sábado, 25 de abril de 2009

E o Abril que tardava

(...) Enquanto a Gracinda continuava a dar forma e expressão aos seus lamentos, a amiga não teve dificuldade em abrir a carta que parecia vir mal colada, o que motivou a desconfiança de ambas sobre se a mesma já tivesse sido aberta antes.
- Como vê Gracinda; - quase que não fiz nenhum esforço para abrir a carta - até dá a impressão que alguém já a abriu e muito desajeitadamente tornou a colá-la - continuando:
- Cada vez dou mais razão ao meu marido, quando ele diz que a PIDE de quando em vez abre as cartas dos soldados para ver se encontra nelas alguns desabafos a desancar no regime, ou contra a Guerra Colonial:
- Já têm apreendido muita correspondência de soldados e alguns têm sido presos ou enviados para zonas de combate mais arriscadas, e muitos dos seus familiares têm sido incomodados; são uns sabujos - desabafou a D. Maria enquanto abria a carta do filho da Gracinda (...)
in "Fardados de Lama" página 243. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 2008
(...) Depois de regressar ao Aquartelamento de Nangade, vindo do Hospital de Mueda onde esteve hospitalizado durante um mês por ter sido ferido numa emboscada, é que Braz tentou colocar a escrita em dia, sem nunca mencionar o ocorrido aos seus familiares; momentos dramáticos que há muito não via tão próximos desde o incêndio da Fragata D. Fernando II e Glória e das outras várias emboscadas que sofrera na mata, e onde igualmente viu, assim como todos os seus camaradas de armas, posta em risco a sua própria sobrevivência.
A carta era extensa e, ao contrário das anteriores e dos aerogramas que Braz escrevia e que se limitavam a exprimir considerações de ordem familiar, desta vez, ultrapassando aquilo que sabia ser um desafio aos sensores do regime que exerciam um controlo apertado à correspondência vinda das colónias; especialmente dos militares que se encontravam em zonas de combate, ela fazia uma breve incursão pelos limites da frágil fronteira entre aquilo que sabia ser a verdade que tinha que ser contada e a que o regime permitia que se contasse, fazendo referência à sua opinião sobre o conflito colonial e às condições militares em que o exército se defrontava no terreno (...)
in "Fardados de Lama", página 245. Carlos Vardasca. Alhos Vedros 2008.
(...) Tremendamente ruidosa, a manifestação descera até à baixa de Lisboa inundando o Largo do Rossio, com uma expressiva indignação contra a Guerra Colonial.
Tinham passado quatorze dias do mês de Agosto de 1974, e aquela manifestação tinha um claro objectivo de, no seguimento da manifestação então ocorrida no início de Maio e de boicote ao embarque de tropas para as colónias, dar mais expressividade ao descontentamento popular e desencadear um violento protesto anti-colonial, pressionando as autoridades saídas do golpe de 25 de Abril de 1974 que pareciam ainda um pouco hesitantes e pouco interessadas em se desfazerem daquele conflito, parecendo querer ainda retirar dividendos políticos e económicos, aproveitando-se da instabilidade que crescia naqueles territórios africanos (especialmente em Angola) entre os diversos movimentos de libertação (...)
in "Fardados de Lama", página 299. Carlos Vardasca. Alhos Vedros 2008.
Foto 1: Carlos Vardasca (Braz) escreve à família junto a um dos vários abrigos existentes no Aquartelamento de Nangade. Norte de Moçambique, 1971.
Foto 2: Elementos da Companhia de Caçadores 3309 numa patrulha na picada entre Muidine e Pundanhar. Norte de Moçambique, 1972.
Foto 3: Quando em 25 de Abril de 1974 as Forças Armadas entraram na sede da PIDE/DGS na Rua António Maria Cardoso, e as fotos dos algozes do regime foram retiradas das paredes. Foto de Alfredo Cunha.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

"Mais longe da guerra, mas que cagasso..."

Tínhamos chegado ao Aquartelamento de Balama à cerca de três dias vindos de Nangade, e ainda não tínhamos ido às “meninas”.
Então, para quebrar o nosso jejum de quase dois anos a que nos obrigou o isolamento nas margens do rio Rovuma, decidimos ir ao aldeamento, pois disseram-nos que haviam umas mulheres dos Milicias locais, que na ausência destes na mata e para arranjarem uns trocos para poderem comprar alimentos e novas capulanas(1), iam para a cama com a malta. Eu e o Dias, depois de entrarmos no aldeamento e numa escuridão imensa, lá encontrámos duas pretas que acederam ao nosso pedido e nos pareceram jeitosas (mesmo que não o fossem isso também não importava) e lá nos embrenhámos por entre estranhos e estreitos corredores separados por paliçadas de cana de bambu, e fomos com elas, cada um para a sua palhota.
Depois do “saciado o apetite” e ao sairmos das palhotas já noite a dentro, vimo-nos cercados por cinco Milicias (dois deles eram maridos das mulheres com quem tínhamos ido) que nos questionaram em tom ameaçador o que é que tínhamos ido fazer dentro daquelas palhotas enquanto caminhavam na nossa direcção.
Como eles se aproximavam cada vez mais de nós e prevendo que aquilo ainda iria dar conflito, tanto eu como o Dias tirámos dos bolsos cada um a sua granada (que nos acompanhava sempre quando íamos para locais duvidosos) retirámos a cavilha mas mantendo o punho apertado, enquanto encenávamos que as íamos lançar na sua direcção dizendo em tom de ameaça:
— “… Nós podemo-nos foder mas vocês também ides com o caralho…”
O que é certo que perante a nossa determinação, o grupo de Milicias afastou-se deixando-nos retomar o caminho do Aquartelamento.
Lembro-me tão bem desse episódio como se fosse hoje.
Naquela noite apanhámos um cagasso do caraças mas chegámos ao quartel em bem "não tendo ganho para o susto".

