(...) O "Bocas" (1) acabava de aterrar na pista de Nangade, sem desta vez vir munido daquele enorme altifalante habituado a vomitar a doutrina do ocupante, cujo som se embrenhava na mata tentando convencer algum guerrilheiro menos convicto, vencido pelas dificuldades que a luta de libertação exigia.
Repleto de carga, onde se misturavam para além das barricas de madeira atafulhadas de carne vindas da América do Sul, salgadíssima e de consumo intragável, cunhetes de munições que já iam escasseando no Aquartelamento desde o último ataque a Nangade, lá vinham também umas caixinhas inofensivas, apesar de enormes, identificadas com uma listagem pintada com letras muito gordas onde se podia ler:
- "Aos soldados de Portugal - uma lembrança do Movimento Nacional Feminino - Natal de 1971".
Desta vez, "aquelas burguesas do regime e serviçais da caridadezinha nas horas vagas" não nos traziam maços tabaco do mais rasca que havia no mercado, nem isqueiros Ronson que mais pareciam "pequenos depósitos de combustível", idênticos aos que nos foram distribuídos no dia do embarque no Cais de Alcântara, mas placas negras de vinil que diziam ser mensagens de natal, onde os "bibelous do regime" patricionados pelo SNI (2) se uniam para nos embalar, tentando fazer-nos esquecer o inferno onde todos em uníssono nos quiseram atolar.
Lá estavam todos a prestar o seu apoio na produção daquele compacto de lamurias, desde ministros do Estado Novo ao Eusébio, da Amália à Companhia União Fabril (CUF), SONAP e CIDLA, ao Banco Borges e Irmão, Florbela Queiróz, Inspector Varatojo, Parodiantes de Lisboa e Hermínia Silva, numa união perfeita entre "a cultura da época e os velhos do restelo", todos em coro a prestar vassalagem aos ideais do império que diziam ser "do Minho até Timor".
Estávamos em Novembro de 1971 e aproximava-se o mês do natal, quando aquelas delicadas senhoras saídas do Dakota, velha lata voadora, se puseram a distribuir por todos os soldados ali aquartelados centenas de exemplares do "nacional cançonetismo", velha lamuria que nos tentava incutir a exaltação dos valores pátrios numa "cruzada contra os infiéis africanos", enquanto os cantores de intervenção eram silenciados para que os seus cânticos não toldassem as mentes patrióticas de quem lutava contra o que classificavam de "terrorismo a soldo do comunismo Chinês".
Sem luz eléctrica nem aparelhagem que fizesse girar os 33 RPM, a maioria de nós possivelmente só os ouvimos de regresso ao nosso aconchego familiar, quando já os ventos sopravam em direcção a um "Abril que se adivinhava ao virar da esquina, onde o protesto, apesar de silenciado, já se sentia querer libertar-se e respirar o sopro de mudança" (...)
Carlos Vardasca
07 de Novembro de 2008
Fotos: Capa e contra capa do disco "Natal 71", edição do Movimento Nacional Feminino (MNF).
(1) Dakota. Aeronave da Força Aérea Portuguesa, que tinha como missão sobrevoar as zonas onde se pensava existirem bases da FRELIMO, estando dotado de potentes altifalantes para difundir mensagens, com o objectivo de convencer os guerrilheiros que combatiam na mata a entregarem-se ao exército ocupante.
(2) Serviço Nacional de Informação
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