domingo, 28 de setembro de 2008

"Porra! logo me calhou um Mouro na equipa"


(...) Tudo voltara à normalidade, e o desafio de futebol entre a C.CAÇ. 3309 e a CCS do B.ART. 2918 estava prestes a começar, apesar do violento ataque que a FRELIMO desencadeara durante a noite ao Aquartelamento de Nangade.
Do planalto em frente viam-se perfeitamente os relâmpagos das saídas dos morteiros 82mm e do canhão sem-recuo utilizados no ataque, que com alguma violência faziam cair algumas granadas dentro do Aquartelamento mas sem consequências a registar, para além dos estilhaços de uma das granadas de morteiro 82mm que rebentou no centro do Aquartelamento e ficaram cravados nas paredes de uma das casernas. O ataque teve a duração de cerca de vinte minutos, tendo terminado quando o fogo serrado das nossas anti-aéreas e dos Obus 14 passaram a "pente fino" a encosta do planalto de onde se dirigia o ataque dos guerilheiros da FRELIMO.
Naquele dia o jogo de futebol que fora combinado entre a Companhia de Caçadores 3309 e a CCS do Batalhão de Artilharia 2918 realizou-se há hora combinada, apesar dos vários comentários ao ataque da noite que fez com que a maioria de nós não tivesse pregado olho com receio de uma nova ofensiva da FRELIMO, comentários que logo foram substituídos pelo delinear da estratégia e da táctica para o jogo, mas também pela inútil, incompreensível e desnecessária rivalidade saloia entre o norte e o sul quando se tratou de escolher a equipa da C.CAÇ. 3309.
Modéstia à parte e não sendo dos mais habilidosos, sempre tive algum jeito para manusear o esférico, sendo sempre um dos escolhidos (já em criança para as equipas do colégio e lá da rua quando ia de férias a Santarém, mas também ali no norte de Moçambique) para fazer parte da equipa da minha Companhia, embora surgisse sempre algum "desagrado" que vinha da parte de alguém que vivia muito para além das "terras do xisto":
- "Porra! logo me calhou um Mouro na equipa" .
É curioso que já naquela altura e tão longe das nossas terras de origem já se fazia sentir esta rivalidade tão provinciana e inexplicável num país tão pequeno, que se manifestava não só no futebol mas muito para além disso, desde as coisas mais mesquinhas, o que evidenciava algum atraso cultural que ao regime de então também não convinha resolver porque dele também dependia a sua sobrevivência.
O jogo lá se realizou, tendo a C.CAÇ. 3309 batido o B.ART. 2918 por 2-1.
No final do jogo e durante o petisco que depois se realizou entre as duas equipas, alguém me disse com alguma dose de ironia, exibindo (talvez inconscientemente) o seu bairrismo tacanho e exacerbado:
- "Epá Braz! parabéns pelos 2 golos, só tenho pena é de pertenceres aos Mouros lá de Lisboa" (...)

Carlos Vardasca
28 de Setembro de 2008
Foto 1: Antes do jogo decidi ficar com uma recordação daquele dia.
Foto 2: Equipa da Companhia de Caçadores 3309 que defrontou a da CCS do Batalhão de Artilharia 2918 no Aquartelamento de Nangade. Setembro de 1971.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

"Fugimos de um para nos atolarmos num outro inferno"