Eugénio de Sousa Fernandes
(Fafe)
ex-Soldado Apontador de Metralhadora NM 11119370 da Companhia de Caçadores 3309
S. Martinho de Silvares.
Fafe, 11 de Setembro de 2006
Foto: Elementos do 4º Pelotão da Companhia de Caçadores 3309 posam para a foto, depois de recentemente terem chegado do Aquartelamento de Tartibo. Nangade 1972.
O "Fafe" é o segundo (em pé) a contar da esquerda, e em destaque a sua foto actual.
(1) Capulana (origem Tsonga) é o nome que se dá em Moçambique a um pano colorido que, tradicionalmente é usado pelas mulheres para cingir o corpo, fazendo as vezes de saia, podendo ainda cobrir o tronco e a cabeça.

in, "do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas" página 285, Carlos Vardasca 2009.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Os "ABORÍGENES" do Tartibo

Antes de a Companhia de Caçadores 3309 ocupar o Aquartelamento de Nova Torres, quem lá estava era a Companhia de Artilharia 2745 que, no âmbito da Operação Novo Rumo ocupou aquela área, muito próximo de uma base da FRELIMO entretanto abandonada e que se denominava Cantina Manica e Sofala, importante posto fronteiriço de infiltração dos guerrilheiros na zona de Cabo Delgado (coordenadas: 39º 51',5 Leste - 10º 52' Sul) e a quem a C.CAÇ 3309 foi render em 1 de Março de 1971.
Os momentos ali vividos foram deveras dramáticos tanto para a C.ART. 2745 assim como para a C.CAÇ. 3309, tendo em conta os testemunhos aqui relatados pelo ex-Capitão Jorge Duque daquela Companhia de Artilharia e retirados de um extenso documento que fazem parte das suas memórias, algumas delas vividas em conjunto com a chegada da C.CAÇ. 3309 àquele Aquartelamento.

" (...) O rio Rovuma subiu mais na noite de 10 de Janeiro de 1971, após a visita do Coronel Dinis, segundo Comandante do Sub-Sector de Mueda, na qual foi dada ordem peremptória de não abandonar aquele local.
O Aquartelamento ficou completamente submerso durante quatro meses; A C.ART. 2745 teve de se afastar uma centena de metros do leito normal do rio para evitar as derrocadas provocadas pela torrente; atarefou-se a colocar o material mais leve sobre as árvores; estabeleceu um novo posto de comando com o rádio e antenas sobre uma delas. A profundidade mínima na área do quartel, que apesar do pequeno ajustamento do dispositivo continuava localizado na proximidade das margens do rio era superior a 1,50 metros; na maioria dos locais não havia pé; a corrente era fortíssima e ruidosa; viam-se grandes árvores com animais sobre elas (aves, macacos etc) a serem arrastadas na corrente; o local de terra firme mais próximo de nós situava-se a mais de 7 quilómetros, na margem sul do rio Metumbué que, com a cheia, se unira ao Rovuma.
Apesar disso a C.ART. 2745 manteve sempre ligação com o Comando de Sub-Sector localizado em Nangade. O posto de Comando e o centro de comunicações continuou sempre operacional. Os abastecimentos da cantina foram distribuídos gratuitamente e equitativamente a todos os militares. Não houve acidentes pessoais por milagre; revelou-se de grande utilidade o facto de, nos meses precedentes, todos os militares da Companhia haverem aprendido a nadar nos períodos do banho no rio Rovuma.
Os militares organizados em equipas tácticas de 5 elementos passaram a viver em cima das árvores; esses árvores foram seleccionadas especificamente para o efeito pelo comandante de companhia, de acordo com critérios tácticos, de conforto e de segurança; algumas das árvores não resistiram à torrente e foram arrastadas pelas águas, mas isso não aconteceu com nenhuma das que estavam ocupadas pelos militares; cada militar recebeu uma dotação reforçada de munições, medicamentos e outros abastecimentos de emergência; as armas pesadas e equipamentos colectivos foram distribuídos pelas equipas das árvores; a reserva de abastecimentos (munições, medicamentos e rações de combate) foi metida nos 4 botes de borracha disponíveis; a ligação entre os elementos da Companhia fazia-se a nado sobre colchões de borracha, tal como na praia; as viaturas foram amarradas a coqueiros para não serem arrastadas pela torrente; apesar disso muitos artigos foram arrastados pelas águas; por exemplo os bidões de combustível apareceram meses depois nas praias da zona de Palma, após um percurso de quase duas centenas de quilómetros.
Também houve alguns sustos com crocodilos, que, felizmente apenas queriam sobreviver como nós.
Neste período a Companhia alimentou-se a rações de combate e a pacotes de leite que eram lançados de helicóptero para a água, obrigando os militares a autênticas pescarias dos abastecimentos que ficavam a flutuar e se iam deslocando na corrente.
Dormia-se em cobertores presos aos ramos das árvores com arames.
Entretanto parte de um Grupo de Combate da C.ART. 2745 estava destacado em Nangade pois na altura das cheias estava em missão de escolta na estrada Nangade-Palma.
Imagine-se o espectáculo que seria quem passasse por perto de avião ou helicóptero na savana e deparar-se com um conjunto de árvores com cerca de 100 homens instalados nos ramos, quais frutos exóticos ou aborígenes frutívoros (...)
Jorge Fernando Duque
Coronel de Artilharia
Comandante do CIAAC-Cascais
Julho de 2007

