segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Desembarque na praia de Palma

(...) As pequenas ilhas de Rongi e de Tecomati já tinham ficado muito para lá da ré da Corveta “João Coutinho”, e os coqueiros nas praias da Baía de Palma já se mostravam alinhados para receberem mais uns CHECAS[1]. A vila de Palma não tinha cais de atracagem e aquele vaso de guerra ancorou ao largo às 11.30 horas no dia 23 de Fevereiro de 1971.
A Companhia de Caçadores 3309 foi transferida para umas lanchas de desembarque que fizeram a sua aproximação a terra, não o conseguindo na sua totalidade dado à existência de vários bancos de areia na maré baixa que impossibilitaram o seu desembarque nas condições que se previam.
Separados da praia por largos canais com alguma profundidade, a maioria dos soldados tiveram que se lançar à água que lhes dava pelo peito, levantando bem alto os braços para protegerem a G3 e as mochilas, sentido as águas gélidas do Índico a inundarem-lhes as entranhas, apesar do calor que se fazia sentir.
Da praia surgiram vários elementos da população, geralmente jovens corpulentos, que se ofereciam para transportar às suas cavalitas algum soldado que se prestasse a recompensá-los com alguns trocos.
O FOZ, com o seu ar de marialva que sempre exibia, logo se prestou a pagar para que o transportassem para terra, não deixando no entanto de despejar um pouco da sua ironia quando me viu recusar a mesma oferta, fazendo a minha aproximação a terra com a água pelo peito, transportando com alguma dificuldade a mochila e a G3, dizendo:
— É pá Braz, com medo que te chamem colonialista, preferes encharcar-te até ao pescoço, mais parecendo um fuzileiro americano no desembarque na Normandia.
Não fui o único que escolhi aquela via, e foi com alguma satisfação que vi muitos companheiros meus a recusaram ser transportados aos ombros dos nativos, preferindo que a humidade das águas tranquilas da Baía de Palma lhes trespassasse o camuflado, do que adoptarem uma pose que lhes pareceu humilhante, bem ao jeito dos costumes coloniais.
Na praia, enquanto os soldados trocavam de roupa rodeados por crianças intranquilas que brincavam em seu redor, ora descendo dos coqueiros oferecendo-nos os seus frutos em troca de uma “quinhenta”, outros, os mais adultos, com as suas vestes muçulmanas muito brancas, amontoavam-se na praia curiosos, alguns deles com atitudes subservientes perante o ocupante, outros, murmurando em dialecto Maconde pragas que nenhum de nós entendia mas que denotavam algum descontentamento pela chegada de mais tropas àquela localidade:
Ukakwenu njungu, ashi asinavasinu shilambo shako
[2]: — levando à intervenção dos Cipaios[3] por ordem do Administrador do Posto, que acabaram por fazer algumas detenções e dispersar a multidão que se tinha aglomerado na praia.
No dia seguinte, a Companhia de Caçadores 3309 partia em coluna militar para Nangade onde chegou a 25 de Fevereiro de 1971, tendo no dia 24 passado primeiro pelo aquartelamento de Pundanhar, ao quilómetro 50, onde passou a noite, dormindo no chão, debaixo dos beirais dos telhados de colmo que pendiam das palhotas do aldeamento local, que se misturavam com os edifícios militares dentro do perímetro defensivo daquele pequeno aquartelamento no norte de Moçambique, na zona de intervenção de Cabo Delgado, próximo do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia (...)

Carlos Vardasca

23 de Fevereiro de 1971

in: "Onde o sol castiga mais. Crónicas de guerra 1970-1973", páginas 9 e 10. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 2005

[1] CHECAS, tropas que iniciavam a sua missão no teatro de operações.
[2] Vai-te embora branco, esta não é a tua terra, em dialecto da etnia Maconde.
[3] Polícia local.
Foto 1: Foto tirada logo após o meu desembarque em Palma.
Foto 2: Corveta NRP "João Coutinho" da Marinha de Guerra portuguesa, que transportou a Companhia de Caçadores 3309 de Porto Amélia (Pemba) até à povoação de Palma no norte de Moçambique, em 23 de Fevereiro de 1971.
Foto 3: Aspecto da praia de Palma onde se deu o desembarque da C.CAÇ. 3309.

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