domingo, 19 de dezembro de 2010

Um último olhar para lá do arvoredo

O helicóptero acabara de levantar voo, deixando todo o aquartelamento envolto numa espessa nuvem de poeira cor de tijolo, que parecia querer encardir toda a felicidade que acabava de ser exteriorizada por soldados de olhar incerto, embora mais confiantes pelos momentos que acabavam de viver.
Decorria ainda o mês de Setembro, e já uma equipa de Rádio Televisão Portuguesa se deslocara ao minúsculo aquartelamento para filmar as tradicionais mensagens de natal, para serem exibidas no final do mês natalício.
Chegados Dezembro e depois de tomarem conhecimento da operação que iria ser desencadeada, os soldados dirigiam-se para as tendas de lona a fim de se prepararem para a missão anunciada, que consistia em desmantelar uma pequena base da FRELIMO localizada nas coordenadas indicadas num dos mapas na posse do alferes que iria comandar a operação.
Embrenhados na mata, recordando as mensagens de natal arrancadas a custo e que chegariam às mais recônditas aldeias como se fora uma prenda desembrulhada à distância, olhavam agora, carregados de incertezas, pelo que lhes esperava para lá daquele arvoredo denso, muito verdejante e muito belo, mas que já fora, noutras circunstâncias, cenário de muitas angústias e de felicidades adiadas, tentando disfarçar os vários medos que lhes inundavam a alma:
É pá Francisco
[1]! ― As nossas miúdas devem estar prestes a ver a nossa tromba na televisão.
Ainda te Lembras? ― Até parecia que tinhas medo do microfone! ― Agarraste naquilo com a ponta dos dedos e tremias tanto que até parecia que estavas a bater uma punheta grilos…
Aquilo era apenas um microfone e não mordia a ninguém ― Disse o Carriço, tentando ridicularizar o amigo sem que os restantes elementos do pelotão que seguiam em fila indiana lhe dessem qualquer atenção.
Muito longe dali, em Trás-os Montes, na aldeia de Moure, em pleno mês de natal e enquanto os fumeiros deixavam escapar por entre os telhados de ardósia o fumo branco que ajudara a corar as chouriças dependuradas nas chaminés, e depois de o gado, um pouco mais cedo, ter sido aconchegado bem longe dos lobos que já uivavam junto à “Pedra da Avó”, já os aldeãos se juntavam na Casa do Povo, aquecidos por grossos madeiros em redor da única televisão do povoado, para assistirem às mensagens de natal transmitidas das Colónias, na ânsia de reverem um seu familiar que antecipadamente lhes avisara do dia da sua transmissão.
Quando a minha cachopa me vir na televisão com esta barba e esta bigodaça, vai logo dizer que não pareço o mesmo que se foi despedir dela no Cais de Alcântara ― Disse o Francisco que denotava transbordar de felicidade pela possibilidade que teve de falar para a família durante aquelas filmagens, sem prestar atenção aos avisos que o alferes mandou transmitir de soldado para soldado, para que caminhassem em silêncio, pois estava-se muito próximo do objectivo, numa zona onde se supunha existir uma das bases da FRELIMO na região.
Pelo caminho, espetados nas árvores, foram encontrando pequenos panfletos que em tom de aviso incitavam as tropas vindas de Lisboa a desertar, onde se acrescentava, para além de outros recados que tinham um destinatário bem definido:
― (…) Os nossos inimigos não são vocês soldados portugueses, que consideramos nossos irmãos, mas sim quem de Lisboa vos obrigou a embarcar para uma guerra que sabem ser injusta, e vos mandaram matar o nosso povo e atrasar a nossa independência do jugo colonial (…).
Aqueles panfletos, alguns deles escritos em vários dialectos e assinados por Samora Machel, foram logo arrancados das mãos dos soldados pelo alferes que comandava o Grupo de Combate, enquanto que em voz baixa ia dizendo bastante irritado:
Não liguem ao que esses cabrões dizem ― O que eles querem é toldar-vos as ideias e minar o nosso moral ― Ao mesmo tempo que gesticulava meio encoberto pelo capim, dando ordens para que todos se concentrassem na acção e se dispusessem em posição de ataque, pois as primeiras palhotas já se avistavam por entre o arvoredo.
Momentos antes e ainda afastados do objectivo, tinham sido sobrevoados pelo “Bocas”
[2], que na sua “missão evangelizadora” lá ia vomitando slogans enganadores, que apelavam à rendição dos guerrilheiros embrenhados na mata a troco de algumas “bugigangas”, acontecimento que deu azo a vários comentários entre alguns soldados do Grupo de Combate envolvido naquela operação e que seguiam na retaguarda:
Lá andam os gajos da PIDE na sua Psico-Social ― Ao que outro que lhe estava mais próximo respondeu:
Embora seja uma missão coordenada pela PIDE, estes sabujos raramente andam lá ― Quem anda no “Bocas” é mais a malta da nossa tropa ― ao que o primeiro respondeu certificando-se se o alferes não estava próximo:
