segunda-feira, 20 de julho de 2009

"A sorte não protege os audazes". 20 de Julho de 1971


Por me ter sido pedido por um camarada de armas da Companhia de Caçadores 3309 colaboração no relato do sucedido num acidente em Nangade, norte de Moçambique em 20 de Julho de 1971, e salvo algumas falhas de memória, aqui vai o que me recordo.

(...) Ainda estávamos no 1º semestre do ano de 1971, numa bela manhã de um sol derradeiro, estava eu junto ao depósito de géneros no inicio do aldeamento Macua no aquartelamento de Nangade quando ouvi uma grande explosão que facilmente identifiquei por ser o rebentamento de uma forte mina e, ao olhar para o vale que tinha uma vista fantástica do local onde me encontrava, logo me apercebi que havia acidente dado que há hora em que estávamos era normal que várias viaturas descessem ao vale; ora com pessoal para carregar água junto ao rio Litinguinha ou para levar gente para as machambas (hortas), ou até gente da população nativa que ali se deslocava para lavar roupa, percurso que de uma forma habitual era quase todos os dias feito pelo Sr. Comandante à época Tenente Coronel Vasconcelos Porto, zona absolutamente controlada pelas nossas companhias militares, e que nada fazia querer poder ser uma zona de grande risco.
Mas naquela manhã quis o destino que a 1ª viatura que desceu para o vale fosse aquele Unimog 404 que transportava 16 vidas, 14 negros civis habitantes das aldeias sobre o nosso controlo mais dois militares nossos da Companhia de Caçadores 3309, sendo um deles o 1º Cabo Condutor Victor (1) que se ofereceu para efectuar aquela missão e que levava com ele um camarada da sua companhia, o Albino Dias de Sousa (2) ao que mais tarde vim a saber este ia na viatura a seu convite dado que nunca tinha ido à Machamba, acabando os dois por morrer na dita explosão de uma mina anti-carro fortemente reforçada, assim como seis dos civis negros, ficando ainda mais 5 feridos graves e 3 ligeiros. Eu ao me aperceber do que estava a acontecer do local onde me encontrava, peguei rapidamente na minha bolsa de enfermagem que estava sempre por perto de mim e bem apetrechada, na minha arma, e corri para a descida acompanhado de mais uma meia dúzia de companheiros, que sem olhar a meios nos metemos numa viatura e chegamos ao local. Recordo que fui uma das primeiras pessoas a chegar junto dos sinistrados, “mortos e feridos por todo o lado com um forte cheiro a pessoas queimadas”, e aí de uma forma consertada com os outros companheiros batemos toda a zona a tiro com o objectivo de obrigar o inimigo a retirar-se caso por ali ainda houvesse alguém por perto.
Ao fazer uma rapidíssima inspecção ao sucessivo, como mandam as regras, comecei por assistir aos casos mais graves deixando os que já não tinha solução para mais tarde.
Depois de chegar o pessoal da Companhia de Artilharia 2745 que não tardaram e que nos foram proteger, então com as devidas precauções pedi que removessem à força de braços a viatura minada de onde retirei o cadáver do nosso camarada e meu amigo Victor, que antes desta operação era difícil vê-lo pois estava debaixo dos destroços da viatura minada.
Estava bastante esmagado embora a sua cabeça e cara não tivessem sido muito atingidas, quanto ao outro camarada, tinha alguns ferimentos mas à minha chegada também já estava morto no terreno. Julgo que o número elevado de mortos foi provocado pelo rebentamento, tendo em conta a forte onda de choque de calor e sobro que a potente mina produziu. Quanto aos restantes feridos foram todos evacuados por helicóptero a partir do local para o Hospital de Mueda e os mortos negros ficaram em Nangade. Os nossos militares feridos que seguiram em helicópteros para Mueda mais tarde foram enviados deste hospital para Nampula, onde eu posteriormente me desloquei para os visitar e apoiar.
Quando recordo a minha passagem por África sempre retrato o Victor, pois era um bom companheiro e um jovem de bom carácter, muito voluntarioso e bem humorado, e a propósito disto, lembro-me alguns dias antes da sua morte termos pessoal da CCS do Batalhão de Artilharia 2918 fora do arame em patrulha de reconhecimento na picada (onde o Acácio Pedrosa, Cabo de Transmissões da minha companhia morreu com um tiro na cabeça - 10 de Maio de 1971) um grupo de voluntários no aquartelamento ao saber da noticia quis sair de imediato para o mato para resgatar o cadáver, e o Victor, foi de rápido o condutor que se ofereceu para conduzir a Berliet "rebenta minas" que se deslocou ao local (...)

