quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

"Que em 2009 os abraços não tenham apenas a duração de um dia"

(...) Pois é! Eles sempre disseram que era uma questão de "inadaptação" (e fazendo uma pequena adaptação, aproveitando o mote do desenho que possivelmente terá outra interpretação que não a minha) que levou a que os pobres fossem ficando cada vez mais pobres, mas eles, os ricos, aproveitando-se dessa "inadaptação", fingindo ignorar as suas causas, foram ficando cada vez mais ricos, questionando-se (ingenuamente, como se não soubessem das suas origens) de onde teria vindo tanto dinheiro para os seus cofres.
Os pobres, "esses coitados inadaptados", que nunca tiveram outro remédio senão tentar gerir os seus magros salários "que se foram perdendo na profundidade dos seus bolsos e a prolongar a sua extrema pobreza" (embora o produto do seu trabalho fosse alimentando ao longo dos séculos outras vidas faustosas) foram no entanto construindo bastas vezes utopias de que um dia o mundo seria mais justo, que tudo finalmente iria mudar e que nada ficaria com dantes.
Aparentemente submissos, mas sempre prontos a explodir de revolta "como um vulcão que expele lava pela encosta da montanha", alimentando sempre a ideia de que dos seus protestos "algumas migalhas cairiam para debaixo da mesa do farto manjar", os pobres foram ao longo da história conquistando alguns dos direitos que aliviaram e melhoraram a sua própria condição humana e o direito à sua própria existência, direitos esses que agora vêem ser ameaçados por quem deles se serviu "para que também pudessem participar do farto manjar".
Sem perderem de vista quem os traiu e que aquelas "migalhas" eram apenas "sobras" mas que foram arrancadas com a luta de quem não tolerava a escravidão, os pobres, "esses coitados inadaptados", decerto que irão continuar a resistir neste mundo de injustiças e a combater arduamente para aliviar um pedaço da sua própria servidão, mesmo que "nunca lhes venham a distribuir os talheres apropriados para garantirem a sua própria sobrevivência", tomando sempre consciência de nada lhes será dado sem que resulte da sua própria emancipação.
Que 2009 desperte os ainda submissos e os traga para o seio desta imensa onda de protesto que grassa pelo mundo, onde a insubmissão rejeite de vez "as sobras do farto manjar" e continue a resistir contra "o actual mundo dos que podem" e o substitua por "um outro mundo dos que sabem".
"Que em 2009 os abraços não tenham apenas a duração de um dia"
São os votos de
Carlos Vardasca
31 de Dezembro de 2008
Desenho: in "Diário de Notícias" de 30 de Dezembro de 2008. Cravo&ferradura, da autoria do cartonista "Bandeira".

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

"Para cima das árvores não vou" (2)