Que interessa se são os PIDES que lá vão ou não, se quem lá vai a bordo daquele pedaço de lata ferrugento (sobrevivente da guerra do Vietname), se presta a fazer o mesmo trabalho sujo, e se mostra fiel e zeloso servidor do regime! ― Até parece que não sabes que aquela malta é toda “escolhida a dedo” ― Concluiu.
Enquanto as imagens que foram filmadas três meses antes iam desfilando no televisor naquela tarde do dia 25 de Dezembro, os olhos de quem enchia a Casa do Povo não se desviavam do pequeno ecrã, cada um à procura de algo que pareciam ter perdido e que de momento ainda não tinham encontrado.
Foi uma explosão de alegria quando a Josefa viu aparecer a imagem do seu namorado, reconhecendo-o logo de imediato apesar da barba que lhe envolvia a face:
Oh carago! ― Eu não o quero cá todo barbudo ― Quando o meu Francisco vier da guerra mando-o logo ao Sr. Inácio para lhe rapar aquele pêlo todo.
Era uma atmosfera de contentamento, deveras entusiástica que se vivia naquele recinto da aldeia, momento raro desde que o Francisco partira para África há cerca de 22 meses.
No preciso momento em que se desfrutavam aquelas imagens transmitidas tardiamente e o rosto de toda aquela gente se inundava de alegria, foi quando, muito longe dali, nos confins da mata verdejante do norte de Moçambique, algures num ponto desconhecido do Planalto dos Macondes, a cerca de 25 quilómetros do Aquartelamento de Nangade, fora dada ordem de ataque àquela base da FRELIMO, desencadeando-se de imediato um ensurdecedor tiroteio que transformou a tranquilidade daquele arvoredo numa imensa tempestade, onde se adivinhava um “trágico naufrágio sem que tivesse havido qualquer aviso à navegação”.
Terminada a operação e ainda o cheiro a pólvora não tinha assentado no capim, já se denotava uma perturbante azáfama entre os soldados na recolha do material apreendido e na contagem dos guerrilheiros abatidos, enquanto alguém, numa das extremidades da pequena base já com todas as palhotas em chamas, gritava em jeito de aflição e profundamente desesperado:
Porra! ― Onde está o enfermeiro? ― Venham aqui depressa ― Estão aqui dois gajos nossos gravemente feridos e um deles parece mesmo estar a lerpar!
O Francisco agonizava desesperadamente com as mãos apertando o abdómen, tentando esconder até que ponto fora esventrado por uma rajada de Kalashnikov, enquanto ia sussurrando para o enfermeiro que acabara de chegar, cuja frase se assemelhava a um leve sopro que já soava muito distante:
É pá “seringas” de merda! ― Não me deixes morrer aqui… ― Que mal fiz eu a deus para deixar que estes gajos me tratassem tão mal…? ― Enquanto os seus olhos se desvaneciam e deitavam um último olhar em jeito de despedida, para bem longe dali, muito para lá do arvoredo.
Prestados os primeiros socorros aos restantes feridos, desmatada a área de algumas pequenas árvores e criada uma clareira para facilitar o acesso do helicóptero de evacuação, aquele recanto da mata assistia silencioso ao “desmoronar de mais um castelo”, cuja felicidade iria ser interrompida também muito longe dali, quando o carteiro entregasse na aldeia o telegrama do Estado Maior do Exército a anunciar, tão friamente e sem expressar qualquer sentimento de culpa, o falecimento em combate do Francisco.
Era natal. Decorria o ano de 1973, e aquele Grupo de Combate regressava agora ao Aquartelamento mergulhado num silêncio tão perturbador, só possível de ser quebrado pela raiva incontida de um dos soldados que agora se sentia órfão do seu melhor amigo:
Epá malta! ― O Francisco lerpou
[3], o “Carapinha” ficou com o seu futuro amputado: ― Prosseguindo o protesto com as lágrimas a escorrerem-lhe pela face, acompanhadas por um soluçar extremamente comovente:
Mas afinal! ― O que é que anda a fazer esse gajo que dizem ter nascido em Dezembro para abençoar e salvar o mundo? ― Ao que o soldado que seguia à sua frente lhe respondeu muito baixinho, certificando-se que mais ninguém o ouvia:
Isso são tudo tretas ― Ele nunca se preocupou connosco ― Nesta puta de guerra ele apenas tem abençoado os donos das plantações de algodão e dos extensos cafezais; os mesmos que há muito chafurdam em redor da mesma gamela que tem engordado estes “Chicos”, que fazem desta guerra o seu salário.

Carlos Vardasca
19 de Dezembro de 2010
[1] Nome fictício atribuído a este militar, para respeitar a vontade dos seus familiares que solicitaram que não se mencionasse o seu nome nem a Companhia a que pertencia.
[2] Dakota, avião da Força Aérea dotado de um potente altifalante, que sobrevoava os aldeamentos e as zonas onde se previa existirem bases da FRELIMO, lançando panfletos e propaganda sonora para convencer os guerrilheiros a entregarem-se às nossas tropas.
[3] Morreu. Na gíria militar.