Espero que este relato sentido te ajude na elaboração da tua obra
(3)
Um abraço Amigo

Mário Fernando Silva
ex- 1º Cabo Enfermeiro
da CCS do Batalhão de Artilharia 2918

(1) Victor Manuel da Silva, 1º Cabo Condutor Auto NM 11694170 da Companhia de Caçadores 3309, falecido em combate em 20 de Julho de 1971.

(2) Albino Dias de Sousa, Soldado dos Serviços Auxiliares NM 07013070 da Companhia de Caçadores 3309, falecido em combate em 20 de Julho de 1971.

(3) Texto enviado por Mário Fernando Silva para ser editado no livro da História da Companhia de Caçadores 3309 com o título "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 2008
Fotos 1 e 2: Anúncio do jornal "O Século" do ano de 1971, informando do falecimento do Victor Manuel da Silva, e uma foto sua no Aquartelamento de Tartibo. Maio de 1971.
Foto: 3 e 4: O Albino Dias de Sousa na companhia dos seus pais e de uma criança sua amiga na vila de Lavra (Matosinhos) 1968, e numa foto tirada no Aquartelamento de Nangade. Abril de 1971.
Fotos 5 e 6: Os nomes de Victor Manuel da Silva e de Albino dias de Sousa inscritos no Mausoléu em homenagem aos combatentes tombados na Guerra Colonial. Belém, Lisboa.
Foto 7: Estado em que ficou o Unimog 404 após a explosão da mina anti-carro onde faleceram os companheiros Victor e Sousa. Nangade. Norte de Moçambique. 1971.

sábado, 18 de julho de 2009

"A arte de bem escapar ao arroz com peixe"

(...) No Aquartelamento de Nangade, a cozinha ficava debaixo de um aglomerado de cajueiros que lhe emprestavam frondosa sombra, protegendo quem nela trabalhava dos calores tórridos que aqueciam o Planalto dos Macondes.
Antes do cozinheiro de serviço fazer soar, numa barra de ferro pendurada numa das árvores estridentes sons, que lembravam que o rancho estava "pronto a servir", já as bichas de soldados serpenteavam desalinhadas de marmita em riste, para receberem algo empapado que se colaria no seu fundo e que dificilmente se despegaria se não fosse tão depressa removido.
Ali não havia ementa previamente anunciada, pois todos nós há muito que a tínhamos decorado.
Uns dias era peixe com arroz e nos outros arroz com peixe, e assim sucessivamente, acompanhado por um líquido de tez já não muito escura, que diziam ser vinho e que fora bastas vezes alvo de várias "bênçãos" para lhe aumentar o volume desde que saíra da Manutenção Militar na Metrópole. Por vezes o menu lá era alternado (como se a rara variedade fosse sinónimo de qualidade) com uma carne intragável, excessivamente salgada (vinda no Nord-Atlas que fazia o abastecimento aéreo) transportada em barricas de madeira que não se sabia bem a sua origem (dizia-se que era da Argentina) e que faziam aos poucos aumentar o protesto de quem se sentia estar a ser alimentado para "unicamente se manter de pé" enquanto os "Chicos" iam "enchendo os bolsos" de comissão em comissão.
Misturados com os soldados, vagueavam sempre alguns miúdos dos aldeamentos das etnias Macua e Maconde que ladeavam o aquartelamento, que ao ouvirem o chamamento para o rancho se aproximavam da cozinha militar, sempre na ânsia de que sobrasse no fundo daquelas marmitas ou nos caldeirões da cozinha alguns restos. Ao mínimo gesto, corriam apressados, atropelando-se uns aos outros, exibindo as suas barrigas disformes na direcção de quem lhes estendia a marmita mesmo que no seu fundo não restasse quase nada, mas que funcionava como moeda de troca para justificar a lavagem da palamenta de alumínio.
Dava pena olhar para aqueles miúdos. Agachados debaixo do alpendre das casernas onde os soldados comiam sentados no chão ou em toscas mesas feitas de pedaços de madeira, de olhos muito esbugalhados, olhando-os insistentemente como que a implorar para que aquele sofrimento fosse muito breve. Quantos de nós, perante aqueles olhares tristes, muitas das vezes não tivemos vontade de "lamber o fundo da marmita", mas nos vimos quase que obrigados a deixar algo no fundo para enganar a fome daquelas frágeis crianças.
Como tudo na vida, todos nós fomos "obrigados" a desenvolver (algumas vezes com requintes de malvadez) a "arte de bem escapar ao arroz com peixe".
Era das incursões aos aldeamentos, de que o "FOZ" (1) era especialista (e de quem alguns de nós copiámos o jeito) que resultavam grandes "caçadas" que nos permitia fazer esquecer o arroz amassado e o peixe chamuscado do rancho, e "chafurdarmos" nos frangos besuntados de gindum bem picante para justificar a sua inundação com as fresquíssimas "Laurentinas".
No Aquartelamento de Tartibo a coisa não era nada diferente (embora não houvesse aldeamentos) mas onde também se fazia do peixe com arroz e do arroz com peixe a "arte de bem cozinhar", com a cumplicidade da falta de imaginação do vago-mestre que também tentava "sobreviver" com a escassez de abastecimentos. Ali, a monotonia do menu era comparável à sensação de isolamento a que estavam sujeitos os militares da Companhia de Caçadores 3309 ali estacionados, não fosse alguma peça de caça morta no decurso de alguma operação militar; de uma outra feita prisioneira numa das armadilhas colocadas fora da barreira defensiva do Aquartelamento, ou de um "golpe de mão" desencadeado ao galinheiro do Capitão (2), estes últimos "troféus arduamente conquistados", que faziam a alegria de quem com eles se banqueteava perante a irritação daquele oficial, que via os seus galináceos reduzir de número e a "desertarem para outras paragens" (...)

