quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

03 de Janeiro de 1972. "Nascido para viver"


(...) As Berliets seguiam no seu vagaroso e agonizante andamento, enquanto que na mata circundante se multiplicavam os sons da natureza que enfrentavam a nossa indiferença. A preocupação dos militares estava muito para além do chilrear das galinhas do mato e de outras aves tropicais que sobrevoavam as viaturas militares, (também elas indiferentes aos medos que ali se faziam transportar) mas na mata cerrada, que não deixava vislumbrar muito para além das longas lianas que ladeavam a picada e nos sacudiam o corpo à nossa passagem. Chovia terrencialmente, e as vinte viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas) transpor mais uma vez aquela íngreme "Descida dos Paus", tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem para o desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos restantes soldados, em tronco nu, cerrando troncos de árvores para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas dores de cabeça dava, de cada vez que as colunas de reabastecimento por ali passavam durante a época das chuvas. Embora com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi transposto e, depois de passarmos uma pequena ponte que já fora por várias vezes destruída pelos guerrilheiros da FRELIMO, a ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante ansiosas por chegar ao Aquartelamento mais próximo (Pundanhar). Eu seguia na primeira Berliet ("Rebenta Minas") com mais quatro militares (da Companhia de Caçadores 2703) e que, por não nos termos apercebido do atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros. Quando nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento, e antes que conseguíssemos imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões de três minas anti-carro em simultâneo, na retaguarda da viatura que a destruiu imobilizando-a de imediato. Logo após aqueles rebentamentos foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras por um grupo avaliado entre 6 a 8 guerrilheiros da FRELIMO (3) que, sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam na nossa direcção, apesar da nossa resistência. Não fora a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que as que ocorreram. Do incidente eu fui atingido numa mão por um tiro de Kalashnikov, e os outros ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos (no peito e num ombro) e um outro com ferimentos ligeiros (numa perna) em resultado do disparo daquelas armas automáticas. Efectuado o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma, e enquanto eram prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma clareira na mata com o derrube da algumas árvores para facilitar o acesso do helicóptero e efectuar a evacuação, tendo os feridos sido transportados para o Hospital de Mueda. Sinceramente, durante a minha existência, nunca como naquele momento me senti tão consciente de estar tão próximo "do outro lado do muro" (...)

Carlos Vardasca
03 de Janeiro de 2008

Foto 1: Enquanto eu e os restantes feridos aguardávamos a chegada do helicóptero.
Foto 2: Momento da evacuação.
(3) Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo oitavo fascículo (Janeiro de 1972) Capítulo II, página 1. Arquivo Histórico Militar de Lisboa.

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