sábado, 16 de maio de 2009

Nós, a FRELIMO e a contra informação

(...) Na cantina, repleta de soldados que se encharcavam de Laurentinas[1] a comemorar o nascimento do filho do Juvenal, as atenções viraram-se por momentos para as notícias emanadas de um pequeno rádio que transmitia de Dar-Es-Salaam[2] ou de uma estação de rádio perdida algures na mata:
- “... Aqui Rádio da liberdade; voz da FRELIMO, transmitida das zonas libertadas do colonialismo: - O comité de libertação da nossa pátria informa que, neste momento, está prestes a ser tomado o aquartelamento de Nangade pelos nossos guerrilheiros, e exortamos todos os soldados aí estacionados e que ainda resistem, a renderem-se, porque o nosso inimigo não são eles mas sim, o regime opressor, que de Lisboa os envia para esta guerra para morrem inocentes...”
Perante a estupefacção dos presentes que comentavam o que acabavam de ouvir, alguém disse ironizando:
- Estes cabrões não têm juízo?!
- Então a malta está aqui descansadinha e beber umas cervejolas e eles dizem que nos estão a expulsar daqui?
- Oh Nabais, se não te importas, espreita aí pela janela e, se vires alguns turras, diz a eles para esperarem só um bocadinho, ou então, eles que aproveitem, entrem e bebam com a malta umas latitas de cerveja:
- disse o “Mogadouro”
[3] em tom jocoso, entornando sobre si o que restava da 2M[4] que já bebia a muito custo.
Braz, que acabara de ler a sua correspondência e permanecia encostado ao balcão feito de troncos de árvores, ouvia em silêncio a reacção às notícias, esboçando um leve sorriso, ao mesmo tempo que se juntava ao aglomerado das fardas camufladas, reagindo, de forma a tornar evidente tamanha incompreensão, na tentativa de esclarecer algum desconhecimento ou ignorância que ainda pairava nalgumas daquelas mentes:
- É pá! — vocês ainda não perceberam que isto é pura propaganda psicológica para levantar a moral dos guerrilheiros espalhados pela mata? - aliás: - continuou:
- Ainda ontem, se não ouviram, mas está ali o Almeida e o Pereira que não me deixam mentir; a rádio “Do Comandante ao Combatente” do Estado Maior General das nossas Forças Armadas também dizia:
- “...Neste momento, dois pelotões da Companhia de Caçadores 3309 estacionada em Nova Torres, atravessaram o rio Rovuma e apreenderam variado material de guerra aos terroristas em pleno território da Tanzânia, e desmantelaram vários aquartelamentos da FRELIMO que serviam de apoio às suas actividades subversivas”.
- Ora, todos nós sabemos que ontem não foi apreendido nenhum material de guerra nem a 3309 nesse dia saiu para o mato, muito menos entrar pela Tanzânia a dentro:
- Estas informações
- continuou Braz - tanto de um lado como de outro, são normais em tempo de guerra, e estes métodos eram já utilizados na Segunda Guerra Mundial tanto pelos Aliados assim como pelas forças nazis:
- Trata-se de pura guerra de contra informação com conteúdo ideológico, que visa minar a moral do inimigo
- concluía Braz, sendo interrompido pelo “Mogadouro” de uma forma tão agressiva:
- Lá estás tu com a tua mania de intelectual, sempre a defender a porra dos turras pá! - Se é isso que aprendes nos livros que andas a ler e se gostas assim tanto dos gajos pá, porque é que não te passas para o outro lado da barricada?! - disse “Mogadouro”, bem alto, depois de ter emborcado todo o conteúdo de outra lata de cerveja de uma assentada (...)


Carlos Vardasca
16 de Maio de 2009

in, "Fardados de Lama", páginas 91 e 92. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2008.

Foto: Da esquerda para a direita: Camelo, Leite, Braz (Carlos Vardasca) Nabais e o Almeida sentado em cima da Berliet, todos pertencentes à Companhia de Caçadores 3309. Aquartelamento de Nangade 1972.

[1] Marca de cerveja de Moçambique.
[2] Capital da Tanzânia.
[3] Alcunha do soldado Condutor Leite, por ser natural de Variz e morar em Vilarinho dos Galegos, concelho de Mogadouro.
[4] Marca de cerveja cuja abreviatura era alusiva a Maurice Mac-Mahon, presidente da República Francesa (1873-1879), que arbitrou em 1875 o litígio entre a Inglaterra e Portugal votando a favor das pretensões portuguesas sobre a administração da cidade de Lourenço Marques que ficou a pertencer a Moçambique.

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