O IAO[1] tinha iniciado no dia 21 de Novembro de 1970 indo decorrer até 12 de Dezembro do mesmo ano, e a Companhia de Caçadores 3309 de que eu fazia parte, já estava acampada na Serra da Olga nas proximidades de Chaves à cerca de cinco dias, debaixo de temperaturas negativas sem que o peso da geada fizesse ceder as frágeis tendas de lona que albergavam três soldados cada.
A intensidade do frio era de tal ordem que as sete mantas distribuídas não agasalhavam aqueles corpos franzinos, que se socorriam de pequenas fogueiras para dar mais algum aconchego ao seu corpo, que iluminavam toda a encosta rodeada por enormes rochedos, à semelhança das pequenas lanternas que iluminam os caminhos de pastoreio.
Todas as Companhias do Batalhão de Caçadores 3834 foram distribuídas por diferentes áreas geográficas e em acampamentos distintos, a fim de fazerem a sua preparação operacional, dado que estavam todas mobilizadas para fazerem parte das forças de intervenção no norte de Moçambique, mais concretamente na província de Cabo Delgado, junto à fronteira com a Tanzânia.
No dia seguinte, 26 de Novembro de 1970 e depois de vários exercícios efectuados com armas pesadas, simulando ataques de forças inimigas, já se aproximava a hora do almoço sem que as viaturas que era hábito levarem-nos as refeições confeccionadas no quartel do BC 10
[2] em Chaves, fossem observadas do alto do acampamento. Devido ao adiantado da hora e porque o almoço não havia meio de chegar, um grupo de soldados já um pouco revoltados com a situação, decidiu descer da montanha e deslocar-se a uma pequena aldeia próxima e aí adquirir alimentos. Compraram-se chouriços, pequenos pedaços de toucinho, pão, galinhas e outros géneros alimentícios que a amabilidade das populações nos fez trazer para dar mais condimento ao farnel e para serem confeccionadas no acampamento.
A causa do não aparecimento das viaturas (soube-se mais tarde, sem se comprovar a sua veracidade) deveu-se ao facto de terem sido “assaltadas” por dois pelotões da Companhia de Caçadores 3310 pertencente ao mesmo Batalhão da C.CAÇ. 3309, que estavam acampados em Bobadela, e que decidiram fazer uma emboscada às viaturas que transportavam as nossas refeições, numa medida de força que diziam fazer parte do treino operacional com vista à sua adaptação às condições de combate.
O capitão da Companhia Hélio Moreira estranhou o fraco movimento das suas tropas no acampamento e mandou tocar a reunir, verificando de facto que era evidente um grande número de ausências na formatura e nos quatro pelotões. Depois de se informar do ocorrido, o capitão, na companhia de alguns oficiais foi-se colocar mesmo junto do trilho que dava acesso à aldeia, aguardando aí a chegada dos soldados “desertores” que lhes ia ordenando, à medida que foram surgindo no final do trilho, que formassem no centro do acampamento.
Quando o Nabais viu o capitão no alto do morro disse desorientado:
— Epá Braz, estamos fodidos — fomos apanhados!
— Quem teria sido o cabrão do bufo?
Depois de a formatura estar completa com todos os soldados que tinham abandonado o acampamento, o capitão, denotando uma incontrolável irritação que lhe tingia a face de vermelho foi dizendo:
— Seus maricas! — Não podem passar um dia sem comer que tomam logo atitudes tão reprováveis que não ficam bem a qualquer soldado!
— É assim que se querem preparar para os momentos difíceis que vamos passar em Moçambique? -
Depois de despejar toda a sua indignação sobre a formatura e mudando inesperadamente de expressão, conclui com um sorriso que transbordava de cinismo:
— Então querem galinhas não é?
De súbito (e enquanto lançava um sorriso meio amarelo para os oficiais que o acompanhavam), ordenou que todos subissem para cima das árvores e cacarejassem em coro como as galinhas quando estão a pôr os ovos. Muito poucos subiram e foram logo alvo da chacota de quem assistia àquela humilhação, enquanto o capitão dizia indignado:
— Braz, do que é que está à espera? — Vamos lá a subir para cima da árvore — ordenou o capitão enchendo o peito de autoridade, continuando com a sua provocação que tentava suavizar com um ligeiro sorriso:
— Não pense que é mais do que os outros só porque tem esse aspecto intelectual, meio rebelde, mas mais parecido com um menino de coro.
Já bastante indignado com aquela situação que parecia ter a solidariedade dos outros soldados que ainda não tinham subido para as árvores eu disse-lhe:
— Olhe, pois agora não subo nem canto como as galinhas, pois não vou permitir que me humilhe dessa forma — acabando por concluir:
— Prefiro levar uma carecada do que servir de chacota geral para seu gozo pessoal.
Ao meu lado, o Nabais, o “Alentejano” [3], o “Almada” [4] e um grupo já menos numeroso de soldados, mostraram-se solidários e também disserem concordar com a minha opinião, ao que o capitão, profundamente indignado por não ver satisfeita a sua ordem, mandou chamar o barbeiro ordenando-lhe bastante irritado:
— Rape-me esses gajos todos à escovinha — eles vão se lembrar para o resto das suas vidas do frio que vão passar naqueles cornos.
Carlos Vardasca
26 de Novembro de 1970
Serra da Olga. Chaves.

[1] Instrução de Adaptação Operacional.
[2] Batalhão de Caçadores 10
[3] Alcunha do 1º Cabo Atirador, António José Pereira, NM 11934670 - na foto (que veio a falecer em combate num rebentamento de uma mina anti-carro na picada Nangade-Muidine em 05 de Julho de 1972).
[4] Alcunha do 1º Cabo Atirador, Pedro Manuel Gaspar Augusto. NM 13619570 - na foto (que veio a falecer em combate num ataque da FRELIMO ao Aquartelamento de Tartibo em 01 de Outubro de 1971).
in "Onde o sol castiga mais. Crónicas de Guerra 1970-1973" páginas 3 e 4. Carlos Vardasca. 2005

domingo, 21 de dezembro de 2008

Operação "OCTANA 19". 21 de Dezembro de 1971.

(...) Em 21 de Dezembro de 1971 forças da Companhia de Caçadores 2703 e do GEs 212 que seguiam para o Nhica do Rovuma, detectaram abatizes no local de coordenadas 4011.1050,5.
No mesmo dia 2 Grupos de Combate da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia iniciaram a coluna de reabastecimento "OCTANA 19", de Palma a Nangade e regresso; no dia seguinte os mesmos 2 Grupos de Combate seguiram de Pundanhar para Nangade tendo pernoitado no itinerário; chegou a Nangade no dia 23 e saiu no mesmo dia para Palma tendo passado por Pundanhar; aqui deixou algumas viaturas a fim de transportar para Palma o 1º Escalão da Companhia de Caçadores 2703 que vai ser rendida pela Companhia de Caçadores 3472. Ali chegou no mesmo dia. Asseguraram protecção do itinerário forças da Companhia de Caçadores 3309, Companhia de Caçadores 2703 e Companhia de Artilharia 2745. Em 23 de Dezembro de 1971, durante esta "OCTANA" uma viatura Berliet accionou uma mina anti-carro entre Pundanhar e Nangade, ficando parcialmente destruída. No mesmo local foi detectada e destruída uma mina anti-pessoal por forças da C.CAÇ 2703.
Forças da C.CAÇ. 3309 destruíram outra mina anti-carro em local de coordenadas 3951,2.1057,2. Ainda durante esta operação foi accionada uma armadilha que causou 2 feridos graves e 3 ligeiros à C.CAÇ. 2703. No mesmo local foi detectada e destruída 1 mina anti-pessoal.
Na região da Lagoa Namioca foram encontradas abatizes para ambos os lados daquela, num total de cerca de 2 quilómetros de extensão, além de uma profunda vala transversal à picada. No dia 23, durante a mesma coluna, uma viatura Berliet accionou uma mina anti-carro em região de coordenadas 3851,5.1054 ficando destruída. No mesmo dia, forças da C.ART. 2745 que se encontravam a montar segurança do itinerário, detectaram a passagem de 2 a 3 elementos calçados com botas, num trilho antigo de sul para norte em direcção à Tanzânia (...)

In: Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo sétimo fascículo (Dezembro de 1971) página 3. Arquivo Histórico Militar de Lisboa, 2007
Foto: Elementos da Companhia de Caçadores 3309 que asseguraram protecção à coluna de reabastecimento "OCTANA 19" num momento de descanso. Na foto podem, ver-se em primeiro plano o 1º Cabo Atirador NM 12237870, Franklim de Jesus Sobral (mais tarde graduado em Furriel) o Soldado Atirador NM 10759970, José Gomes Valoura entre outros.

Uma noite na aldeia

Já se previa um inverno rigoroso. O manto de neve que cobria todo o distrito de Chaves há muito que também branqueava os campos em redor da aldeia de Moure, o que era sempre motivo de preocupação para os seus habitantes.
Os pastos rareavam. As cabras que era hábito a Gracinda levar para o pastoreio já raramente saíam do estábulo, e o telhado coberto de neve já não fumegava pelos intervalos das placas de ardósia mas apenas pela velha chaminé, onde o odor daquela sopa gordurosa juntava à mesma mesa a frágil adolescência de Gracinda e os restos de saudade que consumiam a mãe, que ainda chorava a ausência do marido em parte incerta, e a angústia de quem mal tinha forma nem como gerir os parcos dinheiros que moldavam a sua pobreza.
Bastante agasalhada, acabada de chegar do forno comunitário da aldeia onde fora buscar o pão amassado pela Ana dos Currais, fascinada por tanta iluminação e depois de transpor o arvoredo que circundava a casa de quem, sendo médico em Lisboa apenas ali vinha ficar em épocas festivas, Gracinda abeirou-se de uma das janelas e ali ficou estupefacta, contemplando maravilhada a enorme árvore de natal e um amontoado de papeis de embrulho já rasgados que se espalhavam por toda a sala, depois de terem envolvido o que era agora o fascínio das crianças daquela numerosa e abastada família.
Já passava da meia noite e a Gracinda antes de regressar a casa ainda foi dar de comer ao gado, acariciar uma das cabras que estava prestes a ter cria e espalhar algum feno pelo chão do estábulo para o tornar ainda mais confortável para os animais, tendo tempo ainda de passar pela casa da vizinha Cordoeira, certificando-se se o lume da lareira estava apagado, aconchegar-lhe os cobertores ao corpo e fazer-lhe um pouco da companhia que à muito se viu privada desde que o marido, operário da construção civil, falecera de forma trágica num acidente de trabalho num dos bairros de Paris.
Sozinha com a mãe, no meio de quatro paredes iluminadas por uma candeia de azeite que projectava as suas sombras na rudez das pedras de granito, Gracinda olhava inerte para a lareira e para o caldeiro de onde fumegava o mesmo odor que há muito lhe dava o sustento.
Enquanto a mãe Florinda ainda esbracejava num alguidar para amassar o resto da massa dos cuscurões, Gracinda, de olhos abrilhantados pelo lume da lareira, lembrava a enorme árvore de natal da casa do médico que não lhe cabia dentro do casebre, imaginando-se criança e a brincar com os brinquedos que não vira mas que idealizava bonitos, a avaliar pela beleza dos papeis de embrulho que agora jaziam amarrotados num dos caixote do lixo.
Atenta que estava aos sons que viessem do outro lado das paredes da casa, ao menor sinal que lhe soou Gracinda correu apressada para o estábulo onde se iniciara o parto de mais um caprino, ajudando ao seu nascimento, aligeirando as dificuldades da velha cabra que soltava bramidos de dor.
Exausta, e depois de ter avisado a mãe que iria ficar no estábulo nessa noite para vigiar o animal que acabara de nascer, Gracinda, sentindo-se frágil mas inundada de felicidade, enroscou-se numa velha manta e aconchegou-se junto do pequeno cabrito de quem grande parte da noite não desviou o olhar, acariciando-o com a mesma ternura como se fora um brinquedo que nunca recebera, acabando por adormecer enquanto recordava todos momentos em que nunca tivera tempo para brincar.
No dia seguinte e de regresso ao trabalho do campo na companhia da mãe, Gracinda mais uma vez acabou por verificar que afinal tudo estava tal e qual como dantes, apesar do pároco da aldeia anunciar todos os anos que o mundo iria mudar “com o nascimento do menino”.


Carlos Vardasca
21 de Dezembro de 2008

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

"Estejas onde estiveres, Salvé Guimarães"

A propósito dos documentos recentemente editados e referidos no post anterior que se relacionam com a morte do Furriel Guimarães, recebi o seguinte texto de Filipe Manuel Cardão Pinto, ex-Furriel Miliciano NM 14172170 da Companhia de Caçadores 3309, mas destacado para o Aquartelamento de Nhica do Rovuma para comandar os GEs 212 de que fazia parte o malogrado Guimarães, e que passo a editar.
Carlos
(...) Aos que se têm pronunciado sobre o Guimarães, venho apenas fazer estas simples considerações:
Tenho-o presente na minha memória.
Sei como se registaram os acontecimentos que levaram ao seu desaparecimento.
Eu era o comandante em exercício do Grupo Especial 212.
Após a informação oficial à família do seu desaparecimento (nunca se referiu que o mesmo tinha morrido, onde, nem em que circunstâncias), fui a primeira pessoa a entrar em contacto com os que perderam o seu ente querido.
Em 1992 ou 1993, procurei de novo a família, e fiquei surpreendido por àquela data, esta, não ter ainda bem a certeza do que teria acontecido naquela fatídica data de 1972.
Apraz-me perguntar:
Onde estavam os documentos que agora estão a vir a lume?
Na posse de particulares?
Que papel têm aqui os altos responsáveis militares?
Não tiveram, através dos serviços de informação ou inteligência, possibilidade de proceder à contradição das afirmações produzidas nestes documentos?
A todos aqueles que queiram o conveniente esclarecimento e pretendam homenagear com VERDADE a sua memória, e que apenas ouviram uns zunzuns sobre este acontecimento, quero dizer que, tenho o relatório desta operação, o qual tornarei público, quando entender oportuno.
O Guimarães, independentemente de estar ou não de acordo com a forma como os acontecimentos se desenrolaram, merece o meu respeito, a minha amizade, a minha saudade.
Estejas onde estiveres, SALVÉ GUIMARÃES.
Filipe Pinto
18 de Dezembro de 2008

Foto 1: O Furriel Pinto no comando dos GEs 212 à saída do Aquartelamento do Nhica do Rovuma, para iniciar mais uma operação de patrulhamento nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia. 1971
Foto 2: O Furriel Pinto (comandante do GEs 212) assiste à chegada de uma coluna de reabastecimento ao Aquartelamento do Nhica do Rovuma. 1972


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A verdade sobre a morte em combate do Furriel Guimarães

Num livro recentemente editado Intitulado, "História do Batalhão de Caçadores 3868 e o fim da Guerra Colonial", são nele descritos alguns apontamentos referentes ao Furriel Guimarães e às circunstâncias do seu falecimento que não correspondem à realidade, se os confrontarmos com o relatório oficial elaborado pelo comandante do Grupo de Combate dos GEs 212 que se encontravam naquele dia a desencadear aquela operação. Em minha opinião, as imprecisões relatadas na referida obra resultaram não por culpa dos seus editores que não presenciaram os factos, limitando-se a descrever o que ouviram via rádio, cuja transmissão (tendo em conta a confusão que se gerou no teatro de guerra e nas próprias comunicações) muito provavelmente não reflectia com exactidão o que de facto estava a ocorrer naquele momento em que aquele militar foi abatido nas margens do rio Rovuma em 15 de Novembro de 1972.
Posteriormente (16 de Março de 1973), e pelo facto de ter surgido um jornal tanzaniano que após ter sido traduzido veio ainda introduzir mais algumas imprecisões ao que de facto ocorreu, dado que, numa nítida acção de propaganda distorce toda a verdade no seu texto que o ilustra com a foto do Furriel Guimarães já falecido, onde o seu corpo aparece junto de alguns oficiais do exército daquele país que fazia fronteira com Moçambique.
Em relação ao que é descrito na página 145 da referida obra (que não corresponde à verdade dos factos tendo em conta o relatório oficial da referida operação) quando se diz:
- "...Grande confusão nas comunicações com o Grupo de Combate dos GEs 212 comandado pelo Furriel Guimarães, em operação junto ao Rovuma, dado estarem debaixo de fogo. Um elemento do GR pediu a evacuação do Furriel Guimarães por este estar muito ferido, depois pediu apoio aéreo e logo a seguir disse que o viram passar para o outro lado da fronteira..."
Na realidade, e segundo o relatório da Operação "BAGA 6" elaborado logo após a conclusão da mesma pelo Furriel Pinto (da Companhia de Caçadores 3309 mas destacado para comandar os GEs 212 no Nhica do Rovuma) e testemunhado pelos soldados do seu Grupo de Combate (GEs 212) que viveram aqueles momentos dramáticos, o Furriel Guimarães foi logo abatido ainda no areal que se formara no meio do rio Rovuma sem sequer ter pisado a margem do lado da Tanzânia, embora já muito próximo da mesma, (1) sendo levado para a outra margem durante a noite, possivelmente pelos guardas fronteiriços que o abateram.
Quanto à tradução do texto do jornal tanzaniano em que o mesmo diz:
- "... o soldado português foi visto por volta das 7,30 horas da manhã, quando tentava matar uma criança que se encontrava a tirar água. Quando se disse ao soldado para parar não obedeceu, pelo que foi alvejado..."
O texto revela simplesmente e traduz um acto deliberado de propaganda de contra-informação das autoridades tanzanianas (o que se poderá considerar natural em tempo de guerra, pois as autoridades portuguesas também adulteravam por vezes as informações para exaltar feitos das nossas tropas e que na realidade não tinham acontecido) dado que nada do que é descrito corresponde à realidade, se confrontado com o texto original que relata os acontecimentos ocorridos naquela data e amplamente descritos no relatório da operação já citada e relatados por quem os viveu.
Espero que este esclarecimento resulte na clarificação dos factos, factos que até o próprio relatório efectuado pelo Estado Maior do Exército tentou adulterar, quando insinuou que o Furriel Guimarães tinha desertado para a Tanzânia negando que o mesmo tivesse sido morto em combate (ignorando o já citado relatório da "Operação BAGA 6") possivelmente a causa que levou aquele organismo a não incluir o nome daquele militar na lista dos combatentes falecidos em combate e inscritos no Mausoléu dos Combatentes em Belém, onde legitimamente pertencia estar, lado a lado com os restantes combatentes que faleceram naquele conflito Colonial da má memória para toda a juventude que nele participou.
Carlos Vardasca
17 de Dezembro de 2008

