segunda-feira, 10 de março de 2008

"... O murmúrio dos vários silêncios"


(...) Tinha escurecido, e tudo indicava que iria ser mais uma noite quente. Rodeados pela densa mata, os soldados aconchegavam-se no seu interior ou debaixo das viaturas enfileiradas na picada, e aí presenciavam os vários silêncios emitidos por um estranho desconforto, e pelo recorte das várias silhuetas desenhadas pelas lianas entrelaçadas por entre o vasto arvoredo. A lua emprestava agora alguma claridade, mas sentia-se o seu esforço em penetrar através dos pequenos círculos onde os soldados se atarefavam em abrir as pequenas latas de conserva, débil refeição que a ração de combate nos proporcionava.
Já a noite pairava sobre os dólmens onde se enroscavam "crianças exaustas que pareciam dormir um sono eterno" quando por entre os arbustos alguém se aproximou do local onde tentávamos dormir e perguntou, parecendo falar de dentro de uma concha do mar:
Epá! onde está o enfermeiro a dormir? - está ali uma gaja da população que veio na coluna e está com dores de parto: - só nos faltava mais esta.
Devido ao rebentamento de duas minas anti-carro ao quilómetro 15 entre Pundanhar e Palma, seguido de uma violenta emboscada que provocou duas baixas e três feridos graves entre as nossas tropas, a coluna de reabastecimento teve que interromper o seu percurso e pernoitar na mata, devido ao atraso da chegada dos helicópteros para efectuarem as respectivas evacuações para o hospital de Mueda. Aquela jovem negra fora aconselhada a não prosseguir na coluna e ficar no Aquartelamento de Pundanhar devido ao estado avançado da sua gravidez, tendo recusado, pois era sua intenção ter a criança junto dos seus pais na povoação de Palma.
Os vários silêncios da noite foram interrompidos pelo chorar interrupto daquela criança que acabava de nascer em condições precárias, mas sob a protecção dos soldados e o recorte meio escurecido das Berliets, que também descansavam extenuadas pelo matraquear das balas e pelo cheiro intenso a pólvora, que pareciam ainda vaguear por entre o capim e o cacimbo que penetrava nos camuflados impregnados de terra avermelhada.
A jovem parecia estar feliz, pois os seus olhos reflectiam um brilho intenso que inundava o seu rosto negro, que contrastava com o reflexo muito branco e muito límpido dos seus dentes.
Malta! - quem é que ainda tem água no cantil? - disse o enfermeiro que assistiu ao parto.
Num acto simbólico, fez despejar uma pouca quantidade de água sobre a testa do recém-nascido, ao mesmo tempo que murmurava de forma a que todos os presentes o ouvissem:
"Eu te baptizo, Zungo Berliet Tropa"
Foi assim desta forma um pouco insólita que foi dado nome àquela criança, por ter sido um Zungo (1) que assistiu ao seu parto; por ter nascido em cima de uma Berliet e por ter sido a Tropa a proporcionar aquele nascimento, apesar das condições muito rudimentares em que o mesmo ocorreu.
Apesar da satisfação do soldado enfermeiro por tudo correr sem problemas, este quando se aproximou de mim e antes de se aconchegar no recanto da mata onde iria tentar dormir, ainda desabafou muito baixinho:
Braz! - desculpa-me lá este desabafo: - deus que me perdoe mas se calhar até ajudei a nascer mais um turra que nos irá mais tarde chatear os cornos".
Antes de me enroscar no dólmen e de ter matado algumas formigas de cabeça grande, acastanhada, que já se tinham agarrado ao camuflado, ainda lhe disse:
-Fica tranquilo que quando ele tiver a idade de vir para a mata combater-nos, já nós não estamos cá e, de certeza, pelo caminho que as coisas estão a levar, esta puta de guerra já há muito tem acabado (...)

Carlos Vardasca
10 de Março de 2008

Foto: O Pinheiro e o "Alentejano" (este último falecido em combate no dia 05 de Julho de 1972) aproveitam uma pausa na operação para abrirem uma lata da ração de combate e sentirem o estômago mais aconchegado. Ao fundo ainda se pode ver o Azevedo, todos eles da Companhia de Caçadores 3309.
(1) Branco, em dialecto Macua.




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