terça-feira, 11 de novembro de 2008

"... Quando os sinos não dobram"

(...) Quase era capaz de reconstruir na íntegra todos os dias passados no "Ultramar". Pormenores aparentemente sem grande importância persistem em vir de quando em quando à superfície. Foi, mais uma vez, o que aconteceu há pouco ao ler uma mensagem do Vardasca que pedia a todos o contributo de uma história.
Apesar do "Niassa" e das Berliet's nos depositarem lá nos confins do sertão africano, a uns quantos quilómetros de distância, permaneceu sempre em cada um de nós, fossemos ou não saudosistas, um apego muito forte ao sítio onde nascemos e, até então, tínhamos vivido. Era insustentável, até por este motivo, uma guerra, longa como aquela, travada numa terra que não era nossa e longe da que nos lembrávamos todos os dias.
Penso que há um significado no que vou contar. Pelo menos para mim tem.
(...) Como sabeis, o segundo acampamento de Nova Torres, apesar de montado numa pequena elevação para o interior, veio a sofrer também com a enorme cheia do Rovuma. Todos os dias uns centímetros eram acrescentados ao nível das águas. Até que se decidiu, por já não ser viável viver-se ali, procurar outro lugar mais alto na margem direita do Metumbué.
Durante a noite que antecedeu a nossa patrulha que iria ser feita em botes (Zebros), pouco ou nada se conseguiu dormir. A água dava-nos pela barriga e alguns julgaram mais conveniente subir para as acácias e aí descansar, atando as extremidades das mantas aos galhos e fazer uma espécie de cama de rede.
Eu não me aventurei a isso e resolvi passar a noite, envolto num impermeável, em cima de um "bidon" a fumar cigarros atrás de cigarros até se fazer hora de partir.
Eis senão quando, no meio dessa noite cerrada e chuvosa, um dos que tinha adoptado os hábitos do "Tarzan", estatelou-se com estrondo na água vindo dos galhos.
Logo todos começaram a meter-se com o pobre que tinha caído. Risada na noite. Daí a pouco, já tudo serenado, ouvi aquela vítima comentar:
- É pá, até estava a ouvir os sinos da minha aldeia!...
Não sei quem era o então rapaz a quem aquela guerra separou dos sinos da aldeia. Oxalá que hoje os possa ouvir.
O retorno às nossas raízes haveria de durar ainda mais dois anos.
Infelizmente para alguns essas raízes foram cortadas radical e abruptamente na idade em que são legítimas todas as esperanças (...)

Fernando Manuel Pêgo da Silva Barros
ex- Alferes Miliciano NM 10124269
da Companhia de Caçadores 3309
In "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". História da Companhia de Caçadores 3309. Carlos Vardasca.2008.
Foto 1: O Alferes Barros em formatura com o 1º pelotão da C.CAÇ. 3309 no Aquartelamento de Tartibo. 1971
Foto 2: O Alferes Barros no intervalo de uma operação junto do rio Metumbué. 1971

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