quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

" ... Há mestres que nunca se esquecem"

(...) Antes de assentar praça no CICA 5 (1) em Lagos, ainda fiz uma incursão embora que breve na Marinha Mercante. Embarquei no navio "Benguela" em 18 de Novembro de 1968, e a bordo daquela geringonça que mais parecia uma lata flutuante, percorri toda a costa ocidental de África desde S.Tomé e Príncipe até à Baía dos Tigres, assim como a oriental desde a Cidade do Cabo até Porto Amélia (Pemba), até ser incorporado no exército em 27 de Julho de 1970. A bordo do "Benguela" conheci o cozinheiro Sungo, personagem bastante interessante originário do enclave de Cabinda, natural da aldeia de Tchinzaze e pertencente à etnia Kongo. O meu camarote ficava em frente do dele, e era com bastante frequência que ouvia o seu potente rádio sintonizar uma estação que debitava uma "lamuria" que eu não entendia. Mais tarde (e porque estabelecemos uma relação de confiança e até de amizade, e soube que ele partilhava das minhas ideias anti-colonialistas) me confidenciou, que aquilo que eu chamava "lamuria" era a "Voz dos Combatentes de Cabinda", transmitida no seu dialecto da mata pelos guerrilheiros da FLEC (2). O cozinheiro Sungo era um excelente profissional de cozinha e uma pessoa muito carinhosa, mas ao mesmo tempo muito revoltado com o comportamento da maioria da tripulação do navio (em especial dos empregados de mesa) que troçavam dele de uma forma tão cruel sempre que se aproximava a hora das refeições:
- Então "escarumba", o comer já está pronto? Repetindo a frase até à exaustão com o objectivo de o provocar:
- Seus racistas de merda - respondia indignado até as lágrimas lhe inundarem a face negra. Devido à nossa diferença de idades, sempre me tratou por "miúdo" e era com bastante ternura que comigo se libertava dos seus silêncios e desabafava os seus lamentos. Sabendo das minhas preferências musicais, um dia de regresso de uma longa viagem de seis meses e quando o "Benguela" estava atracado no Cais da Rocha de Conde Óbidos em Lisboa, levou a sua esposa ao meu camarote e me ofereceu um LP dos Beatles (Sargeant Pepper's Lonely Hearts Club Band) que ainda hoje o conservo como recordação sua. Recordo tão bem esse dia, porque foi no dia em que a PIDE inesperadamente irrompeu pelo navio a dentro e arrancou o Sungo do Camarote, assim como a esposa que ali se encontrava de visita, e os levou presos, acusados de conspiração política. Mais tarde, soubemos que fora o padeiro de bordo que o denunciara, pois há muito que o vigiava fingindo-se seu amigo. Só voltei a ver o velho Sungo quando já tinha regressado de Moçambique e logo após o 25 de Abril de 1974, numa manifestação no Rossio contra a Guerra Colonial, onde me disse emocionado quando me viu, que a esposa falecera na prisão vítima das torturas que lhe foram infligidas pelos "chacais do regime", como era seu hábito dizer quando se referia àquela polícia política Marcelista.
Para além das muitas referências que ajudaram a moldar a minha personalidade, o velho Sungo é também uma delas, porque foi com ele que, antes de participar naquele conflito tomei mais consciência da questão colonial e do sabor amargo da repressão, sobre quem apenas queria ser livre e desprezava a humilhação racial.
Não sei se Sungo já faleceu, mas constou-se que logo após a independência das ex-colónias regressou à sua aldeia no interior de Cabinda, e lá construiu uma pequena casa com telhado de colmo, onde sempre dizia querer passar os seus últimos dias (...)

Carlos Vardasca
23 de Janeiro de 2008

(1) Centro de Instrução e Condução Auto
(2) Frente de Libertação do Estado de Cabinda, organização de guerrilha do norte de Angola, fundada em 04 de Agosto de 1963

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