quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

"... Olha o hélio ... olha o hélio"


(...) Olha o hélio...olha o hélio! era uma espécie de "grito de guerra" que era entoado logo que ao longe se avistava aquele minúsculo ponto muito para lá da copa das árvores, refugiado entre as nuvens para fugir ao alcançe das anti-aéreas da FRELIMO. Mal se ouvia aquele barulho tão familiar das suas héliçes e o helicóptero já sobrevoava a baixa altitude, aquele ritual surgia como se tivesse sido ensaiado, o que levava o capitão Hélio Moreira da Companhia de Caçadores 3309 por vezes a indignar-se, de desconfiado que ficava se nas entre-linhas daquela imensa alegria não houvesse ali algum motivo de chacota. O helicóptero deslocava-se ao Aquartelamento de Tartibo com uma periodicidade de quinze em quinze dias, levando àquele amontoado de tendas protegido em todo o seu redor por montes de areia, e encravado no final das escarpas do Planalto dos Macondes, alguns abastecimentos frescos e o tão almejado saco do correio, que era o verdadeiro motivo daquele ritual que por vezes parecia ser cantado em coro. Depois da distribuição da correspondência e com os ânimos já mais tranquilos, uma certa ansiedade abatia-se sobre o Aquartelamento, onde cada um se refugiava no seu canto para saborear aqueles "gatafunhos", que se acotovelavam entre as apertadas linhas azuis mas com sabor a notícias frescas. Quem estivesse de parte a observar, descortinava no meio daquela "meditação colectiva" uma mistura de vários silêncios, por vezes interrompidos; ora pelo franzir do rosto ou pelo brilhar de uma lágrima que teimava em cair, muitas vezes motivado pelo nascimento de um filho que tardou em nascer ou pelo anúncio de um amor bastas vezes traído pela ausência.
Depois de vazio, o saco do correio era inglóriamente atirado para um dos cantos da secretaria, e ali jazia até que no seu interior se acomodasse um novo amontoado de envelopes e "bate-estradas"(1) prenhes de "lamúrias", até que o helicóptero os levasse de volta, indiferente às lamentações e a uma ténue alegria, que seriam depois entregues numa qualquer aldeia distante, onde uns lábios carentes as iriam soletrar vezes sem conta (...)

Carlos Vardasca
13 de Fevereiro de 2008

Foto: Soldados da Companhia de Caçadores 3309 assistem à distribuição do correio no Aquartelamento de Tartibo. Cabo Delgado. Norte de Moçambique 1971.
(1) Aerogramas.

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