(...) Os homens estavam exaustos. Um grande número de soldados encontravam-se já evacuados no hospital de Mueda ou em Nampula devido ao paludismo, desidratação e diarreia ou outras complicações que os faziam urinar sangue, em resultado das condições desumanas em que foram obrigados a viver durante a época das chuvas e as sucessivas inundações de que foi alvo o Aquartelamento de Nova Torres. Era insustentável continuar a ocupar aquele Aquartelamento apesar da insistência dos altos comandos militares, que argumentavam ser aquela zona um local de infiltração dos guerrilheiros da FRELIMO em Moçambique e que por esse facto não poderia ser abandonada. Sem correio e sem pão uma vez que os sacos atirados do helicóptero ou da DO caíam na maioria das vezes no lodo ou na zona inundada, alimentados a ração de combate para além dos limites considerados normais em tempo de combate, há cerca de duas semanas que as tropas estacionadas em Nova Torres viviam em cima das árvores, fazendo aumentar o tom dos protestos que reivindicavam uma mudança de local e a construção de novo Aquartelamento numa zona mais alta onde estariam mais resguardadas das inundações das águas dos rios Metumbué e do Rovuma.
Depois de muita insistência e de algum mal estar entre as tropas, a Companhia de Caçadores 3309 lá foi autorizada a iniciar a sua retirada de Nova Torres e a desencadear a construção do novo Aquartelamento numa pequena elevação a que se denominou Tartibo.
Foi a 25 de Setembro de 1971 que se iniciou essa retirada e a construção do novo Aquartelamento de Tartibo que ficou concluído a 30 do mesmo mês, no mesmo local onde outrora fora uma pequena base da FRELIMO conquistada pela C.CAÇ. 3309 em 03 de Setembro, quando no âmbito de uma operação que se propunha procurar uma nova localização para o Aquartelamento deparou com aquele aglomerado de palhotas escondidas pela copa das árvores e pelo intenso capim, tendo havido confrontos de onde resultou a morte de cinco guerrilheiros e a captura de duas Kalashnikov e vários documentos com alguma importância.
Em Tartibo a C.CAÇ 3309 iniciava uma nova fase da sua permanência no norte de Moçambique, mais concretamente em Cabo Delgado onde as dificuldades se foram agravando, dado que o novo Aquartelamento ficava mais exposto aos ataques da FRELIMO como se veio a verificar enquanto a C.CAÇ. 3309 ali permaneceu.
Não resistindo ao desespero num dos ataques da FRELIMO a Tartibo, houve alguém que desabafou no meio do tiroteio:
- "Porra! fugimos de um para nos atolarmos num noutro inferno" (...)

Carlos Vardasca
25 de Setembro de 2008
Foto 1: Aspecto do Aquartelamento de Nova Torres após uma das várias inundações de que foi alvo. Na foto pode ser-se o 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem NM 05802970, António da Silva Azevedo da C.CAÇ. 3309.
Foto 2: Momento da retirada da C.CAÇ. 3309 de Nova Torres em 25 de Setembro de 1971.
Foto 3: Fase da construção do Aquartelamento de Tartibo com o apoio da Companhia de Engenharia 2736 destacada em Nangade.
Foto 4: Momento da chegada da C.CAÇ. 3309 ao Aquartelamento de Tartibo em 01 de Outubro de 1971, vendo-se em primeiro plano o Alferes Miliciano NM 17548968, Manuel António Filipe Gonçalves da C.CAÇ. 3309.
Fotos 5 e 6: Aspecto final do Aquartelamento de Tartibo após a sua construção, o que evidencia o total isolamento a que a C.CAÇ. 3309 ficou sujeita enquanto ali permaneceu até à sua rendição.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

No dia em que nasceu "Zungo Berliet Tropa"


