 escudos que combinámos inicialmente, e porque tive muita pena dele quando o pai faleceu e a mãe fora feita prisioneira pela PIDE, acusada de também colaborar com os guerrilheiros, ficando a viver sozinho com a irmã e os dois irmãos mais novos, disse-lhe:


- Olha Raimundo, como a minha roupa vem sempre muito bem lavada e impecavelmente passada, e porque tu mereces, eu vou aumentar o teu salário para 50 escudos:
- O que é que achas? - disse-lhe eu - ao que ele me respondeu, sempre daquela forma tão característica mas muito meiga, e que sempre achei muito engraçada, devido ao esforço que fazia em tentar articular o seu português que lhe saía sempre muito desconjuntado:

- Se os patrão ter esse ideia, eu ficar maningue contente mas os probrema é sua, você é que sei!
Entendi ser aquela a forma mais simples de me querer agradecer, vendo-o correr muito contente em direcção ao aldeamento, possivelmente para dar a boa notícia à irmã.
Actualmente e se ainda for vivo, e ainda viver naquele planalto inóspito onde as acácias convivem e namoram com as sombras dos cajueiros, Raimundo tem neste momento 45 anos de idade, e decerto continua a não variar a sua alimentação muito para além do milho e da mandioca triturada no pilão, que sempre foi a base da sua alimentação, mas que por vezes era trocada pelos restos da ração que sobravam das marmitas dos militares (...)

Carlos Vardasca
12 de Janeiro de 2008
Foto: Raimundo e os seus dois irmãos mais novos.

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