Fotos 1 e 2: Oficiais do exército da Tanzânia junto do corpo do Furriel Guimarães depois de ter sido abatido (15 de Novembro de 1972), e o mesmo militar antes de falecer em combate numa operação na picada entre os Aquartelamentos de Pundanhar e o Nhica do Rovuma. 1972
Foto 3: Texto traduzido de um jornal da Tanzânia onde se descreve (numa versão adulterada com fins propagandísticos) as circunstâncias da morte do Furriel Guimarães.
(1) É reconhecido pela cartografia da zona que os limites da fronteira no rio Rovuma entre a Tanzânia e Moçambique (na altura Portugal) eram muito irregulares, ao ponto de parte do território tanzaniano em determinadas zonas ser mais próximo do território moçambicano, o mesmo acontecendo com a delimitação da fronteira de Moçambique com a Tanzânia, o que por vezes se colocava a dúvida da real violação (ou não) do espaço fronteiriço de ambos os países.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

"O presente era incerto e o futuro tão ausente"

(...) Em 12 de Dezembro de 1971 dois Grupos de Combate da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia iniciaram a coluna de reabastecimento "OCTANA 18", de Palma a Nangade e regresso. Esta chegou a Pundanhar no mesmo dia, saindo para Nangade onde chegou em 13 de Dezembro de 1971; saiu no dia 14 para Palma onde chegou no mesmo dia. Ao longo do itinerário asseguraram protecção forças da Companhia de Caçadores 2703 e da Companhia de Caçadores 3309. As primeiras detectaram e destruíram em 13 de Dezembro de 1971, entre Pundanhar e Nangade uma mina anti-carro e outra anti-pessoal; as segundas detectaram e destruíram na mesma zona, em coordenadas 3952,2.1057,3 uma mina anti-carro reforçada com uma mina anti-pessoal e com latas de gasolina.
No mesmo dia, um grupo de guerrilheiros da FRELIMO não estimado, emboscou a coluna de reabastecimento em coordenadas 3957,9.1055,7 com um tiro de bazooka e granadas de mão, seguidos de tiros de armas automáticas, sem consequências.
Ainda em 13 de Dezembro de 1971, um grupo de guerrilheiros de cerca de 40 a 50 elementos, vindos da Tanzânia, flagelou o estacionamento da Companhia de Caçadores 3309 (NOVA TORRES) com cerca de 50 granadas de Morteiro de 82 mm e Canhão sem Recuo. Foram encontrados 15 invólucros de Canhão sem Recuo 10,6mm e vestígios de 4 Morteiros de 82mm.
Após o ataque, o IN regressou à Tanzânia. Apenas duas granadas caíram dentro do perímetro do Aquartelamento sem consequências. (1)

Foto 1: Aquartelamento de Nova Torres onde estava estacionada a C.CAÇ. 3309 vista do meio do rio Rovuma.
Fotos 2 e 3: Coluna de reabastecimento no momento que passava a temível lângua já próximo do Aquartelamento de Pundanhar e elementos da C.CAÇ. 3309 numa operação de picagem e detecção de minas na picada entre Pundanhar e Nangade.
(1) in Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Décimo sétimo fascículo, página 2 (Dezembro de 1971)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

"Num cenário de cartolina em plena Serra da Olga"

