quarta-feira, 5 de março de 2008

"...Nem os filmes viamos até ao fim"


(...) De quando em vez, e quando às chefias militares bem instaladas em Nampula lhes dava na real gana, lá vinham no helicóptero do correio umas bobinas com as maravilhas de "Sétima Arte", para nos retirarem alguns momentos ao desconsolo do isolamento. Os filmes eram projectados na parede de uma escola onde, e para o efeito, foi pintado eufemisticamente um ecran com a inscrição "Cine Nangade", que nos remetia (salvo as devidas dimensões) para a Avenida da Liberdade e o seu rodopio de néons que nos anunciavam bastas emoções, levadas à cena por um qualquer projeccionista de serviço. As populações dos aldeamentos Macua e Maconde que ladeavam o Aquartelamento também assistiam à sua projecção, mas raramente conseguiamos ver os filmes até ao fim. Na maioria das vezes, as fitas "enlatadas" traziam-nos aquelas "coboiadas" de raciocínio fácil onde o "rapaz" era o bom, e os índios expulsos selváticamente dos seus territórios e chacinados pela fúria colonizadora, apresentados sempre como os maus da fita. Era mesmo na altura, e quando as cenas nos ofuscavam fazendo esquecer o silêncio da noite pouco tranquilizador, que os céus se iluminavam com o lançamento de very-lights (cada um a sinalizar o local dos dois aldeamentos) informando a FRELIMO que do outro planalto se preparava para atacar o aquartelamento, que este se situava entre aqueles dois fachos luminosos. Momentos antes, e sem que os militares dessem pelo facto, já os elementos da população (na sua maioria miúdos e que pareciam estar avisados) se tinham ausentado à pressa daquela "sala de espectáculos" que não era à prova do cacimbo, para depois o Aquartelamento ser flagelado com alguma intensidade com disparos de morteiro 82mm e Canhão sem Recuo, cujas granadas caíam com alguma precisão no seu perímetro defensivo devido às coordenadas previamente anunciadas por aqueles objectos luminosos. Lembro-me que dos dois ataques (entre outros) mais intensos que Nangade sofreu enquanto a C.CAÇ. 3309 ali esteve estacionada, estavam a ser projectados nesses dias os filmes "D. Camilo na Rússia" com Fernandel (12 de Junho de 1971) e "O Príncipe Ladrão" com Tony Curtis e Piper Laurie (18 de Junho de 1971), e até parecia que a FRELIMO naqueles dias pretendia tomar de assalto o aquartelamento, dado os efectivos envolvidos naquelas duas operações, a intensidade e a duração do ataque que foram deveras perturbadores.
Ambas as projecções foram interrompidas no "melhor da fita", com os soldados a fugirem por todos os cantos e a refugiarem-se nos abrigos por entre laivos de patriotismo balofo:
- Cabrões dos turras pareçe que andam assanhados que nem os filmes nos deixam ver descansados (...)
Carlos Vardasca
05 de Março de 2008
Fotos: No Cine Nangade, na companhia do Soldado da C.CAÇ. 3309 Rangi Calá (de origem indiana).

Sem comentários: