quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

“Quem me dera que a tropa fosse sempre assim ...”

(...) Tínhamos atravessado o rio Metumbué, afluente do rio Rovuma, para a instalação do novo aquartelamento no Tartibo, na margem direita daquele rio, já que na esquerda vislumbrávamos a Tanzânia e o nosso inimigo. Tudo isso nos deixou de rastos, — corpos desnudos num calor infernal.
Arrastávamo-nos cambaleantes, pois não existiam pontes nem barcaças.

Não sei como nem porquê, ficámos especados naquele imenso matagal. O resto da malta já havia destroçado para o aquartelamento.
E nós, meia dúzia de gatos-pingados, ficáramos ali não sei se esquecidos ou como guardas do
material que ainda ali ficara. Com muito medo e muito capim à nossa volta, perplexos e exaustos, desconhecedores da picada, perguntámos:
— E agora?
Sair dali era perigo iminente, a emboscada espreitava a cada passo, embora fossemos portadores duma G3.
— E o material?
O calor abrasava e a sede apertava. Beber água do Metumbué era suicídio certo; esta água era imprópria para lavar roupa…
— “Eureka”! — gritou alguém que no meio daquele material vislumbrou uma pipas amontoadas por entre o material. Era vinho.
Bebemos… e tanto bebemos que nos esquecemos de deixar de beber… depois, vendo vários trilhos, orientámo-nos pelo do meio anteriormente recalcado pelos nossos camaradas.
G3 às costas ou a tiracolo. Posição de tiro “nem pó”… risos provocados pelo elixir de Baco e a descontracção natural de qualquer turista de visita a terras de África.
Chegado ao aquartelamento (cerca de seis quilómetros) dirigi-me mais ou menos sóbrio ao Capitão e perguntei-lhe o porquê de tanta demora. Tínhamos sido esquecidos …
Recebemos uma menção honrosa pelo nosso destemor. No dia seguinte foram buscar o resto do material. Entre nós (os esquecidos e ainda estupefactos pela nossa pseudo-ousadia) houve alguém que comentou:
— Quem me dera que a tropa fosse sempre assim (…)

João da Silva Arteiro
ex-Soldado Condutor Auto Rodas NM 15393470 da Companhia de Caçadores 3309
Vila do Conde, 27 de Abril de 2007


Foto: João da Silva Arteiro na secretaria da C.CAÇ. 3309 em Nangade (1971) na companhia do 1º Sargento de Infantaria NM 50037311, Joaquim Eduardo Carvalho Barreto (falecido em 1975) e do Soldado dos Serviços Gerais NM 07013070, Albino dias de Sousa (em último plano na foto) falecido em combate em 20 de Julho de 1971 em virtude de um rebentamento de uma mina anti-carro no Unimog 404 onde seguia, conduzido pelo 1º Cabo Condutor Auto NM 11694170, Victor Manuel da Silva (também da C.CAÇ. 3309) que veio a falecer, assim como os restantes oito ocupantes da viatura, na sua totalidade trabalhadores agrícolas que se deslocavam para as machambas junto ao rio Litinguinha nas "Águas" do Aquartelamento de Nangade. (Em destaque uma foto actual do autor do texto).

In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". História da Companhia de Caçadores 3309. Moçambique 1971-1973, página 189.

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