quarta-feira, 11 de março de 2009

O Lobo e o Guerrilheiro

(...) Em África, no período colonial e nos aldeamentos mais recônditos de Moçambique, quem tinha uma motorizada já gozava (mais que não fosse aparente) de um certo estatuto social em relação aos que possuíam apenas uma bicicleta, assim como aos restantes que nada tinham como meio de transporte.
Em Nangade
[1], o “Bazuca”, mainato[2] que prestava serviços na oficina de mecânica da Companhia de Caçadores 3309, possuía uma Suzuky já um pouco desconjuntada e sempre com o depósito vazio, mas que, das raras vezes que se passeava com ela, lhe fazia rasgar um largo sorriso que deixava ver ao longe a sua dentição de um branco tão branco, que contrastava com a sua pele preta, mas muito preta, como gostava de sublinhar e que dizia exibir com orgulho.
Desde que o Lobo
[3] chegou a Nangade e o “Bazuca” passou a prestar serviço nas oficinas da Companhia de Caçadores 3309, estabeleceu-se entre eles um contrato deveras desvantajoso para o “Bazuca”, ao qual teve que se submeter pois de outra forma não teria acesso às contrapartidas que lhe eram propostas:
— Olha lá oh “Bazuca”! — disse o Lobo com aquela pose de ocupante com que a maioria dos soldados se dirigiam aos nativos:
— Vamos combinar uma coisa — enquanto o “Bazuca” ouvia meio desconfiado:
— Eu passo a arranjar gasolina para a moto, mas ando com ela durante o dia e tu só andas com ela à noite ... está combinado?
Sabendo das facilidades e das formas como se obter combustível por parte dos soldados daquela especialidade, o “Bazuca” não teve outro remédio senão aceitar embora um pouco descontente com o negócio, aproveitando no entanto para retirar alguns dividendos do mesmo:
— Eh nosso sordado! Se mesmo nos dia tu não andar, eu poder andar nos moto pá?
O Lobo, depois de achar tanta graça àquele português tão desarticulado, respondeu-lhe:
— Está bem “Bazuca”, eu estava a brincar, mas desde que não gastes toda a gasolina.
Como passou a ser frequente, o Lobo dirigia-se até à pista de aterragem de terra batida e aí acelerava inadvertidamente até ao seu final, tendo sido avisado por várias vezes do perigo que corria, tendo em conta que a mesma era circundada por uma densa mata podendo ser alvo de uma emboscada por parte da FRELIMO.
Numa das vezes que o fez, ao chegar ao final da pista e já a acelerar de regresso ao Aquartelamento, sai repentinamente da mata um guerrilheiro da FRELIMO que lhe pede boleia até Nangade, ao que o Lobo, sem se aperceber de quem se tratava nem da Kalasnhikov que o mesmo trazia a tiracolo e pensando ser um Machambeiro
[4] vindo das suas lides, lhe disse:
— Vai a pé preto d’um cabrão — continuando a toda a velocidade sem se ter dado conta do que estava a ocorrer naquele momento.
Depois de chegar à oficina e de ter ajudado os outros companheiros de especialidade a montar um motor numa Berliet, foi-se apercebendo da algazarra que se ouvia lá para os lados do Posto Administrativo de Nangade, assim como da correria desordenada que muitos soldados e oficiais faziam naquela direcção.
Quando o Lobo chegou ao local, já ali se havia concentrado uma multidão oriunda dos aldeamentos Macua e Maconde, assim como alguns oficiais da Companhia de Artilharia 2918 e o seu comandante Tenente Coronel Vasconcelos Porto, que se fazia acompanhar (como já vinha sendo hábito) por um agente da PIDE/DGS
[5] que tomavam conta da ocorrência.
Depois de se ter apercebido do que realmente tinha acontecido, ao Lobo apenas restou uma ligeira sensação de que a história lhe teria passado um pouco ao lado e nela ser reconhecido, se não tivesse recusado a boleia àquele desconhecido no final da pista.
Era de facto um guerrilheiro da FRELIMO que se entregava às nossas tropas com a sua Kalashnikov e alguma documentação, o que contribuiu para a identificação de alguns guerrilheiros que viviam infiltrados num dos aldeamentos e à localização de algumas das suas bases no interior da mata.
— Estás a ver meu alentejano de merda!se tivesses dado boleia àquele turra
[6] eras tu que levavas os louvores e agora eras um herói da pátria! — disse o “Garina”[7] rindo-se da forma tão despreocupada como o camarada de armas lidou com a situação — ao que o Lobo respondeu:
— Oh pá, eu quero lá saber disso! — Eu quase que nem olhei para ele quando o gajo saiu da mata: continuando, com o seu jeito característico bem untado de sotaque de Vila Viçosa:
Eu cá só me sinto herói quando estou a emborcar “Laurentinas” e 2M
[8], ou quando a proa do Niassa me levar a entrar na barra em Lisboa deixando para traz o farol do Bugio e, lá do alto meu monte, não avistar nenhum “Chico lateiro” que me faça lembrar este tempo de merda que aqui perdi (...)

Carlos Vardasca
11 de Março de 2009

[1] Aquartelamento situado no Planalto dos Macondes, no norte de Moçambique, próximo do rio Rovuma e da fronteira com a Tanzânia.
[2] Lavandeiro, ou membro da população que prestava outros serviços às tropas ali estacionadas.
[3] Joaquim António Aleixo Lobo, Soldado Mecânico Auto NM 00917070 da Companhia de Caçadores 3309
[4] Trabalhador agrícola.
[5] Polícia Política do Estado Novo.
[6] Adjectivo atribuído pelas nossas tropas aos guerrilheiros da FRELIMO.
[7] Alcunha do Alfredo Bernardino Pereira, Soldado Condutor Auto Rodas, NM 15407070 da Companhia de Caçadores 3309.
[8] Marcas de cerveja de Moçambique.

Foto 1: O Soldado Lobo quando escrevia à família no Aquartelamento de Tartibo. Moçambique 1972.
Foto 2: O lobo no XIX Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309 realizado no passado dia 07 de Março de 2009 em Vila Viçosa (O Lobo está a abrir a garrafa de champanhe enquanto o ex- Capitão Hélio Moreira se atarefa no acto de partir o bolo de aniversário.
in: "Onde o sol castiga mais". Crónicas de guerra 1970-1973, páginas 18, 19 e 20. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2005

Sem comentários: