quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

"Não nos roubem um pedaço de nós"

(...) Dos outros irmãos já nenhum restava na aldeia, levados a salto para terras de França, ora fugidos à guerra ou simplesmente para tentarem afugentar o espectro da fome que diariamente lhes ia corroendo o estômago cada vez mais vazio.
Com os pais idosos e deitando um último olhar às terras que iriam ficar por remexer, o "Zé das Cabras", o último filho dos cinco todos já distantes, inesperadamente apresentou-se no quartel por ter sido mobilizado para a guerra de África, perante a aflição de quem se via agora sem mais dois braços para esgravatar naquilo que era o seu sustento, terras até agora lavradas mas que decerto se deixariam vencer pelas ervas daninhas enquanto perdurasse a ausência.
Levados a Lisboa a muito custo para se despedirem do filho, aconchegados num farnel amontoado numa alcofa que seria distribuído por cada familiar; pequenos nacos de broa despedaçados por mãos grossas moldadas pela enxada, os pais do "Zé das Cabras" não se continham por sentirem "que lhes estavam a roubar um pedaço de si sem jeito nem prosa".
No Cais de Alcântara o descontentamento parecia não ser geral, porque uma outra parte se percebia estar a ser contida por presenças estranhas, que misturadas no meio da multidão forçavam àquele silêncio que parecia querer explodir a todo o momento.
Os altifalantes da Gare Marítima entoavam o hino interpretado em jeito triunfal pelo Coro da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT):

"...Angola é nossa gritarei
É carne é sangue da nossa grei!
Sem hesitar, p'ra defender
É pelejar até morrer...

enquanto que ao fundo do cais, por entre expressivos desejos de um regresso que se previa incerto, alguém mais inconformado "explodia como se fora um vulcão, expelindo toda a sua lava transformada em revolta", por ver partir alguém que saíra das suas entranhas e até ali lhe garantira o sustento:
- "filhos da puta ... vão para lá vocês!
- "o meu filho faz-me mais falta do que para guardar os vossos cafezais!
Depois de as tropas terem desfilado junto da tribuna onde se perfilaram os oficiais generais, lado a lado com as burguesas do Movimento Nacional Feminino (MNF) que exibiam os seus casacos da astracã na companhia dos assíduos representantes da igreja católica (que sempre abençoaram aquela guerra "contra o inimigo vindo de Leste"), lá em cima no terraço, por entre laivos de patriotismo misturados com expressões de revolta, agitavam-se imensos lenços brancos que acenavam de raiva (depois dos soldados terem embarcado) para todos os que entretanto agitavam as suas boinas e se penduraram nos mastros e nas amuradas do NIASSA, que aos poucos se afastava do cais e fazia soar cinco apitos estridentes, cujo roncar fazia lembrar a distância entre aquela partida forçada e o aconchego familiar cada vez mais ausente, enquanto que a PIDE, aproveitando-se da angústia, do lamento e do desespero, ia fazendo as primeiras prisões para tentar silenciar os protestos (...) (1)

Carlos Vardasca
04 de Dezembro de 2008

Foto 1: Soldados da Companhia de Caçadores 3309 no dia do seu embarque para Moçambique a bordo do navio NIASSA em 24 de Janeiro de 1971.
Foto 2: Familiares despedem-se dos soldados enviados para a guerra Colonial no dia do embarque na Gare Marítima de Alcântara. Lisboa 1971
(1) in "fardados da lama". Carlos Vardasca 2008.

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