segunda-feira, 27 de outubro de 2008

"A fala dos batuques"

(...) Ao entardecer e quando o sol já se deitara muito para lá do outro planalto, deixando o Aquartelamento de Nangade mergulhado num manto colorido da cor do fogo, já os sons vindos do aldeamento penetravam pelas casernas interrompendo a leitura das notícias da manhã trazidas pelo helicóptero, ou os rituais gatafunhos meio desconjuntados e impressos num bloco de linhas comprado na loja do "Monhé" que iriam rasgar sorrisos numa qualquer aldeia distante.
Vestidos a rigor, atirando para o lado os velhos camuflados rasgados e gastos pelo tempo enquanto os Obus 14 e as anti-aéreas vigiavam atentos muito para lá do arame farpado, os soldados lá seguiam rumo ao aldeamento com os trajes da "Metrópole" inundados de naftalina, na ânsia de impressionar alguma jovem negra, que da confusão do batuque ousasse partilhar a escuridão da palhota com um Zungo (1).
Latas velhas de óleo de palma; bidons vazios do combustível dos helicópteros; pequenas peles de gazela já ressequidas e mal esticadas numa tosca armação de bambu; latas de manteiga já um pouco ferrugentas, com um braço de madeira onde se esticavam quatro arames que entoavam sons repetitivos, desordenados, mas melancólicos, tudo servia para acompanhar os cânticos que nenhum de nós entendia, acompanhados por danças ritmadas por corpos negros, seios esbeltos, cuja beleza dos seus contornos as Capulanas coloridas por vezes deixavam a descoberto.
Da enorme fogueira de labaredas alterosas que iluminavam todo o largo, eram "cuspidas bolas de fogo" que tingiam o rosto de quem se aglomerava naquele círculo enorme, onde os Macondes entoavam outros "gritos guerreiros" que se faziam ouvir por todo o vale e que a maioria de nós não entendia, mas que soavam a protesto e tinham destinatário.
Sem nada entender que mensagem estava a ser transmitida, restava aos soldados, já com o cacimbo a vaguear pelos telhados de colmo e o som do pilão a "mastigar" a mandioca, regressar às casernas e mergulhar num curto sono que seria interrompido pelo roncar das Berliet e a azáfama de quem partia para mais uma operação de reabastecimento, que se embrenharia no interior deslumbrante do verde da mata, cenário paradisíaco "que se ofendia com a nossa indiferença", por vezes traiçoeiro, porque era dali que sopravam os ventos da revolta contra o ocupante e onde se escondia o destinatário das mensagens dos batuques (...)

Carlos Vardasca
27 de Outubro de 2008
Foto 1: Por do sol visto de Nangade com o Obus 14 em primeiro plano.
Foto 2: Por do sol nos Planaltos da Tanzânia visto do Aquartelamento de Nova Torres.
Foto 3: Preparativos para o Batuque no aldeamento Maconde em Nangade, acto festivo que se prolongaria pela noite dentro. Na foto pode ver-se (entre outros) em primeiro plano o 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem NM 10147770, José Fernando Pinto Silva da Companhia de Caçadores 3309.
(1) Branco, em dialecto Maconde.



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