domingo, 5 de julho de 2009

Quando o "Alentejano" nos deixou. (05 de Julho de 1972)

(...) Inesperadamente, o futuro parece ter parado ali mesmo. Interrompido por um estrondo ensurdecedor que se ouviu a quilómetros de distância, espalhando a intranquilidade tanto em Nangade assim como no 3º pelotão da 3309 que fazia segurança à Companhia de Engenharia e se camuflava na mata, esse mesmo futuro, que terminava ali mesmo envolto num fumo enegrecido que se elevava ao quilómetro nove, em forma de cogumelo; mas dos venenosos que estrangulam esperanças adiadas, acabava de fundear naquele momento como se fora um navio sem escala, ancorado, sem vida, à espera de entrar num estaleiro de desmantelamento.
Os corvos; quais aves de rapina que esperam tranquilamente uma presa, ainda esvoaçavam por cima do aquartelamento de Nangade enquanto dois Unimogs 404, apressados, apinhados de soldados, se dirigiam, também eles angustiados, para o local do rebentamento tentando ainda recuperar alguma alma perdida, salvando-a daquele inferno que montou acampamento nas proximidades e ao quilómetro nove de Nangade.
Transportadas as vítimas para Nangade numa Mercedes que seguia atrás da Berliet minada e num Unimog 404 que entretanto ali chegara para prestar apoio, junto ao posto médico já muitos militares e elementos da população se acotovelavam para observarem de perto aquele cenário trágico, onde jaziam corpos envoltos em poeira avermelhada, que tentava tingir o verde camuflado das fardas feitas em farrapos que já não podiam camuflar a sua mutilação.
Logo após o estrondo do rebentamento, a preocupação apoderou-se de quem na caserna dos condutores começava a folhear as folhas amareladas de “A Rua” de Manfred Gregor, virando de imediato o seu pensamento para aquele pelotão que acabara de sair para o mato, e, em especial, para aquela figura franzina, doente, mas porque ferida no seu orgulho, preferiu correr em direcção à morte vinte e dois anos após ter nascido sobre as espigas ondulantes das searas alentejanas.
Inerte, estupefacto, tremendamente emocionado pelo o que acabava de presenciar, com as lágrimas desordenadas a correrem-lhe pela face como cascatas a libertaram-se das águas revoltas, Braz, que se fazia acompanhar pelo Nabais, do Foz, do Almeida de outros soldados da 3309, permanecia imóvel, sem conseguir exprimir qualquer sentimento de revolta:
- É a guerra! - disse baixinho Braz para que ninguém o ouvisse e fosse injustamente mal compreendido.
Os corpos, ali estavam amontoados, jaziam, inocentes, sem compreenderem porque é que a tragédia logo tinha que bater à sua porta e não a outra para assim a poderem comentar.

O “Alentejano” (1), com o crânio desfeito, adormecia agora encoberto por um camuflado que ainda "cheirava a sobreiro e a suor do seu povo", e, os seus olhos, semi abertos, pareciam dizer-nos que o deixassem fugir ao encontro das ondas turbulentas das searas que o embalaram em criança. No outro canto do Unimog 404, ao lado do Baltazar também ferido, agonizavam o Portugal, o Vaz, o Sousa de entre as doze vítimas daquela explosão, na companhia de outros dois soldados de origem africana; dos que tinham sido incorporados nas fileiras do exército na cidade de Lourenço Marques e enviados para o norte de Moçambique, para bem longe, tal como os restantes soldados da 3309, das suas aldeias e dos seus afectos agora dramaticamente violentados.
Em silêncio, ao lado de outros soldados feridos no mesmo rebentamento da mina anti-carro que destruiu a Berliet em que seguiam e que aguardavam o helicóptero para os evacuar para o hospital de Mueda, repousavam num sono profundo rostos que denunciavam uma certa angústia porque adivinhavam que jamais ouviriam os batuques dos tambores das suas aldeias; não voltariam a sentir os braços frágeis dos seus filhos nem a humidade das lágrimas das suas mulheres, que continuariam a cair numa qualquer poça de água barrenta feita pelo pisar da lama por uma qualquer bota colonial.
As hélices dos helicópteros, antes de se imobilizarem na pista, provocaram uma turbulenta tempestade de areia, levantando uma nuvem de pó que ofuscou todos os presentes, e que se preparavam para se despedir do seu companheiro morto e dos feridos em combate.
Ainda os helicópteros não se tinham elevado por cima da copas dos cajueiros e das acácias, já os lenços verdes se levantavam em acenos descompassados, ao som de rajadas de metralhadora, numa última homenagem a quem acabava de tombar, sem jeito, nem prosa.
O resto do dia em Nangade terminara cinzento, triste e terrivelmente dramático, sem que o semblante expresso nos rostos dos soldados da 3309 conseguisse exteriorizar algo mais que não fosse uma certa mágoa e uma nítida e indisfarçável angústia, rodeada de um ensurdecedor silêncio deveras perturbador (...)

In: "fardados de lama", páginas 236, 237 e 238. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2008
(1) António José Pereira, 1º Cabo Atirador NM 11934670 da Companhia de Caçadores 3309, falecido em combate no dia 05 de Julho de 1972.
Foto 1: O "Alentejano" (em primeiro plano) numa operação no rio Metumbué, na companhia de outros elementos do seu Grupo de Combate da Companhia de Caçadores 3309. (1971)
Foto 2: O "Alentejano aos 17 anos em Aljustrel (1966) e no Aquartelamento de Nangade junto ao monumento em homenagem aos Combatentes da 1ª Grande Guerra 1914-1918 (1971).
Foto 3: Berliet minada após o rebentamento da mina anti-carro, sendo rebocada para Nangade por uma máquina da Companhia de Engenharia 2736. (05 de Julho de 1972)
Foto 4: Berliet minada em Nangade (05 de Julho de 1972). Ao canto em destaque uma foto do "Alentejano" tirada no Aquartelamento de Nova Torres (1971)

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