(...) A coluna de reabastecimento tinha saído de Nangade no dia 20 de Setembro de 1971, tendo chegado a Pundanhar no mesmo dia mas já ao entardecer, devido a uma intensa emboscada de que foi alvo na zona da "Lângua" por parte dos guerrilheiros da FRELIMO e à detecção durante o percurso de várias minas anti-carro que atrasaram a sua chegada. Nessa coluna viajavam também alguns elementos da população dos aldeamentos de Nangade e, entre eles, uma rapariga muito jovem que estava no final da gravidez, sendo seu desejo ir ter o bebé a Palma para onde a coluna de reabastecimento se dirigia. Foi aconselhada a ficar em Pundanhar para aí se proceder ao parto que parecia estar iminente, ao que ela recusou pois pretendia que o bebé nascesse em Palma junto dos seus familiares como era tradição da sua etnia.
No dia seguinte, 21 de Setembro, a coluna saiu de Pundanhar sendo o seu andamento mais rápido durante alguns quilómetros, dado que saíra mais cedo um pelotão da Companhia de Caçadores 2703 ali estacionada que fizera a picagem e detecção das minas até ao quilómetro 15, na direcção do Aquartelamento de Palma.
Como a partir desse local o andamento das viaturas fosse mais lento devido à picagem do terreno, e porque a coluna sofrera nova emboscada e um rebentamento de uma mina anti-carro que danificou a Berliet, causando um ferido grave levando algum tempo a aguardar a chegada do helicóptero para a evacuação do ferido, a coluna, devido ao aproximar do cair da noite teve necessidade por questões de segurança não seguir para Palma e pernoitar na mata.
A jovem nativa à muito que começara a ter muitas dores e o parto estava por momentos. O enfermeiro fora chamado de urgência junto da viatura onde a jovem se encontrava, tendo o parto acontecido mesmo ali em cima de uma Berliet, embora as condições não fossem as mais adequadas. Lembro-me tão bem desta história, porque a mesma aconteceu na noite de 21 de Setembro de 1971, precisamente no dia em que fiz 22 anos de idade.
O mais engraçado deste acontecimento insólito foi que, em jeito de homenagem àquele nascimento e nas condições em que o mesmo se procedeu, o enfermeiro, pertencente à Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia estacionada em Palma que seguia na coluna e prestou assistência ao parto, quis "oficializar" ali mesmo a sua condição de "padrinho" do bebé, atribuindo-lhe um nome, dizendo à mãe:
- "Olha menina, como o bebé nasceu em cima de uma Berliet e fui eu um branco da tropa que tirei esse terrorista cá para fora, ele vai chamar-se Zungo Berliet Tropa (1) - ao mesmo tempo que lhe despejava o resto da água que ainda tinha no cantil por cima da cabeça para dar outro ar à cerimónia.
No meio da escuridão e a intervalar o choro da criança, ainda se ouviu numa das Berliet lá da frente alguém que dizia:
- "Se calhar ajudaste a nascer mais um turra que nos vai fazer a vida negra na mata se esta puta de guerra ainda durar por muito mais tempo" (...)

Carlos Vardasca
21 de Setembro de 2008

Foto: Coluna de reabastecimento após a sua chegada ao Aquartelamento de Palma, vendo-se em primeiro plano alguns soldados da Companhia de Caçadores 3309 (Meira, Gonçalves, Ferreira e o "Pragal" - este último falecido em 2005) e ainda elementos da população em cima das Berliet.
(1) Zungo em dialecto Maconde quer dizer Branco.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

36 anos depois a malta da C.ART. 2745 volta a encontrar-se.


Recebi do camarada Atílio Santos da Companhia de Artilharia 2745 a informação de que a Companhia ia encontrar-se no 36º Aniversário do seu regresso de Moçambique, sendo este ano o 26º Almoço de convívio e com o seguinte programa:

12,30 horas - Concentração no Restaurante
13,00 horas - Almoço no local de convívio
18,00 horas Lanche

Os interessados em participar devem contactar para:
Atílio Santos - Telf: 244814365 ou 966908625
Filipe Pereira (Setenta) Telef: 244732317 ou 914596332

Decerto que vão ser momentos de partilha de uma imensa satisfação por se encontrarem de novo, mas também relembrar os momentos difíceis por que passaram em Moçambique e prestar um singela homenagem aos companheiros tombados em combate.
E porque o momento também é de alegria, irão provavelmente comparar a farta refeição do convívio com o tradicional arroz com peixe com que os presenteavam nas margens do rio Rovuma, dieta só interrompida a quando da visita do General Kaúlza de Arriaga ao Aquartelamento de Nova Torres em 24 de Dezembro de 1970 onde, e para variar, a ementa foi colectiva e "melhorada", sendo composta por salsichas, batatas fritas, arroz branco e um ovo a cavalo.
A Companhia de Artilharia 2745 comandada pela Capitão Duque foi rendida pela Companhia de Caçadores 3309 (de que eu fazia parte) em Nova Torres no dia 01 de Março de 1971, tendo ambas as Companhias partilhado os dramas das inundações do Aquartelamento, a angústia das patrulhas pela mata densa e a incerteza do seu regresso que a cada instante se previa incerto.
Para todos eles que agora comemoram o 36º Aniversário do seu regresso da Guerra Colonial, aqui fica também um abraço solidário de quem sobreviveu.

Carlos Vardasca
17 de Setembro de 2008

Foto 1: Visita do General Kaúlza de Arriaga, esposa e restante comitiva militar ao Aquartelamento de Nova Torres em 24 de Dezembro de 1970.