Carlos Vardasca
18 de Julho de 2009

(1) Alcunha de Eduardo da Silva Machado, Soldado Condutor Auto Rodas NM 15189470 da Companhia de Caçadores 3309, do qual, até aos dias de hoje não mais soubemos do seu paradeiro.
(2) Hélio Augusto Moreira, Capitão Miliciano de Infantaria NM 36048760, Comandante da Companhia de Caçadores 3309.
Foto 1: Em Nangade na bicha para o rancho. Na foto podem ver-se junto a mim (entre outros) o Soldado Condutor Auto Rodas João da Silva Arteiro NM 15393470 da Companhia de Caçadores 3309.
Foto 2: Para fugirem à tortura do "arroz com peixe" elementos da C.CAÇ. 3309 assam uma peça de carne de gazela abatida numa ida ao mato para apanhar lenha. Na foto estão (entre outros) o Mendes, 1º Sargento Barreto NM 50037311 (falecido após o nosso regresso em 1975) e o 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem Azevedo NM 05802970. Aquartelamento de Tartibo. Norte de Moçambique 1971.
Foto 3: Diziam eles que estavam a proceder a "uma operação cirúrgica". Na foto estão o Alfredo, Cardoso, Lopes, Óscar (que dizia estar a segurar no frasco do soro) e o Gonçalves, que procedem à assadura de uma peça de caça, também com o objectivo de se livrarem do tormento do "arroz com peixe". Aquartelamento de Tartibo. Norte de Moçambique 1971.

domingo, 5 de julho de 2009

Quando o "Alentejano" nos deixou. (05 de Julho de 1972)

(...) Inesperadamente, o futuro parece ter parado ali mesmo. Interrompido por um estrondo ensurdecedor que se ouviu a quilómetros de distância, espalhando a intranquilidade tanto em Nangade assim como no 3º pelotão da 3309 que fazia segurança à Companhia de Engenharia e se camuflava na mata, esse mesmo futuro, que terminava ali mesmo envolto num fumo enegrecido que se elevava ao quilómetro nove, em forma de cogumelo; mas dos venenosos que estrangulam esperanças adiadas, acabava de fundear naquele momento como se fora um navio sem escala, ancorado, sem vida, à espera de entrar num estaleiro de desmantelamento.
Os corvos; quais aves de rapina que esperam tranquilamente uma presa, ainda esvoaçavam por cima do aquartelamento de Nangade enquanto dois Unimogs 404, apressados, apinhados de soldados, se dirigiam, também eles angustiados, para o local do rebentamento tentando ainda recuperar alguma alma perdida, salvando-a daquele inferno que montou acampamento nas proximidades e ao quilómetro nove de Nangade.
Transportadas as vítimas para Nangade numa Mercedes que seguia atrás da Berliet minada e num Unimog 404 que entretanto ali chegara para prestar apoio, junto ao posto médico já muitos militares e elementos da população se acotovelavam para observarem de perto aquele cenário trágico, onde jaziam corpos envoltos em poeira avermelhada, que tentava tingir o verde camuflado das fardas feitas em farrapos que já não podiam camuflar a sua mutilação.
Logo após o estrondo do rebentamento, a preocupação apoderou-se de quem na caserna dos condutores começava a folhear as folhas amareladas de “A Rua” de Manfred Gregor, virando de imediato o seu pensamento para aquele pelotão que acabara de sair para o mato, e, em especial, para aquela figura franzina, doente, mas porque ferida no seu orgulho, preferiu correr em direcção à morte vinte e dois anos após ter nascido sobre as espigas ondulantes das searas alentejanas.
Inerte, estupefacto, tremendamente emocionado pelo o que acabava de presenciar, com as lágrimas desordenadas a correrem-lhe pela face como cascatas a libertaram-se das águas revoltas, Braz, que se fazia acompanhar pelo Nabais, do Foz, do Almeida de outros soldados da 3309, permanecia imóvel, sem conseguir exprimir qualquer sentimento de revolta:
- É a guerra! - disse baixinho Braz para que ninguém o ouvisse e fosse injustamente mal compreendido.
Os corpos, ali estavam amontoados, jaziam, inocentes, sem compreenderem porque é que a tragédia logo tinha que bater à sua porta e não a outra para assim a poderem comentar.

