segunda-feira, 1 de junho de 2009

"Numa viagem de ida, sem volta"

(...) O Niassa passava agora defronte do Forte do Bugio que, na sua majestuosidade, assemelhava-se a um “guerreiro que na barra do Tejo luta contra as invasões muçulmanas”, protagonizadas pelas ondas alterosas que se “esmagavam contra as ameias do castelo”, defendido por um faroleiro que olhava o tabuleiro de xadrez equacionando a próxima jogada, defrontando à distância um outro faroleiro sitiado nas Ilhas Berlengas.
Estava um frio intenso e Braz permanecia no convés protegendo-se com o cachecol aconchegado ao pescoço, e uma manta velha que foi buscar à sua cama no porão.
Sentado e profundamente pensativo, mergulhando na angústia de quem parte sem ter a certeza de poder voltar, rabiscava num pequeno bloco pequenos apontamentos versados, dando largas a uma imaginação prenhe de tragédia, quadras soltas que o vento não conseguira arrancar do seu imaginário.
O balancear compassado do navio emprestava um ambiente fúnebre nas hostes militares, sentindo alguns que a terra lhes fugia debaixo dos pés, imaginando-se na companhia dos seus familiares na apanha da batata ou, como o Nabais, que fixava demoradamente a espuma branca das ondas através de uma das vigias redondas, recordando as fugas por entre os montes e vales próximos de Meimoa, junto à fronteira, em esconderijos por ele construídos na mata densa da Serra da Malcata enganando a Guarda Nacional Republicana.
Enquanto traficava alguns quilos de café e tabaco na Estremadura espanhola, em paralelo, Nabais também fazia passar a monte gente humilde que do outro lado das fronteiras ia “chafurdar” na opulência dos outros, apanhando no seu regaço as migalhas que sobravam das suas mesas fartas, dormindo em “bidon-villes” a troco de algumas moedas arrancadas à custa de muito cansaço e ingratidão, mas que ajudariam a construir lá longe na terra abandonada aos velhos, às jovens esposas carentes e às crianças famintas, um sonho feito de argamassa, que iria ser habitado por gente gasta pelo tempo, paredes meias com uma felicidade adiada, feita defunta pelo trabalho quase forçado em terras de França.
Indiferente à maresia que se fazia sentir e aos esporádicos farrapos de espuma das ondas que salpicavam o convés, o lápis, empunhado por mãos frágeis, trémulas, ligeiramente debilitadas por um corpo amarelado feito prisioneiro do enjoo, embalado pela ondulação descompassada, prosseguia na sua cruzada, imprimindo naquele papel húmido algumas prosas e quadras que não seriam rasgadas pela censura personificada pela agressividade do mar.
No folhear desordenado do pequeno caderno quadriculado onde decalcava as suas incertezas, Braz ainda foi encontrar meio perdido, entrelaçado no emaranhado de linhas azuis que se cruzavam num papel amarelecido pelo tempo, algo que escrevera três anos antes, quando assistia do alto do jardim defronte do Museu de Arte Antiga debruçado sobre a 24 de Julho, à partida da Gare Marítima da Rocha de Conde de Óbidos de contingentes de tropas para a guerra, quando ainda não sabia vir a ser um dos actores de uma mesma peça cuja encenação era previsível (...)

Navios que partem indiferentes
sequiosos por sulcar o mar.
Nos porões homens exaustos,
angustiados, expulsos do lar.

Lenços levantados da dor
de uma separação inesperada,
Cais da Rocha, lágrimas sem rosto
por uma partida forçada.

África no horizonte,
ecoam estrondos de revolta,
corpos silenciados, vencidos,
numa viagem de ida, sem volta.

In, "Fardados de Lama", páginas 21, 22 e 23. Carlos Vardasca. Alhos Vedros 2008

Foto 1: Os Furrieis Neves, Barbudo e Leite, na companhia do Alferes Martins, todos da C.CAÇ. 3309, a bordo do navio Niassa quando este já navegava em pleno Atlântico. Janeiro de 1971.
Foto 2: Elementos da C.CAÇ. 3309 em formatura, para se ensaiar medidas de salvamento a bordo do navio Niassa. Na foto podem ver-se, entre outros, o Valoura, Óscar, Pepino, Serrano, Vieira, Ruben e o Sousa (que viria a falecer em combate) e o Furriel Arlindo, na frente da formatura. Janeiro de 1971.

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