quinta-feira, 23 de agosto de 2007

23 de Agosto de 1971


(...) Decorria o dia 23 de Agosto de 1971, e a coluna de reabastecimento seguia lentamente num movimento agonizante, debaixo de um calor abrasador que nos encharcava o camuflado e nos queimava o rosto carregado de incertezas. Tendo saído de Palma pela manhã com destino ao aquartelamento de Pundanhar, antes deste aquartelamento e ao quilómetro 10, a viatura onde eu seguia accionou uma mina anti-carro que me projectou do volante para as traseiras da viatura, onde apenas sofri pequenas escoriações num braço e sem qualquer gravidade. Como logo de seguida a coluna fora atacada com armas automáticas pelos guerrilheiros da FRELIMO, só após o cessar do tiroteio é que se pode tratar dos soldados feridos em virtude do rebentamento da mina. Ao lado da Berliet com a parte de frente totalmente destruída, agonizava um soldado africano das nossas tropas e pertencente à Companhia de Caçadores 2703 estacionada em Pundanhar, que, ao saltar da viatura após o rebentamento da mina anti-carro, accionou uma armadilha colocada na berma da picada, onde um dos estilhaços da granada lhe perfurou profundamente a cabeça, ligeiramente acima do olho. Antes de chegar o enfermeiro, ainda tive tempo de lhe tapar o ferimento com vários lenços e até com parte do meu camuflado que rasguei na tentativa de lhe estancar o sangue, mas, tal era a profundidade do ferimento que o sangue não parava de sair em golfadas. Passados quase 35 anos, parece que ainda estou a ouvir aquele soldado a implorar-me (e mais tarde ao enfermeiro que entretanto chegou) que o salvasse, dizendo ao mesmo tempo (no meio da sua agonia que o fazia triturar as palavras à medida que ia desfalecendo) como se adivinhasse a sua "sorte":

- Salvem-me, porque ainda quero ver os meus filhos a brincar no aldeamento onde nasci...

- Salvem-me por favor, porque ainda quero ouvir o som dos batuques da minha aldeia, e cheirar a mandioca esmagada no pilão pelos braços frágeis da minha mulher...

Não cheguei a saber o nome deste soldado porque não pertencia à minha Companhia, mas seguia ali na coluna de reabastecimento fazendo parte de um pelotão de protecção à mesma. Antes de o helicóptero de evacuação chegar, já o soldado africano tinha falecido apesar dos esforços do enfermeiro, sendo evacuado para o Hospital de Mueda, assim como outros feridos com alguma gravidade em resultado da emboscada que se seguiu ao rebentamento da mina anti-carro, e às várias armadilhas que rebentaram e que estavam espalhadas pela mata circundante.

Porque também alguns soldados moçambicanos foram vítimas da violência colonial. Porque a "bota colonialista" também esmagou e enlutou mulheres moçambicanas, aqui fica um abraço solidário de quem sobreviveu.

Carlos Vardasca
23 de Agosto de 2007

Nota: Na foto, o momento da evacuação do 1º Cabo Atirador NM 13382970 da Companhia de Caçadores 3309, António Natálio Sequeira Serrinha, gravemente ferido em 14 de Julho de 1971.

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