O “Alentejano” (1), com o crânio desfeito, adormecia agora encoberto por um camuflado que ainda "cheirava a sobreiro e a suor do seu povo", e, os seus olhos, semi abertos, pareciam dizer-nos que o deixassem fugir ao encontro das ondas turbulentas das searas que o embalaram em criança. No outro canto do Unimog 404, ao lado do Baltazar também ferido, agonizavam o Portugal, o Vaz, o Sousa de entre as doze vítimas daquela explosão, na companhia de outros dois soldados de origem africana; dos que tinham sido incorporados nas fileiras do exército na cidade de Lourenço Marques e enviados para o norte de Moçambique, para bem longe, tal como os restantes soldados da 3309, das suas aldeias e dos seus afectos agora dramaticamente violentados.
Em silêncio, ao lado de outros soldados feridos no mesmo rebentamento da mina anti-carro que destruiu a Berliet em que seguiam e que aguardavam o helicóptero para os evacuar para o hospital de Mueda, repousavam num sono profundo rostos que denunciavam uma certa angústia porque adivinhavam que jamais ouviriam os batuques dos tambores das suas aldeias; não voltariam a sentir os braços frágeis dos seus filhos nem a humidade das lágrimas das suas mulheres, que continuariam a cair numa qualquer poça de água barrenta feita pelo pisar da lama por uma qualquer bota colonial.
As hélices dos helicópteros, antes de se imobilizarem na pista, provocaram uma turbulenta tempestade de areia, levantando uma nuvem de pó que ofuscou todos os presentes, e que se preparavam para se despedir do seu companheiro morto e dos feridos em combate.
Ainda os helicópteros não se tinham elevado por cima da copas dos cajueiros e das acácias, já os lenços verdes se levantavam em acenos descompassados, ao som de rajadas de metralhadora, numa última homenagem a quem acabava de tombar, sem jeito, nem prosa.
O resto do dia em Nangade terminara cinzento, triste e terrivelmente dramático, sem que o semblante expresso nos rostos dos soldados da 3309 conseguisse exteriorizar algo mais que não fosse uma certa mágoa e uma nítida e indisfarçável angústia, rodeada de um ensurdecedor silêncio deveras perturbador (...)

In: "fardados de lama", páginas 236, 237 e 238. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2008
(1) António José Pereira, 1º Cabo Atirador NM 11934670 da Companhia de Caçadores 3309, falecido em combate no dia 05 de Julho de 1972.
Foto 1: O "Alentejano" (em primeiro plano) numa operação no rio Metumbué, na companhia de outros elementos do seu Grupo de Combate da Companhia de Caçadores 3309. (1971)
Foto 2: O "Alentejano aos 17 anos em Aljustrel (1966) e no Aquartelamento de Nangade junto ao monumento em homenagem aos Combatentes da 1ª Grande Guerra 1914-1918 (1971).
Foto 3: Berliet minada após o rebentamento da mina anti-carro, sendo rebocada para Nangade por uma máquina da Companhia de Engenharia 2736. (05 de Julho de 1972)
Foto 4: Berliet minada em Nangade (05 de Julho de 1972). Ao canto em destaque uma foto do "Alentejano" tirada no Aquartelamento de Nova Torres (1971)