sábado, 18 de julho de 2009

"A arte de bem escapar ao arroz com peixe"

(...) No Aquartelamento de Nangade, a cozinha ficava debaixo de um aglomerado de cajueiros que lhe emprestavam frondosa sombra, protegendo quem nela trabalhava dos calores tórridos que aqueciam o Planalto dos Macondes.
Antes do cozinheiro de serviço fazer soar, numa barra de ferro pendurada numa das árvores estridentes sons, que lembravam que o rancho estava "pronto a servir", já as bichas de soldados serpenteavam desalinhadas de marmita em riste, para receberem algo empapado que se colaria no seu fundo e que dificilmente se despegaria se não fosse tão depressa removido.
Ali não havia ementa previamente anunciada, pois todos nós há muito que a tínhamos decorado.
Uns dias era peixe com arroz e nos outros arroz com peixe, e assim sucessivamente, acompanhado por um líquido de tez já não muito escura, que diziam ser vinho e que fora bastas vezes alvo de várias "bênçãos" para lhe aumentar o volume desde que saíra da Manutenção Militar na Metrópole. Por vezes o menu lá era alternado (como se a rara variedade fosse sinónimo de qualidade) com uma carne intragável, excessivamente salgada (vinda no Nord-Atlas que fazia o abastecimento aéreo) transportada em barricas de madeira que não se sabia bem a sua origem (dizia-se que era da Argentina) e que faziam aos poucos aumentar o protesto de quem se sentia estar a ser alimentado para "unicamente se manter de pé" enquanto os "Chicos" iam "enchendo os bolsos" de comissão em comissão.
Misturados com os soldados, vagueavam sempre alguns miúdos dos aldeamentos das etnias Macua e Maconde que ladeavam o aquartelamento, que ao ouvirem o chamamento para o rancho se aproximavam da cozinha militar, sempre na ânsia de que sobrasse no fundo daquelas marmitas ou nos caldeirões da cozinha alguns restos. Ao mínimo gesto, corriam apressados, atropelando-se uns aos outros, exibindo as suas barrigas disformes na direcção de quem lhes estendia a marmita mesmo que no seu fundo não restasse quase nada, mas que funcionava como moeda de troca para justificar a lavagem da palamenta de alumínio.
Dava pena olhar para aqueles miúdos. Agachados debaixo do alpendre das casernas onde os soldados comiam sentados no chão ou em toscas mesas feitas de pedaços de madeira, de olhos muito esbugalhados, olhando-os insistentemente como que a implorar para que aquele sofrimento fosse muito breve. Quantos de nós, perante aqueles olhares tristes, muitas das vezes não tivemos vontade de "lamber o fundo da marmita", mas nos vimos quase que obrigados a deixar algo no fundo para enganar a fome daquelas frágeis crianças.
Como tudo na vida, todos nós fomos "obrigados" a desenvolver (algumas vezes com requintes de malvadez) a "arte de bem escapar ao arroz com peixe".
Era das incursões aos aldeamentos, de que o "FOZ" (1) era especialista (e de quem alguns de nós copiámos o jeito) que resultavam grandes "caçadas" que nos permitia fazer esquecer o arroz amassado e o peixe chamuscado do rancho, e "chafurdarmos" nos frangos besuntados de gindum bem picante para justificar a sua inundação com as fresquíssimas "Laurentinas".
No Aquartelamento de Tartibo a coisa não era nada diferente (embora não houvesse aldeamentos) mas onde também se fazia do peixe com arroz e do arroz com peixe a "arte de bem cozinhar", com a cumplicidade da falta de imaginação do vago-mestre que também tentava "sobreviver" com a escassez de abastecimentos. Ali, a monotonia do menu era comparável à sensação de isolamento a que estavam sujeitos os militares da Companhia de Caçadores 3309 ali estacionados, não fosse alguma peça de caça morta no decurso de alguma operação militar; de uma outra feita prisioneira numa das armadilhas colocadas fora da barreira defensiva do Aquartelamento, ou de um "golpe de mão" desencadeado ao galinheiro do Capitão (2), estes últimos "troféus arduamente conquistados", que faziam a alegria de quem com eles se banqueteava perante a irritação daquele oficial, que via os seus galináceos reduzir de número e a "desertarem para outras paragens" (...)

Carlos Vardasca
18 de Julho de 2009

(1) Alcunha de Eduardo da Silva Machado, Soldado Condutor Auto Rodas NM 15189470 da Companhia de Caçadores 3309, do qual, até aos dias de hoje não mais soubemos do seu paradeiro.
(2) Hélio Augusto Moreira, Capitão Miliciano de Infantaria NM 36048760, Comandante da Companhia de Caçadores 3309.
Foto 1: Em Nangade na bicha para o rancho. Na foto podem ver-se junto a mim (entre outros) o Soldado Condutor Auto Rodas João da Silva Arteiro NM 15393470 da Companhia de Caçadores 3309.
Foto 2: Para fugirem à tortura do "arroz com peixe" elementos da C.CAÇ. 3309 assam uma peça de carne de gazela abatida numa ida ao mato para apanhar lenha. Na foto estão (entre outros) o Mendes, 1º Sargento Barreto NM 50037311 (falecido após o nosso regresso em 1975) e o 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem Azevedo NM 05802970. Aquartelamento de Tartibo. Norte de Moçambique 1971.
Foto 3: Diziam eles que estavam a proceder a "uma operação cirúrgica". Na foto estão o Alfredo, Cardoso, Lopes, Óscar (que dizia estar a segurar no frasco do soro) e o Gonçalves, que procedem à assadura de uma peça de caça, também com o objectivo de se livrarem do tormento do "arroz com peixe". Aquartelamento de Tartibo. Norte de Moçambique 1971.

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