In "A Companhia de Artilharia 2745 em Moçambique", páginas 10 e 11, Julho de 2007 de Coronel Jorge Fernando Duque, actual Comandante do CIAAC-Cascais, ex-Capitão de Artilharia NM 50530311 da Companhia de Artilharia 2745, em missão em Moçambique de 23 de Julho de 1970 a 08 de Setembro de 1972.
Foto1: O Capitão Jorge Duque (de pé, o terceiro a contar da esquerda) com outros oficiais de C.ART. 2745 na companhia de jornalistas no dia da chegada daquela Companhia a Nova Torres. Moçambique, 05 de Setembro de 1970. (em destaque foto actual do ex-capitão Duque)
Fotos 2 e 3: Retirada da Companhia de Artilharia 2745 do Aquartelamento de Nova Torres devido às cheias resultantes da junção das águas dos rios Metumbué e Rovuma. Moçambique, 1971.
Foto 4: Aspecto do Aquartelamento de Nova Torres parcialmente destruído e totalmente alagado. Moçambique, 1971.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

"Houve troca nos temperos"

“…A outra história toda a gente conhece, principalmente o “Serrinha”(1) por ter sido ele, segundo ouvi, o principal actor.
Era mais ou menos assim: Em data que também não recordo, andava toda a gente na Companhia com um enorme desejo de comer batatas com bacalhau à maneira, mas havia grande dificuldade em arranjar batatas.
Depois de porfiadas diligências consegui arranjar batatas, graças aos esforços de um piloto chamado Quental que as entregou na Delegação da Manutenção Militar em Porto Amélia e que depois vieram para Palma e daí para o Aquartelamento de Tartibo, creio que de avião ou helicóptero, já não me lembro bem disto.
Um belo dia fez-se uma coluna de reabastecimento e aproveitámos, a par de outras coisas, trazer um bidão de azeite por causa do tal “bacalhau à maneira”.
Quando a coluna chegou ao rio Metumbué estava a anoitecer e houve alguém que teve a ideia peregrina de que se não fosse possível descarregar tudo ao menos que se levasse o bidão do azeite para o aquartelamento para temperar à maneira as batatas com bacalhau.
Com enorme esforço lá levaram o bidão aos robulões, durante a noite desde a margem do rio Metumbué até ao aquartelamento que ficava a pelo menos 2 bons quilómetros.
Quando chegaram, depois de tanto esforço verificou-se que afinal se enganaram: - o bidão era de vinho em vez do azeite, porra!... (2)


Hélio Augusto Moreira
ex- Capitão Miliciano NM 36048760 da Companhia de Caçadores 3309
Linhares, 06 de Janeiro de 2006

(1) 1º Cabo Atirador NM 13382970, António Natálio Sequeira Serrinha da Companhia de Caçadores 3309.
Foto 1: O Capitão Hélio Augusto Moreira (em baixo) durante um operação de reconhecimento próximo do rio Metumbué, onde o Grupo de Combate envolvido matou uma enorme cobra que foi logo esfolada e limpa no local. Na foto podem ver-se ainda (em pé da esquerda para a direita): O "Cartaxo", Alferes Martins, Furriel Gonçalves e "Pragal" (estes dois últimos já falecidos), Rodrigues e outros Soldados naturais de Moçambique incorporados na Companhia de Caçadores 3309 a quando da sua deslocação para Cabo Delgado.

Foto 2: O Capitão Hélio Augusto Moreira na companhia do Alferes Mendes (Atirador) e dos Furriéis Felisberto Costa (Vague Mestre) e José Maria da Silva (Enfermeiro) da Companhia de Caçadores 3309, durante um breve intervalo para o almoço no Aquartelamento de Nova Torres. Em destaque uma foto actual do ex-Capitão Hélio Augusto Moreira.

(2) in "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas", página 200. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2009.