Foto 2: Momento de uma das várias inundações do Aquartelamento de Nova Torres devido à junção das águas dos rios Rovuma e Metumbué, o que obrigava a constantes retiradas para zonas mais elevadas e a dormir durante vários dias em cima das árvores.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

"Na rota dos afectos, ou como o tempo se encarrega de nos aniquilar"




Rumo a norte, com o objectivo de "vasculhar" todos os recantos onde a beleza se esconde por entre o arvoredo, que se apoquenta ao mais pequeno sinal de aproximação de algo que lhe traga ventos de urbanidade, lá fui visitando alguns dos meus "companheiros de armas" que por acaso se "atravessavam no caminho", delineado por uma rota traçada no mapa onde o destino era saboreado de improviso.
É certo que todos os anos nos Encontros da nossa Companhia lá os vejo (alguns deles), mas desta vez fui visitá-los no seu recanto familiar, onde o sabor da amizade tem outro travo, regado com o verde tinto, a mesa farta temperada pelo abraço forte que nos faz recordar os momentos vividos naquelas terras banhadas pelo Índico e que só quem por lá andou os pode compreender. Estive em S. João da Madeira com o Almeida (1), acompanhei o Arteiro (2) na sua tradicional caminhada durante uma hora na marginal da vila piscatória de Caxinas (Vila do Conde) para tentar manter a forma adquirida no ginásio mas que fui traindo ao saborear as várias iguarias que se consomem naquela região. Cada vez mais a norte e depois de ter passado por Viana do Castelo, Caminha, Vila Nova de Cerveira e Valença (depois de uma breve incursão pela Galiza) lá estive também por breves momentos em Monção com o Alfredo Ruivo (3).
Tal como todos os camaradas que visitei e que me receberam em ambiente familiar e de uma forma bastante afectuosa, o Alfredo Ruivo (de alcunha o "Monção") também me convidou para lá pernoitar ao qual lhe estou extremamente agradecido, mas que desta vez recusei, não por qualquer outro motivo mas simplesmente relacionado com o estado debilitado da sua saúde que me comoveu profundamente, e que me impedia de suster as lágrimas de cada vez que o olhava, "embrulhado" na sua tristeza por não poder partilhar a alegria daquele momento e que se sentia pulsar dentro de si.
O Alfredo Ruivo, ex-combatente, ex-empresário da construção civil mas bastante debilitado devido a uma doença que lhe "amputou o futuro", mantém-se de pé à custa de umas "canadianas" onde faz algum esforço para se equilibrar, vive actualmente com uma mísera pensão de 382 Euros mensais, "magro salário que se perde na profundidade dos seus bolsos e na angústia de se sentir esquecido pela pátria que o pariu".
Sempre com a imagem do "Monção" a perturbar-me, iniciei a viagem de regresso ao sul sem que antes tivesse visitado o Gonçalves (4) em Macieira da Lixa e o Eugénio (5) em Silvares (Fafe), onde também ali convivi com o desespero do desemprego personificado pelo encerramento das fábricas de confecções de meias, que atirou este último e sua mulher para uma situação de desemprego permanente, recebendo ambos uma reforma de miséria.
Habituado a passar férias em outras paragens, desta vez por opção rumei a norte a que chamei "na rota dos afectos", mas onde também observei "como é que o tempo se encarrega de nos aniquilar" sem que esse mesmo tempo nos pergunte se o pode fazer sem a nossa permissão.

Carlos Vardasca
05 de Setembro de 2008

Foto 1: Eu e a Odília em S. João da Madeira com o Almeida e família.
Foto 2: Eu e a Odília em Caxinas com o Arteiro e esposa. (Na foto está a esposa do Almeida).
Foto 3: Em Monção com o Alfredo Ruivo ("Monção").
Foto 4: Em Macieira da Lixa com o Eugénio ("Fafe") e o Gonçalves ("Lixa")
(1) António Pinto de Almeida, ex-Soldado Condutor NM 15777070 da C.CAÇ. 3309
(2) João da Silva Arteiro, ex-Soldado Condutor NM 15393470 da C.CAÇ. 3309
(3) Alfredo Ruivo Campos ("Monção"), ex-Soldado Atirador NM 10786270 da C.CAÇ. 3309
(4) Manuel Teixeira Gonçalves ("Lixa"), ex-Soldado Condutor NM 17679170 da C.CAÇ. 3309
(5) Eugénio de Sousa Fernandes ("Fafe"), ex-Soldado Apontador de Metralhadora NM 11119370 da C.CAÇ. 3309