quarta-feira, 2 de junho de 2010

Testemunho da trágica "Odisseia" de um ex-combatente

"África Minha"
Temos utilizado este espaço para, aqui e ali, veicular umas imagens, uns comentários, políticos ou outros, dito umas baboseiras, que também são necessárias, etc, etc., sendo que, … de nós próprios, da nossa realidade, da nossa odisseia, daquilo que foi a nossa passagem pela guerra, pouco temos comentado, e possivelmente seria curioso, divagar e recordar um pouco.
Será também uma forma de nos conhecermos melhor, já que, o que nos tem trazido aqui, foi a passagem comum, mas em locais diferentes, com experiências diferentes, por uma guerra que, para além de massacrante, como todas as guerras, foi injusta.
Da época em que a vivemos fisicamente, temos comentado muito pouco.
Seria interessante uma passagem pelo passado, uma espécie de exorcismo. O que acham?
Começo por mim:
Estive em Tartibo, local situado junto à margem do Rio Rovuma.
Este local esteve, não direi, submerso por invasão das águas daquele rio, mas quase, durante cerca de 2 meses.
Aqui, sofrer o rigor da situação, foi obra, meus amigos.
Dois pelotões da Companhia de Caçadores 3309 e um da Companhia de Artilharia 2745, passaram muita fominha, muita sede e grande parte do grupo de resistência, padecia de paludismo e bilharzioze.
Urinava-se algo que mais parecia sangue.
Não vou alongar-me em descrições, pois isto daria pano para mangas.
Após a secagem das terras, junta-se toda a C.Caç. 3309 e começam as operações em terra firme.
Muita patrulha, muita picada.
Dá-se o ataque à famosa Base Beira.
Foi a minha primeira grande operação militar, quase clássica, tendo em atenção os meios envolvidos.
Assisti, infelizmente, à morte de um elemento da 3ª Companhia de Comandos que mais tarde iria para Omar.
Decidi aí, ingressar nos GEs.
Fui integrado nos GEs 212, de Nhica do Rovuma, em fomação, ao qual dei toda a instrução em Nangade, e prestámos juramento em Agosto de 1971, juntamente com outros Grupos Especiais, na presença do General Kaúlza de Arriaga.
Na 2ª parte da nossa formação fomos atacar uma base existente nas margens do Lago de Lidede, conjuntamente com outros Grupos Especiais.
Tivemos feridos e efectuámos o ataque que, muito embora não tivéssemos podido confirmar, terá provocado, grandes estragos entre o IN.
Ao retirarmos e após se ter dado a localização com rigor a Omar, este aquartelamento continuou a flagelar o IN, com armas pesadas.
Já em Nhica do Rovuma, local guarnecido por um pelotão da Companhia de Caçadores estacionada em Pundanhar, o qual tinha a responsabilidade da logística da povoação de Nhica do Rovuma, fui assim, o responsável por todas as operações dali desencadeadas pelos GEs.
Ali, assisti, ao abate de um T 6, por artilharia da Tanzânia.
Ali, perdi um graduado dos GEs(1), considerado oficialmente como desaparecido, mas que, bem sei, foi abatido pelos tanzanianos e enterrado na Tanzânia.
Ali, construí um Centro Social para os GEs, onde os reunia e ensinava as primeiras letras em português, pois a maioria, só falava Maconde ou Swahili.
Ali aprendi a falar Maconde e Swahili.
Ali, fiz de guerrilheiro, enfermeiro, parteiro, financiador, agente casamenteiro, segundo os usos e costumes locais.
Ali, era tratado por “Régulo Branco”.
Ali, cheguei a jogar com outros camaradas, ao King, para disputar, o banho seguinte, (não havia água para esses luxos) o qual era agendado para dali a 15 dias.
Ali, fiz emboscadas, golpes de mão, tendo abatido alguns elementos IN, ali fiz prisioneiros, ali apanhei armas, ali, tive mortos em combate.
Ali, requeri o direito à posse de uma Kalashnikov, capturada ao IN, o qual, me foi concedido pelo Comando Geral. Direito esse consignado nas NEP que regulavam as tropas de intervenção onde se enquadravam os GEs.
Ali, me roubaram essa arma.
Quem? – O Sr. Comandante da Companhia de Caçadores que se encontrava sediada em Pundanhar, Capitão Resende.
Ali, estive provavelmente cerca de 6 meses sem conviver com um branco, com excepção dos momentos efémeros, em que era reabastecido.
Ali, cheguei até a duvidar da existência de comboios, televisão e cinema.
Ali, permaneci 22 noites seguidas no mato, para garantir segurança na zona que me estava confinada, das colunas que efectuavam o abastecimento a Nangade, em função da “ Operação Fronteira”.
Talvez a operação que, em paralelo com a Nó Górdio e a defesa da barragem de Cabora Bassa em Tete, tenham envolvidos mais meios, quer em pessoal, quer em recursos militares.
Ali, tive paludismo 6 vezes seguidas.
Ali, fui proposto à graduação ao posto de alferes miliciano, por 2 ocasiões, as quais sempre rejeitei.
Ali, estive até ao fim da comissão de serviço.
Pergunto: Alguém saberá por acaso o que aconteceu aos GEs (após o 25 de Abril), a quem ensinei português, e aos quais, disse e enganei, que aquela era a língua da sua pátria?
Eu não sei. E tenho pena.
Apenas sei, que já após o 25 de Abril os combates prosseguiam, aqui e ali, e possuo correspondência dessa época, que o confirmam.
(1) Furriel Miliciano NM 12619071, Castro Guimarães dos GEs 212, abatido em 15 de Novembro de 1972 nas margens do rio Rovuma e sepultado em lugar desconhecido em território tanzaniano.
Foto 1: O Furriel Miliciano Pinto, com o seu grupo de combate dos GEs 212 à saída do arquartelamento do Nhica do Rovuma no início de uma operação. Cabo Delgado, Norte de Moçambique 1972.
Foto 2: O Furriel Pinto embrenhado na mata em plena operação próximo do rio Metumbué. Cabo Delgado, Norte de Moçambique 1972.

Filipe Manuel Cardão Pinto
Ex-Furriel Miliciano NM 14172170 da Companhia de Caçadores 3309.
Comandante dos GEs 212 no Aquartelamento de Nhica do Rovuma.

Quarta-feira, 02 de Junho de 2010

1 comentário:

Jaime Froufe Andrade disse...

Caro ex-Combatente

Venho convidar-te a ver uma história de guerra vivida por mim há mais de 40 anos, em Moçambique e que ainda está à espera de conhecer um epílogo. Se gostares, conforme espero, nesse caso peço-te por favor que divulgues o episódio pelos teus contactos. A razão deste meu pedido facilmente a descortinarás durante o visionamento do vídeo que anexo.
Um abraço de camaradagem
Jaime Froufe Andrade

http://www.youtube.com/watch?v=KrR0G262dqU

PS - Podes também aceder ao vídeo digitando em Youtube as seguintes palavras: guerra colonial rádio