segunda-feira, 8 de junho de 2009

Aquartelamento de Nova Torres. Onde a dignidade sobreviveu enlameada

(...) No dia seguinte, e após a chegada às margens do rio rio Metumbué onde os aguardava um dos pelotões da Companhia de Artilharia 2745 que ali tinham chegado em barcos pneumáticos ou a nado, para garantir a segurança da coluna no resto do percurso até ao aquartelamento de Nova Torres, foi aquele momento saudado por todos os presentes como se aquele local fosse a meta de uma qualquer prova desportiva e, exaustos, famintos e extenuados pela noite mal dormida, os soldados depois de sacudirem o pó que acumularam e lhes encardiu as entranhas, finalmente iriam repousar um pouco naquela terra cor de tijolo que ficava a cerca de vinte e cinco quilómetros de Nangade.
Meio desbotada, erguida num tronco de uma árvore que parecia seca, adormecida, flutuava uma bandeira já esfarrapada onde o verde e o vermelho já não brilhavam nem davam expressão a uma presença prenhe de conquistas que embelezaram uma expansão salpicada de massacres, mas que ali assinalava o aquartelamento improvisado
[1], que parecia adormecido entre vários intervalos, que se misturavam entre a beleza da paisagem e o sentimento estranho de quem acaba de chegar e não pretende perturbar a tranquilidade que aparentemente parecia ali reinar, e o ambiente desolador que se vivia naquela frente de batalha, com o aquartelamento de Nova Torres (situado entre dois rios) totalmente inundado pela junção das águas dos rios Rovuma e do Metumbué devido às chuvas torrenciais que se abatiam naquela zona na época das chuvas.
Num breve olhar por todo o aquartelamento que se situava num pequeno morro para evitar a sua inundação, não fora a guerra e as fardas camufladas dos soldados que por ali vagueavam enlameadas por entre todo o material bélico, parte dele submerso, Nova Torres, que ficava a poucos metros de distância dali, assemelhava-se ao Éden propagandeado por qualquer vulgar panfleto religioso. Na cor barrenta das águas do Rovuma emergiam por vezes hipopótamos e crocodilos desconfiados pela presença humana que há muito lhes interrompia a tranquilidade, enquanto pequenos troncos de árvores navegavam no seu leito transportando pequenos pássaros que faziam uma pausa no seu trajecto ao sabor da corrente. No céu, pincelado de um cinzento tumultuoso, esvoaçavam em formação desordenada várias espécies de aves, que num processo migratório acabavam de chegar ao que consideravam ser sua casa e, com o seu piar inquieto, pareciam estar incomodadas com uma presença que há muito consideravam estranha naquelas paragens (...)


In: "Fardados de Lama", páginas 51 e 52. Carlos Vardasca. Alhos Vedros 2008.

[1] A que foi dado o nome de código de “Posição DAMA”, que viria também a ser inundada obrigando as tropas ali estacionadas a abandonar aquela posição e refugiarem-se numa outra elevação e aí montar novo aquartelamento provisório a que se denominou “Posição FLECHA”.
Foto 1: Aquartelamento de Nova Torres. Nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia. Moçambique 1971.
Foto 2: Aspecto geral do Aquartelamento de Nova Torres antes das inundações. 1971.
Foto 3: Totalmente alagado, o Aquartelamento de Nova Torres apresentava este aspecto desolador. Na foto está o 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem NM 05802970, António da Silva Azevedo da Companhia de Caçadores 3309. Moçambique 1971.
Foto 4: Outro aspecto do Aquartelamento totalmente alagado, vendo-se na foto o Soldado Atirador NM 08857867, Luís Joaquim Mendes (de alcunha o "Noivo da Morte") da Companhia de Caçadores 3309, falecido em 1994. Nova Torres 1971.

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