(...) O frio parecia passear-se por entre as tendas para que ninguém dissesse que ele não passou por ali. Gélido, meio seco e menos incomodativo do que o que lambe as terras junto à costa atlântica, não deixava no entanto de penetrar por entre os capotes cinzentos que pareciam ter sobrado da II Grande Guerra e toldar os movimentos daqueles jovens que, no cimo da Serra da Olga (nos arredores de Chaves) se treinavam num "cenário de cartolina" em nada comparado com o inferno para onde seriam enviados em breve.
O IAO (1) da Companhia de Caçadores 3309 que se iniciara em 21 de Novembro (assim como de todo o Batalhão de Caçadores 3834) terminava no dia 12 Dezembro de 1970, e em todos os que nele foram envolvidos já se denotava uma certa agressividade imposta pela instrução que lhes foi ministrada por uma Secção de elementos das Operações Especiais (Rangers), que foram simulando, por entre aquele arvoredo que se assemelhava às matas densas de África ou em terreno acidentado, vários ataques com granadas de morteiro que caíram muito próximo de nós e emboscadas cujas balas faziam levantar a terra à nossa frente, alguns deles (fieis defensores do regime colonial e com uma pose exacerbadamente militarista) com o objectivo de nos impressionar mas também para evidenciar e exibir o seu "pseudo espírito superior de senhores da guerra", como se tivessem a treinar algo que consideravam inferior (tropa normal ou macaca - vocabulário que exibiam até à exaustão) simples robôs, que depois de "formatados" estariam aptos para mais facilmente "obedecerem à voz do dono" num conflito que em nada nos dizia respeito, mas que de uma forma imposta serviu para interromper o futuro de milhares de jovens que se viram envolvidos durante os cerca de 14 anos no conflito Colonial, que inundou o nosso país num manto negro a par dos naufrágios que enlutavam as vilas piscatórias de norte a sul.
Irreconhecíveis, exaustos, mais parecendo "prisioneiros de guerra que abandonam um campo de concentração", lá nos concederam alguns dias de Licença das Normas de 18 a 28 de Dezembro, acrescidos de cinco dias de licença à BIFE até 03 de Janeiro de 1971, "besuntados" (os soldados, claro) com uma nota de 500 escudos que se perdia na profundidade dos nossos bolsos como se fora uma "reles gorjeta" de compensação, por a partir daquele momento já estarmos ao serviço da pátria na "defesa de um Império que se viria a desmoronar sem que nenhum de nós ali tivesse algum pedaço", mas que dele muitas vezes iríamos espreitar a morte, que na maioria dos casos caminharia ao nosso lado, percorrendo os mesmos trajectos pejados de incertezas sem que para tal tivesse sido convidada.
Após estas licenças já com sabor a despedida para uma viagem de regresso incerto, todo o pessoal do Batalhão de Caçadores 3834 apresentou-se em Viana do Castelo no Batalhão de Caçadores 9, onde continuou em instrução na 2ª parte do IAO até à véspera do embarque em 23 de Janeiro de 1971(...)

Carlos Vardasca
11 de Dezembro de 2008
Foto 1: Quartel do então Batalhão de Caçadores 10 em Chaves (actual Regimento de infantaria 19) onde a Companhia de Caçadores 3309 (integrada no Batalhão de Caçadores 3834) fez a 1ª parte do IAO antes de embarcar para Moçambique.
Foto 2: Elementos da C.CAÇ. 3309 em plena Serra da Olga (arredores de Chaves) durante a realização da 1ª parte do IAO.
(1) IAO - Instrução de Adaptação Operacional.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Ex-combatente em greve de fome por mais direitos

Protesto. Presidente da ADFA/Viseu exige assistência na doença

O presidente da delegação de Viseu da Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA) iniciou uma greve de fome para exigir assistência na doença aos ex-combatentes do ultramar. Só no distrito de Viseu são 800 militares que combateram em África, Timor e Índia e que viram os direitos reduzidos. A situação agravou-se com o encerramento do Hospital Militar de Coimbra, o que obriga os deficientes a recorrerem às unidades de saúde militar de Lisboa e Porto.
João Gonçalves anda "há anos a lutar pelos direitos dos militares que serviram a pátria e que hoje têm uma mão cheia de nada", desabafa.
O ex-combatente está "indignado com as últimas leis aprovadas pelo governo que nos retirou os poucos direitos que tínhamos". O militar iniciou ontem uma greve de fome e promete ir até "às últimas consequências. Se for preciso morrer, que seja, mas não aguento mais tanto sofrimento. Todos os dias vêm aqui ex-militares pedir ajuda que não podemos dar".
As recentes alterações introduzidas na lei que regulamenta a assistência na saúde aos militares das Forças Armadas fizeram com que os militares deixem de ser assistidos nos hospitais civis.
"Antes, os ex-combatentes e antigos militares podiam ir ao hospital da sua área de residência porque eram abrangidos pela assistência de saúde a que os militares têm direito. Neste momento, só temos direito a essa assistência nos hospitais militares do Porto e Lisboa porque entretanto encerrou o de Coimbra".
Outra reivindicação prende-se com a actualização das pensões dos deficientes das Forças Armadas que "deixou de ser igual ao salário mínimo para passar a ser idêntico ao indexante de apoio social". Na prática "a pensão baixou-nos de 426 para 407 euros" revela o presidente.
João Gonçalves promete "ficar na delegação de Viseu da ADFA até morrer ou até que nos encontrem uma solução justa para o nosso problema", afirma.
in "Diário de Notícias" 29 de Novembro de 2008. Amadeu Araújo. Viseu
Não sei o que irá resultar desta forma de luta encetada por este nosso companheiro ao qual lhe presto a minha solidariedade, mas de uma coisa tenho já a certeza.
A lentidão e o ignorar sistemático na resolução do apoio médico aos ex-combatentes da Guerra Colonial e outros militares (assim como à maioria da população que se viu privada dos seus centros médicos) contrasta com a rapidez com que o actual governo se prestou a auxiliar os grandes banqueiros pelos seus erros de gestão (dos quais deveriam ser eles os responsabilizados e arcar com as consequências), sempre à custa dos dinheiros dos contribuintes (que ao longo de muitos anos têm sido espoliados pela totalidade das instituições bancárias) verbas que deveriam ser investidas no apoio à assistência médica e social, na educação, no emprego, na ajuda aos mais necessitados aumentando o ordenado mínimo nacional e as pensões de reforma que, por exíguos que são, "continuam a perder-se na profundidade dos bolsos" de quem deles faz o seu magro sustento e sobrevive diariamente com dificuldades convivendo com a miséria, perante a ostentação e o novo riquismo que os governantes se apressaram a "salvar do naufrágio".
Carlos Vardasca
05 de Dezembro de 2008

