sábado, 29 de março de 2008

É hora do tacho em Nangade

(...) Ao som de pancadas que tilintavam fortes num ferro pendurado no cajueiro, os soldados aproximavam-se em fila indiana da cozinha, respondendo àquele chamamento que indicava que se aproximava a "hora do tacho" em Nangade. Como aquele som era audível nos dois aldeamentos que ladeavam o Aquartelamento, as crianças corriam desordenadamente para junto da cozinha militar na ânsia de também poderem partilhar daquele "manjar", onde aguardavam, sentados de cócoras, até ao final pela sua distribuição pelos militares. Dos caldeirões negros fumegava um odor que nos recordava uma ementa bastas vezes ingerida (que não fosse a escassez de alimentos jamais seria tragada) onde, num acto de malabarista, a solidez do arroz o mantinha colado à marmita e o cachucho meio queimado há muito que adivinhava a sua sorte. Cada soldado, depois de receber o seu quinhão de um cozinheiro mal humorado, sentava-se onde podia; no chão à porta da caserna ou em mesas de madeira meio toscas, construídas com tábuas de barris já sem qualquer proveito, enquanto algumas crianças, sentadas em pontos estratégicos esperavam ansiosamente por qualquer sobra. Os seus olhos, onde o brilho há muito já perdera qualquer reflexo, olhavam-nos vigilantes, sempre atentos a qualquer movimento que lhes devolvesse qualquer esperança, em partilhar o resto do rancho que acabava sempre por sobreviver a um canto da marmita. Quem é que comia tranquilo sabendo à sua frente crianças desnutridas, famintas, que desesperadamente se debatiam com a fome, com os seus olhos a implorar compaixão? A comida do rancho não era farta nem sobre a sua qualidade havia qualquer dúvida; era simplesmente intragável, mas, à falta de melhor, lá se conseguia "empurrar" com a ajuda de um copo de "água de Lisboa" (1) que já vinha caldeada da Manutenção Militar, o que era notório pela sua transparência que deixava ver o fundo do copo. Era raro o militar que não deixava uns restos para saciar o apetite devorador da criança mais próxima (sempre a troco da lavagem da marmita) e era impressionante ver como as suas mãos frágeis, feitas em concha, tentavam levar à boca aqueles escassos bagos de arroz que a muito custo conseguira juntar, misturados com pequenas lasca de peixe que teimosamente se mantinham acomodadas às espinhas, e que serviam de complemento à sua dieta diária, composta (ano após ano) por farinha de mandioca triturada no pilão da família, e por massarocas de milho apanhadas nas machambas um pouco distantes e muito para lá do arame farpado (...)
Carlos Vardasca
29 de Março de 2008

Foto: Eu (de calções e meias até ao joelho) o Arteiro (de calções e camisa camuflados) e outros companheiros do Batalhão de Artilharia 2918, aguardamos na "bicha"a nossa vez para recebermos "arroz com peixe" junto à cozinha no Aquartelamento de Nangade.

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