terça-feira, 7 de outubro de 2008

"Aprende-se sempre com a lição"


(...) É certo que estas coisas não se devem generalizar, mas decerto que alguns de nós durante o cumprimento do serviço militar passámos, durante a instrução na recruta, por uma ou outra humilhação levada à prática por um "Furrielzeco" qualquer que, por ter tirado o 9º ano de escolaridade à pressa, já se achava no direito de exibir perante os recrutas um comportamento por vezes provocador e que roçava o complexo de inferioridade disfarçado de autoridade.
No C.I.C.A.5 (1) em Lagos, onde tirei a recruta, a chefiar o nosso Pelotão tínhamos um Alferes que era uma jóia de pessoa mas um Furriel com as características acima citadas.
Sempre que havia correio para distribuir pelos recrutas, o Furriel, ao fazer a sua distribuição, não chamava pelo nome dos mesmos mas lia o nome impresso no remetente das cartas:
- Maria Joaquina Abreu - chamava o Furriel. Um dos Soldados, ao reconhecer o nome do seu familiar, lá ia receber a sua carta embora demonstrando algum descontentamento, apesar de alguns até acharem alguma piada ao facto.
Ao fim de algum tempo começou a generalizar-se um certo mal estar e, na caserna, os Soldados daquele Pelotão combinaram, como forma de protesto, não responder à chamada sempre que as suas cartas fossem identificadas pelo remetente.
Depois de algum tempo a malta começou a ficar impaciente com a ausência de correio, dado que sabiam que algumas daquelas cartas que se amontoavam nas mãos de Furriel lhes eram dirigidas, até que a dada altura e durante a instrução militar, o Nabais (2) insurgiu-se contra o comportamento do Furriel dizendo-lhe:
- "Se o meu Furriel continuar a não distribuir as nossas cartas como deve ser e continuar a reter a nossa correspondência só porque nós não admitimos que goze connosco, vamos ter merda".
Sentindo-se desautorizado, o Furriel respondeu meio indignado:
- "Ai vamos ter merda, é"? - Ordenando de imediato ao Soldado Nabais que fosse à arrecadação e trouxesse dois pares de luvas de boxe, aproveitando para lhe dizer que calçasse logo as suas, dizendo que a instrução naquela tarde ia ter como tema; Técnicas de Combate e Defesa Pessoal.
Com o resto do Pelotão formado em círculo, meio escondido por entre dois muros de um dos recantos do quartel e os dois protagonistas no centro, o combate iniciou-se, com o Furriel a cumprir todas a regras mas a atingir com alguma violência o Nabais em várias partes do corpo.
O Soldado Nabais, já bastante irritado por saber que o Furriel se estava a aproveitar da instrução para se vingar da sua "ousadia" por ter questionado o seu comportamento na distribuição do correio, mas sem perceber nada das regras de pugilismo, atirou-se ao Furriel com alguma agressividade pondo-o a sangrar do nariz, tendo a malta do Pelotão que os separar, pois aquela briga já parecia estar a passar dos limites, muito para além de uma mera instrução militar.
Apesar de ter visto frustrada a sua tentativa de humilhar o Soldado Nabais tendo saído derrotado daquele combate ("onde as regras foram atiradas para as urtigas"), mas também compreendendo os motivos de toda aquela indignação, o Furriel dirigiu-se à enfermaria para fazer o curativo sem sequer ter apresentado posteriormente qualquer participação do ocorrido ao oficial de dia.
No dia da entrega do correio (onde foram também distribuídas as outras cartas em atraso que tinha em sua posse) o Furriel iniciou a sua distribuição chamando agora pelo seu destinatário:
- Soldado, João Luís dos Santos Nabais! - ao que este respondeu:
- Pronto meu Furriel, sou eu - agradecendo, mas não deixando de acrescentar:
- Assim está bem meu Furriel! - agora parece que nos estamos a entender (...)
Carlos Vardasca
07 de Outubro de 2008

(1) Centro de Instrução de Condução Auto nº5, na cidade de Lagos.
(2) João Luís dos Santos Nabais, Soldado Recruta que veio a integrar a Companhia de Caçadores 3309 a quando da formação do Batalhão de Caçadores 3834 na cidade de Chaves.
Foto: 1º Pelotão de Recrutas do CICA 5 em Lagos de que eu fazia parte (foto em destaque) sendo o Nabais o segundo a contar da esquerda (em pé). Lagos 1970

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