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

"Não nos roubem um pedaço de nós"

(...) Dos outros irmãos já nenhum restava na aldeia, levados a salto para terras de França, ora fugidos à guerra ou simplesmente para tentarem afugentar o espectro da fome que diariamente lhes ia corroendo o estômago cada vez mais vazio.
Com os pais idosos e deitando um último olhar às terras que iriam ficar por remexer, o "Zé das Cabras", o último filho dos cinco todos já distantes, inesperadamente apresentou-se no quartel por ter sido mobilizado para a guerra de África, perante a aflição de quem se via agora sem mais dois braços para esgravatar naquilo que era o seu sustento, terras até agora lavradas mas que decerto se deixariam vencer pelas ervas daninhas enquanto perdurasse a ausência.
Levados a Lisboa a muito custo para se despedirem do filho, aconchegados num farnel amontoado numa alcofa que seria distribuído por cada familiar; pequenos nacos de broa despedaçados por mãos grossas moldadas pela enxada, os pais do "Zé das Cabras" não se continham por sentirem "que lhes estavam a roubar um pedaço de si sem jeito nem prosa".
No Cais de Alcântara o descontentamento parecia não ser geral, porque uma outra parte se percebia estar a ser contida por presenças estranhas, que misturadas no meio da multidão forçavam àquele silêncio que parecia querer explodir a todo o momento.
Os altifalantes da Gare Marítima entoavam o hino interpretado em jeito triunfal pelo Coro da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT):

"...Angola é nossa gritarei
É carne é sangue da nossa grei!
Sem hesitar, p'ra defender
É pelejar até morrer...

enquanto que ao fundo do cais, por entre expressivos desejos de um regresso que se previa incerto, alguém mais inconformado "explodia como se fora um vulcão, expelindo toda a sua lava transformada em revolta", por ver partir alguém que saíra das suas entranhas e até ali lhe garantira o sustento:
- "filhos da puta ... vão para lá vocês!
- "o meu filho faz-me mais falta do que para guardar os vossos cafezais!
Depois de as tropas terem desfilado junto da tribuna onde se perfilaram os oficiais generais, lado a lado com as burguesas do Movimento Nacional Feminino (MNF) que exibiam os seus casacos da astracã na companhia dos assíduos representantes da igreja católica (que sempre abençoaram aquela guerra "contra o inimigo vindo de Leste"), lá em cima no terraço, por entre laivos de patriotismo misturados com expressões de revolta, agitavam-se imensos lenços brancos que acenavam de raiva (depois dos soldados terem embarcado) para todos os que entretanto agitavam as suas boinas e se penduraram nos mastros e nas amuradas do NIASSA, que aos poucos se afastava do cais e fazia soar cinco apitos estridentes, cujo roncar fazia lembrar a distância entre aquela partida forçada e o aconchego familiar cada vez mais ausente, enquanto que a PIDE, aproveitando-se da angústia, do lamento e do desespero, ia fazendo as primeiras prisões para tentar silenciar os protestos (...) (1)

Carlos Vardasca
04 de Dezembro de 2008

Foto 1: Soldados da Companhia de Caçadores 3309 no dia do seu embarque para Moçambique a bordo do navio NIASSA em 24 de Janeiro de 1971.
Foto 2: Familiares despedem-se dos soldados enviados para a guerra Colonial no dia do embarque na Gare Marítima de Alcântara. Lisboa 1971
(1) in "fardados da lama". Carlos Vardasca 2008.