sábado, 19 de janeiro de 2008

"... Deambulando pelos subúrbios do céu"


(...) Apesar do seu pseudo-marialvismo e de ser uma personagem que aparentava alguma perturbação emocional, que possívelmente escondia a ausência de afectos, eu gostava muito dele. Comecei a conviver mais com ele já no Regimento de Infantaria nº 9 em Viana do Castelo, onde a nossa Companhia (Companhia da Caçadores 3309) aguardava embarque para Moçambique. Sabia-se que era de origem humilde (como todos nós) e com o pai emigrado nos EUA, mas não deixava no entanto de exibir um snobismo sem consistência quando dizia com algum exibicionismo que morava na Foz do Douro. O "Foz"(1) como ficaria a ser conhecido entre nós, tinha as suas origens em S.Pedro de Agostém, próximo de Chaves, e por isso mesmo tentava esconder a sua ruralidade fingindo ser daquele zona "chique" do Porto. Depressa nos demos conta disso, mas não lhe atribuímos qualquer importância pois privilegiámos essencialmente a solidificação da nossa amizade tão necessária para os momentos conturbados que iríamos viver na frente de batalha. Enviados para o norte de Moçambique, mesmo para o centro do conflito no Planalto dos Macondes, onde "o sol castigava mais", alguns de nós, na véspera de saída para o mato, procurávamos refúgio no fundo do abrigo (a nossa tasca) impregnando-nos de "Suruma"(2), para nos esquecermos do "inferno" para onde éramos enviados sem saber se dele regressávamos. O "Foz", mais vulnerável e fragilizado, deixou-se "agarrar", partindo para outros consumos que aos poucos lhe vidraram o olhar e lhe toldaram as ideias. Regressado da guerra e apesar dos nossos esforços para o encontrarmos, ninguém mais soube da sua existência, dizendo-se que deambulava pelos labirintos escuros das ruas do Porto no consumo de estupefacientes. Um dia, estava eu em casa a almoçar e a ver o programa TOP-MAIS na RTP1, fiquei espantado e ao mesmo tempo esperançado com o que vi. Estava a passar um video-clip do Pedro Abrunhosa com a canção "Quem me leva os meus fantasmas", ao mesmo tempo que iam passando imagens dos "sem abrigo" da cidade do Porto, quando me fixei numa das personagens por não me ser totalmente estranha. Embora mais velho, de gorro enfiado na cabeça talvez para esconder a calvície e de barba espessa para encobrir a magreza, os seus olhos, apesar de profundos, ainda transmitiam o mesmo brilho (embora mais baço) quando nas casernas falava das "meninas da Foz" e mais tarde dos corpos esbeltos das negras do aldeamento de Palma. Sem demora, entrei em contacto com o site daquele cantor para me certificar se de entre aqueles "sem abrigo" que se dispuseram a participar naquele video-clip, se algum deles se chamava Eduardo da Silva Machado. Fiquei de facto muito emocionado quando me confirmaram a sua identidade. Contactei de novo aquele site para me informarem do seu paradeiro e para que lhe transmitissem a identidade de quem andava à sua procura, dizendo no entanto que aceitaria e respeitaria todas as hipóteses que por ele fossem colocadas, entre elas, dar-lhe o meu contacto para nos encontrarmos e conversarmos sobre a sua "odisseia", ou de querer manter o seu anonimato e continuar a viver nos "subúrbios do céu", como era seu hábito dizer quando dizia estar "em viagem" pelos odores da erva queimada.
O "Foz" parece ter optado por esta última, dado que nunca mais recebi qualquer informação a seu respeito. É pena, pois todos na C.CAÇ. 3309 há muito que o procurávamos para o receber entre nós e, se possível, ajudá-lo a "afugentar os seus fantasmas", contribuindo para minorar as suas dificuldades, convidando-o a participar nos nossos Encontros que realizamos anualmente, tentando indicar-lhe um "novo rumo para a sua viagem" que parece continuar a ser muito atribulada (...)
Carlos Vardasca
19 de Janeiro de 2008
(1) Alcunha de Eduardo da Silva Machado, ex- Soldado Condutor Auto Rodas NM 15189470 da Companhia de Caçadores 3309.
(2) Planta da África oriental, nociva como ópio, que os nativos costumam fumar.
Foto: O "Foz" ao volante de um Unimog 404, quando a C.CAÇ. 3309 foi forçada a retirar de Nova Torres para ocupar o novo Aquartelamento de Tartibo.

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