terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

" ... Quando o egoísmo é fabricado pelo medo."


(...) O dia já tinha corrido mal naquela coluna de reabastecimento entre os Aquartelamentos de Palma e Pundanhar, com o rebentamento de uma mina anti-pessoal que amputara a perna ao soldado que a pisara, causando ferimentos ligeiros num outro soldado condutor que estava próximo. Efectuadas as evacuações de helicóptero, a coluna não pode reiniciar a marcha com a falta de um condutor e, por esse facto, houve necessidade de se comunicar com o Aquartelamento de Pundanhar que ficava à distância de 12 quilómetros para que enviassem um condutor para substituir o que tinha sido evacuado. A Companhia que estava estacionada naquele Aquartelamento era a Companhia de Caçadores 2703, e o seu condutor assim que chegou ao local do acidente e viu que tinha que conduzir uma viatura Mercêdes, desguarnecida de qualquer protecção lateral e sem sacos de areia que amortecessem qualquer impacto de uma mina que eventualmente viesse a rebentar no seu rodado, disse logo todo irritado:

- Eu não conduzo essa merda! - ainda por cima faltam-me só quatro meses para acabar a comissão.

O alferes, comandante da coluna de reabastecimento ainda lhe perguntou porquê, ao que ele respondeu:

- Não conduzo porque se rebentar uma mina anti-carro nessa viatura eu "lerpo que nem uma pinta".

Perante tanta recusa e ao saberem que seguia na coluna o soldado Gonçalves da Companhia de Caçadores 3309, que conduzia uma Berliet e que tinha chegado à pouco tempo a Moçambique em rendição individual, logo se encarregaram de exigir àquele soldado que cedesse a sua viatura dado que, por ser Checa(1) teria que "hierárquicamente" (e segundo o conceito tão em voga naquelas mentalidades) que se expôr mais aos perigos do que os mais velhos.

O Gonçalves, (de alcunha o "Lixa") ainda tentou contrariar aquelas intenções que considerou retrógadas e de um egoísmo atroz, mas, obedecendo às ordens do Alferes (que defendeu aquela lógica tão desumana) teve que ceder a sua viatura que muito trabalho lhe deu a reforçar com os meios indispensáveis à sua protecção, e conduzir até Pundanhar a viatura Mercêdes (e posteriormente até Nangade numa distância de cerca de 40 quilómetros), totalmente desprotegida e sujeita a todas as consequências resultantes do rebentamento de minas anti-carro, que eram um dos flagêlos com que conviviam diáriamente os soldados que participavam naquele tipo de operações de reabastecimento.
Conscientemente ou não, este tipo de egoísmo "fabricado pelo medo" (embora não fosse generalizado) era muito frequente e assumido nas nossas fileiras, cultivado por uma falsa hierarquia baseada na "velhiçe", cujo conceito estava empregnado de uma desumanidade encoberta por um falso "direito à existência", como se a vida de cada um "estivesse dependente de um calendário e da vontade dos mais fortes".
Carlos Vardasca
12 de Fevereiro de 2008

Foto: O Soldado Condutor Manuel Teixeira Gonçalves da C.CAÇ. 3309, junto de uma Berliet minada com um dístico que visava impressionar os "Checas".

(1) Nome atribuído pelos soldados mais antigos aos recém chegados às zonas de combate.

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