sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"... Quando os protestos se enterravam num abrigo"


(...) Em redor do aquartelamento haviam vários abrigos onde nos refugiávamos dos ataques da FRELIMO, muitos deles foram até adoptados como casernas onde muitos soldados preferiram dormir (abandonando as tendas) até ao final da sua Comissão, pois ali se sentiam mais seguros para garantirem o tal regresso tão desejado mas que a cada dia se tornava cada vez mais incerto. Mas havia um abrigo que tinha uma característica muito particular. Para além de nos garantir alguma segurança contra o disparo das granadas de morteiro de 82mm com que a FRELIMO por várias vezes flagelava o aquartelamento, este abrigo tinha uma particularidade que lhe conferia alguma originalidade digna de ser recordada. Para além da sua função de proporcionar meios de protecção e defesa em caso de ataque ao aquartelamento, nele funcionava uma pequena e típica "tasca", onde se afogavam tristezas e se alimentavam alguns amores adiados, assim como outros tantos já "traídos pela distância e esquecidos pela ausência".

À noite, após o regresso das patrulhas ou das colunas de reabastecimento; de se rasgarem os "bate-estradas"(1) e se saborearem os odores das notícias de uma aldeia bem distante que fumegava pelos telhados de ardósia, era ali no fundo daquele abrigo que, entre três dedos de conversa e um trago de bagaço onde se mergulhava a dor, que se iludiam também os nossos medos e algumas incertezas.

Era no fundo daquele abrigo que, ao som de um rádio meio desconjuntado ou de uma guitarra que gemia ais de solidão enquanto se emborcava um café intragável, que se viviam momentos de conjura pelos os horrores da guerra, envoltos numa nuvem espessa de fumo que exalava da "Suruma", planta elevada à categoria de tranquilizante colectivo que, depois de fumada, "espantava outros medos" por outras tantas batalhas que se adivinhavam espreitar pela madrugada.

À custa de um gerador que roncava pela noite dentro, a luz ténue de tons avermelhados que iluminava aquele abrigo e todas as angústias de muitos que o frequentavam, não conseguia no entanto ofuscar o pensamento de outros que faziam daquele recanto meio escuro uma pequena "Ágora"(2) meio contida, onde o protesto sussurrado ao ouvido soava a sopros de conjura; não abafava a raiva disfarçada de patriotismo e a revolta prenhe de ingenuidade, que se abraçavam num lamento comum, e que, numa amálgama de cumplicidades, iam ganhando contornos de descontentamento por uma guerra que cada vez "cavava mais fundo a legitimidade da nossa presença" (...)


(1) Aerograma.

(2) Praça de discussão pública na antiga Grécia.


Carlos Vardasca
30 de Novembro de 2007

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

"Os 15 anos da minha carcaçinha"


(...) Há momentos de felicidade na nossa vida que nunca ninguém os irá conseguir apagar de nós. Eu, ao contrário de alguns mortais, ao longo da minha existência não tive muitos, mas os poucos que tive o privilégio de viver, fui sabendo saborear o seu fascínio e conviver com todos eles, com a noção de que aqueles momentos foram alguns dos pedaços da minha vida que jamais alguém os irá arrancar de mim. O nascimento de uma segunda filha (a exemplo do que acontecera com a primeira) é sempre motivo de uma tremenda felicidade, e foi precisamente o que aconteceu há quinze anos quando nasceu a minha "Carcaçinha".
A Mafalda faz hoje 15 anos que nasceu no Hospital do Barreiro no dia 29 de Novembro de 1992, e, na noite anterior, não "preguei olho" à espera que aquele rebento respirasse os primeiros ares deste mundo tão injusto.
Era tão pequenina que, num acto de ternura, me lembrei de dizer no momento quando a "arranquei" dos braços da Odília e lhe peguei ao colo:
- Olha a minha filhota já chegou... pareçe um carcaçinha (lembrando-me dos pequenos papo-secos).
E assim, ao longo de todos estes anos e em momentos da nossa convivência que tem sido constante e salutar, continuei a tratá-la desta forma, o que envolve um imenso carinho numa designação carregada de afectos (...)
Carlos Vardasca
29 de Novembro de 2007

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

"...No aconchego do aquartelamento"


(...) Entre nós, e apesar da instabilidade vivida em função dos perigos vividos no nosso dia a dia, ainda sobravam alguns momentos para fortificar o espírito de camaradagem e solidificar a nossa amizade. Quando sabiamos que camaradas nossos estavam para chegar de uma operação (coluna de reabastecimento ou de uma acção de patrulhamento), havia sempre alguém (que tinha ficado no aquartelamento) que se lembrava de atestar os chuveiros (bidões vazios de combustível dos helicópteros) para que, quem acabado de chegar, tivesse a oportunidade de se "libertar das angústias embebidas em suores e de se sacudir do pó barrento que lhes invadia as entranhas". À noite, e sempre que o Furriel Gabriel tivesse recebido as suas "famosas encomendas da Metrópole", a malta reunia na oficina mecânica para aí conviver e soltar algumas raivas acumuladas. Mas nestas coisa dos petiscos havia sempre um ritual a cumprir:

Malta! - dizia o Furriel Gabriel - eu tenho aqui umas coisas que recebi hoje lá da "Santa terrinha" e agora desenrrascem-se:

- Entre todos organizem-se, e haja quem compre as cervejas:

- Já sei também que compete ao Foz (1) ir "comprar" as galinhas ao aldeamento, e da forma tão característica que ele tem, e que é de "bastante agrado dos nativos".
- Quanto ao resto já sabem - logo à noite, e no sítio do costume, há petisco.
Eram assim passadas as noites nos "intervalos entre combates", e que regra geral acabavam sempre encharcadas em "Laurentinas e 2M" e que não ajudavam em nada a conter a revolta. Outros, os mais conservadores, entoavam até à exaustão a canção de Paco Bandeira tão em voga na altura, e que dizia:
Lá longe, onde o sol castiga mais,
não há suspiros nem ais,
há coragem e valor...
Perante tanta lamúria, meio desconjuntada pelo álccol mas que não lhes toldava as ideias, ouvia-se quase em surdina por entre o som das latas de cerveja que se abriam em catadupa:
- Epá, essa canção tem cá uma letra mais reaccionária e patrioteira que até enjoa!
- Cada um chora ao som da música que tem à mão (resposta imediata de quem se sentia atingido).
Era nesta diversidade de opiniões e na partilha de cumplicidades que decorriam os nossos petiscos, quando não eram interrompidos quando chegava a "hora Maconde":
- Morteirada...morteirada - gritava alguém que passava a correr pelo local e batia com tanta violência na porta:
- Todos para os abrigos... os cabrões dos "Turras" estão a atacar Nangade e as putas das granadas estão a cair mesmo dentro do aquartelamento (...)
Carlos Vardasca
21 de Novembro de 2007
(1) Alcunha do Soldado Condutor Eduardo da Silva Machado, que desde que regressámos de Moçambique até hoje, nunca mais deu "sinais de vida", e parece "vegetar pelas agruras da vida" e em parte incerta.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

...aquela giringonça não funcionou


(...) Chegou a uma altura em que as picadas eram intransitáveis devido ao constante rebentamento de minas anti-carro, e à destruição sistemática de viaturas militares, com a consequente perda de vidas que aquelas operações de reabastecimento implicavam. Tentando minimizar os efeitos destruidores das minas que eram colocadas nas picadas, uma "mente brilhante" lembrou-se de adaptar um Unimog (Pincha), comandado à distância, dotado de rodas em cimento colocadas à frente do mesmo, e que devido ao seu peso accionaria as minas que por ventura estivessem montadas na picada. Nos testes efectuados dentro do aquartelamento (Nangade) aquela giringonça funcionou lindamente, dado que o terreno era plano e os obstáculos não eram os mesmos com que iria enfrentar na picada. Para as crianças e adultos dos aldeamentos, cada vez que se procedia aos testes daquele "rebenta minas" a risada era total e sempre acompanhada de comentários:

- "Ai ué! - não admira branco fazer avião voar; meter sardinha dentro de um lato fechada, agora fazer os caro andar sozinho... chi, fazer mesmo cabeço de preto andar mesmo nos roda"!

- "Quando FRELIMO ver isto nos mato vai rir maningue e vai achar branco maluco mesmo..."

