sábado, 7 de junho de 2008

"Breves pausas em tempo de guerra"


(...) Passada a incerteza recortada pelo olhar cansado, distante e desconfiado, onde o medo transformava o seus rostos já meio desfigurados por noites mal dormidas, era no aconchego do regresso ao aquartelamento que se voltavam a estreitar as amizades e se forjavam por outro lado novas preocupações pelas notícias do correio trazidas pelo helicóptero.
De gargantas ressequidas, sacudidos do pó que se entranhara pelo camuflado levantado pelo caminhar lento na picada e refrescados agora pelo banho de chuveiro, cuja água fora trazida do rio Metumbué, aqueles corpos repousavam agora gastos de cansaço. A Operação que durara cinco dias, com caminhada intensa por entre as lianas que obstruíam a progressão no terreno, terminara sem qualquer contacto com a FRELIMO, e era agora, à mesa, depois de um descanso bem merecido, que grupos de soldados mergulhavam em petiscos improvisados e refrescados pelas "latinhas" de cerveja e as temíveis "Bazookas" (como a que o Pereira (1) se sacia) desvanecendo todos os medos, enquanto a noite se abatia sobre as tendas de lona meio ressequidas pelo sol abrasador que se escondera para lá das montanhas da Tanzânia.
A aldeia distante, a família em constante desespero, os horrores da guerra e o simples questionar da nossa presença - ali tão longe de tudo, transformava-se num novelo de conversas à luz forçada de um gerador desconjuntado, que roncava forte no seu trabalhar, assemelhando-se às saídas das granadas de morteiro 82mm da guerrilha, que nos obrigavam a fugir de emergência para a segurança dos abrigos.
Eram de facto momentos únicos que nos permitiam fingir ignorar os horrores da guerra. Tudo era pretexto para juntar à volta da mesma mesa "Mouros" e "Ratinhos", tragando nacos de frango (saqueados numa incursão relâmpago ao aldeamento ou ao galinheiro do capitão) saboreados com satisfação até ao lamber dos dedos, desde que logo empurrados pela fresquidão das "Laurentinas", que escorregavam logo atrás de um pedaço de carcaça bem untada do molho já coalhado, que cobria o tabuleiro de alumínio já meio escurecido pela servidão.
Pela noite dentro, com os very-lights lançados pela guerrilha a sobrevoarem e a iluminarem todo o aquartelamento, transmitindo-nos outros tantos momentos de insegurança pela eminência de um ataque, o silêncio, que conseguia pairar por entre os intervalos do roncar do gerador como se fora o cacimbo a humedecer pela manhã a fragilidade do capim, deixava que outros, quais crianças embaladas, adormecessem, esquecendo momentaneamente o que decerto estaria espreitando impaciente para lá do perímetro defensivo do aquartelamento, no interior da mata densa e a coberto da folhagem escurecida pela noite (...)

Carlos Vardasca
07 de Junho de 2008
Fotos: A malta da Companhia de Caçadores 3309 na hora do tacho no Aquartelamento de Tartibo e num petisco na oficina auto em Nangade.
(1) Alfredo Bernardino Pereira, Soldado Condutor Auto Rodas NM 1540770 da C.CAÇ. 3309, natural de Algés e falecido em 1975.




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