quinta-feira, 19 de julho de 2007

"Uma infância que nos foi roubada"


(...) Foi de facto um período "sem infância e sem brinquedos". Colocado desde os quatro anos de idade em sucessivos colégios onde senti que me tentavam moldar "o espírito e a alma", afinal dei naquilo que sou hoje; um "empertigado inconformista", rebelde, "ateu invertebrado" mas tremendamente solidário. Como fora possível que aquele menino de calções curtos, de meia alta até ao joelho e de fitinha no braço da 1ª comunhão, extremamente carente de afectos, viesse a ser a "personagem" que hoje sou? Foi ali mesmo, naquele colégio de freiras em S. João do Estoril que começou a ser moldada a minha personalidade, por paradoxo que seja. Tinha eu sete anos de idade (1956) quando de visita ao colégio, marinheiros da Marinha de Guerra dos EUA ali se deslocaram para ofertar brinquedos àquelas crianças à muito carentes do aconchego familiar. A mim calhou-me um pequeno comboio (uma máquina e duas carruagens) que rodava numa pequena linha em círculo. Até aí nunca tivera um brinquedo, e o fascínio que sentia dentro de mim moldou nos meus lábios vastos sorrisos e uma alegria imensa que parecia do tamanho do mundo. Só brinquei com o comboio naquele dia e inesplicávelmente nunca mais o vi, o mesmo acontecera com os restantes brinquedos que foram oferecidos aos outros meninos. No mês seguinte, deslocou-se ao colégio uma equipa de cinema françês para ali fazer uma curta metragem sobre os meninos "expulsos dos afectos", oferecendo também alguns brinquedos aos que participaram nas filmagens. A mim desta vez coube-me um boneco de pano onde se enfiava a mão e esta gesticulava a sua boca como se o boneco estivesse a falar. Com receio que o boneco tivesse a mesma sorte do comboio, refugiei-me na casa de banho, enquanto sentado na sanita brincava com aquele pedaço de pano que me "olhava desconfiado" e que me parecia querer dizer:

- "Estás triste! porquê? receias que me vá embora"? Cá fora, a Madre Superiora andava atarefada à procura dos meninos que participaram nas filmagens, dizendo que era para se juntarem e tirarem uma foto em grupo para os realizadores da película levarem consigo para o seu país. Ainda tentei ficar mais tempo na casa de banho escondido, mas os murros fortes (bastante agressivos até) que aquela religiosa dava nas portas obrigaram-me a sair.

Em vez da foto, todos os miúdos foram despojados (novamente) dos seus brinquedos para nunca mais os verem. Quando aquele boneco me foi arrancado dos braços senti uma angústia tão grande que até pareceu que me tinham "arrancado um pedaço de mim".

Mais tarde, num dos passeios que era hábito dar-mos pelas ruas de S. João do Estoril na companhia de algumas freiras, estupefactos, reparámos que numa das montras de um estabelecimento lá estavam os nossos brinquedos que nos tinham sido "arrancados sem jeito nem prosa". Por estranho que pareça, e no meio da nossa inoçência, até ficámos felizes por os termos encontrado de novo. Através do vidro da montra, cada um, referindo-se ao seu brinquedo, extasiava-se de alegria, embora sabendo que jamais o poderia ter de volta, mas também não compreendendo (na altura, mas hoje já está bastante claro) como, e porquê e de que jeito é que eles ali foram parar.

Foi de facto "um tempo que nos foi roubado" por aquelas devotas de deus que, associadas a outras por si efectuadas, acabaram por moldar (pelo menos a mim, e não sei se a todos os miúdos que estão na foto da época) um pedaço da minha personalidade (...)

Carlos Vardasca

19 de Julho de 2007

Nota: foto tirada aos sete anos de idade (1956), no dia da 1ª Comunhão em S.António do Estoril (eu sou, na fila em baixo, o último do lado direito).

Sem comentários: