sábado, 15 de dezembro de 2007

"...Oxalá não tivesse sido assim"


(...) Quantas vezes no nosso dia a dia nos confrontámos com histórias (que roçavam quase o ridículo) contadas por vezes em jeito de uma pseudo-heroicidade inexistente e ainda no rescaldo do entusiasmo da participação no conflito colonial, muitas vezes contadas por quem, apesar de ter sido mobilizado, sempre observou a Guerra Colonial das cidades e nunca "saiu do arame farpado" e não viveu (e ainda bem que não) todos os dramas porque passaram quem convivia diáriamente de perto com os dramas ocorridos na frente de combate. O ano passado, no Café da Júlia, e porque calhou em conversa, contei a um amigo meu um episódio passado com a Companhia de Artilharia 2745, que a Companhia de que eu fazia parte a foi render nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia. Ele não acreditou, ao ponto de ridicularizar o que acontecera, dizendo que era mais uma das histórias de quem se queria vangloriar (como se o episódio não fosse apenas o resultado do dramatismo e das condições adversas com que eram confrontados a maioria dos soldados que foram destacados para a frente de batalha). Fiquei impressionado com aquela falta de sensibilidade e, por esse facto, fui a casa buscar o relatório dessa operação militar(1) dando-o a ler a esse meu amigo que, depois de se confrontar com a realidade ali relatada, e porque também como eu é de "lágrimas fáceis" pediu-me, emocionado, desculpa pela sua ignorância. Esse relatório, de quatro páginas e que descrevia uma operação militar de cinco dias efectuada pela C.ART. 2745, dizia a determinado momento o seguinte:


(7) (...) Em 12 de Novembro de 1970 a C.ART. 2745 manteve-se na mesma zona conforme ordens recebidas, já com bastantes problemas de água, uma vez que o percurso a corta mato foi extenuante e o reabastecimento insuficiente face às necessidades. Nesse dia grande parte do pessoal deixou de comer por não ter água para acompanhar a comida, e começaram a surgir desmaios e delírios.

(8) Em 130300NOV70, aproveitando a frescura da noite e aproveitando a seiva de raízes para mitigar a sede, iniciou-se a marcha para W, pelo lado norte da picada e sempre perto desta, à mínima distância de segurança para evitar accionamento de armadilhas IN das bermas da picada e, em 130800BNOV70 atingiu-se o local coord.3952.1056,6 onde o agrupamento ficou reunido à espera de água.

Nesta ocasião, mais de 10% do pessoal estava inoperacional, os estimulantes das bolsas de enfermeiro estavam a esgotar e foi necessário dar soro a beber a um militar que apresentava sintomas de desidratação. Militares houve que, contra tudo o que está indicado e fora da vigilância dos graduados beberam urina, pelo que foram severamente admoestados. Outros ainda arranjaram forças para abrir um poço numa lângua e, como não houvesse água, chuparam a terra húmida.

Em131300BNOV70 chegou a coluna vinda de Nangade com água e racções de combate, fez-se o reabastecimento, ministraram-se comprimidos toni-hidratantes ao pessoal, todos foram obrigados a comer, pois a maioria o não fazia havia mais de um dia, e pelas 14,00 horas iniciou-se o regresso ao quartel onde se chegou em 131900BNOV70 (...)


(1) Relatório de Operações nº12/70 de 13 de Novembro de 1970, assinado pelo Capitão de Artilharia, Comandante da C.ART. 2745 José Fernando Jorge Duque.


Foto: Elementos do 3º Pelotão da Companhia de Caçadores 3309 em patrulha na picada ente os Aquartelamentos de Nangade e Tartibo. Norte de Moçambique 1971.

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