(...) Eram cerca da 18,00 horas do dia 05 de Fevereiro de 1971 quando o navio "Niassa" atracou no porto da cidade de Luanda, após doze dias de viagem, tendo partido no dia seguinte rumo a Lourenço Marques (Maputo) onde chegaria nove dias depois.
Durante a viagem, quem escreveu para a família, tinha agora uma boa oportunidade de enviar a correspondência, dado que os soldados foram autorizados a sair do navio e desanuviar um pouco pela cidade. Eu, o Nabais(1) e o "Foz"(2) dirigimo-nos a uma pequena esplanada ao fundo da marginal de Luanda e próximo da cervejaria "Baleizão", e aí aproveitámos para concluir alguma escrita em atraso e refrescar a garganta ressequida com três avultadas canecas de cerveja preta. A dado momento, reparei que o Nabais (secundado pelo Foz) deixara de prestar atenção à escrita, tendo posteriormente também todas as atenções dos presentes naquela esplanada (na sua maioria militares) se dirigido para um dos extremos do estabelecimento, onde ocorria algo que provocou a indignação de todos. O proprietário do estabelecimento (de muito gordo que era que todo o seu corpo se balanceava como se fosse uma gelatina) depois de ter arrancado um dos jornais da bolsa do miúdo que os vendia, devolveu-o, depois de o ter lido demoradamente, amarrotando-o enquanto dizia:
- Saiam daqui seus pretos d'um cabrão - esse jornaleco só diz é mentiras - enquanto pontapeava uma caixa de graxa de um outro miúdo que se preparava para engraxar as botas de um dos militares, danificando-a, partindo todos os frascos de tinta e espalhando toda a pomada pelo passeio. De irritados que ficámos com aquela situação, dirigimo-nos ao proprietário do estabelecimento e dissemos-lhe, depois de alguma discussão, que não pagariamos a nossa despesa enquanto ele não pagasse aos miúdos o prejuízo que lhes causara, atitude que foi logo apoiada pela maioria dos soldados ali presentes. Depois de muita insistência, o indivíduo "gelatinoso" lá decidiu indemnizar os miúdos com uma verba que eles acharam justa, pensando nós que a situação ficara resolvida por ali. Passados alguns momentos e por estranho que possa parecer, tinham acabado de chegar à esplanada um Unimog 404 da Polícia Militar e uma outra viatura civil, que assim que chegaram perguntaram, dirigindo-se ao proprietário:
- Então onde estão esses arruaçeiros?
De uma das mesas da esplanada levantou-se um padre que disse sem demora:
- São aqueles senhor agente - Dirigindo-se a um deles que estava à civil (que mais tarde soubemos ser da PIDE/DGS, apontando para nós os três.
Tinha toda a lógica que o proprietário da esplanada telefonara às autoridades contando a sua versão dos acontecimentos, dado que os agentes à civil deram ordens ao Alferes da Polícia Militar para nos levar de volta ao navio "Niassa", e ali apresentar queixa ao comandante do Batalhão que seguia a bordo.
Chegados ao cais, e já quando subiamos as escadas que davam acesso ao portoló do navio, surpreendentemente, o Alferes que comandava a patrulha da Polícia Militar disse-nos, afastando-se um pouco dos restantes soldados da patrulha:
- Epá! eu não me sinto com coragem de participar de vocês - vão se lá embora e não contem o ocorrido a ninguém - continuando:
- Embora sejamos nós que sofremos mais com ela, esta puta de guerra não é nada connnosco: - os "abutres" da PIDE que se lixem.
Aquele oficial não só decidiu não fazer qualquer participação do ocorrido, como também (e antes de o Unimog partir em alta velocidade) nos disse:
- Epá! só vos desejo é boa sorte, e agora lá em Moçambique para onde vão, não se aventurem - olhem que a pátria sempre foi madrasta para com os seus heróis (...)
Carlos Vardasca
05 de Fevereiro de 2008
(1) Soldado Condutor da C.CAÇ. 3309, falecido em 07 de Maio de 2007.
(2) Soldado Condutor da C.CAÇ. 3309 (actualmente em parte incerta)
Foto: Vista do porto de Luanda.
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