Aquela engenhoca, na primeira coluna em que participou, não chegou a transpor a primeira curva que se situava ao quilómetro 3, e teve que ser transportada de volta para o aquartelamento. A ideia era de facto muito interessante e com alguma originalidade, mas nas circunstâncias em que tinha que actuar e à irregularidade do terreno, tornou-se um impeçilho à movimentação das colunas militares e teve que ser retirada de "circulação". Sem utilidade, e encostado a um canto da oficina, era agora motivo de galhofa para as crianças nativas, que dali copiaram o modelo para um dos seus brinquedos que construiram em arame, e que com um pequeno pau o empurravam de olhos fechados dizendo em jeito de chacota para os colegas:
- Sai dos frente pá; - olha que este caro não ter olho para ver os picada! (...)
Carlos Vardasca
09 de Novembro de 2007

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Ainda transporto alguma fragilidade nas minhas emoções...


(...) Todos nós, os que tivemos a sorte de regressar das zonas de conflito, ainda hoje sentimos (uns menos outros mais) algumas fragilidades que tentam desmoronar as nossas emoções. No meu caso, e sentindo-me um privilegiado se comparado com outras situações bem mais dramáticas, ainda hoje, sinto alguma fragilidade emocional quando confrontado com situações que me levam a recordar alguns factos vividos no teatro de operações. Após ter regressado de Moçambique, eram os foguetes das festas das aldeias que me transtornavam, pois recordavam-me o rebentamento das granadas de morteiro quando a FRELIMO atacava os nossos aquartelamentos e as colunas de reabastecimento. Felizmente, e com o passar dos tempos, esse tormento desvaneceu-se, e é com alguma naturalidade que assisto aos fogos de artifício. Embora já liberto daquele tormento, actualmente, ainda sinto uma pequena preocupação do foro emocional e que está relacionado com o som característico dos helicópteros Alouette III. Diáriamente, quando me desloco ao Parque José Afonso na Baixa da Banheira para aí fazer o meu circuito de manutenção, já por várias vezes me confronto com aquele barulho vindo daquelas aéronaves que ocasionalmente sobrevoam o parque vindas da Base Aérea do Montijo, e, acto instantâneo, as lágrimas correm-me pela minha face quase que em cascata como se quisessem inundar as minhas emoções.

Durante a minha permanência na guerra colonial (1971-1973), sempre tive uma relação de proximidade com os Alouette III, devido às colunas militares de reabastecimento em que participei, operações militares essas em que na generalidade ocorriam confrontos com a FRELIMO, resultando daí situações bem dramáticas para quem nelas participava.

Eram os Alouette III que se deslocavam com bastante frequência às picadas ou aos aquartelamentos, para evacuar os mortos e feridos resultantes dos ataques e das emboscadas de que eramos alvo, e aquele som muito característico mas tremendamente ensurdecedor a que fomos sujeitos e que estava sempre associado a momentos de tragédia, ficou gravado em muitos de nós, ao ponto de, passados que são 34 anos do meu regresso, ainda hoje me tolda a resistência e me fragiliza emocionalmente, fazendo com que as lágrimas se soltem à sua passagem, como se fosse uma criança (...)

Carlos Vardasca
06 de Novembro de 2007
Na foto: Evacuação de um soldado morto numa emboscada da FRELIMO, efectuada na picada entre Pundanhar e Palma, em 10 de Maio de 1971.

Nem me apetecia olhar para baixo ...


(...) Marcava no calendário o dia 03 de Novembro de 1972, quando o Nord Atlas se fez à pista do Aquartelamento de Nangade, para dar início à rendição de parte da Companhia de Caçadores 3309 para o Aquartelamento de Balama. A impaciência reinava na pista, pois todos nós estávamos bastante ansiosos por abandonar Nangade, e deixar para trás momentos de angústia e sofrimento. Dentro de cada um de nós partia também a imagem dos nossos companheiros que tombaram em combate, e a certeza de que a pátria jamais lhes seria grata. Eu fazia parte desse 1º escalão de rendição, dado que o resto da Companhia seguiria só no dia 13 do mesmo mês de coluna militar até Palma, Aquartelamento junto à costa banhada pelo Índico, para embarcar na Corveta "General Pereira D'Eça" no dia 21 de Novembro de 1972 rumo a Porto Amélia (Pemba). Junto à pista de terra batida e encostado a uma árvore, de mochila às costas e a G3 ao ombro como que a descansar "de sonos bastas vezes interrompidos", eu sentia-me como que "uma criança que sorri de felicidade", por ver tão perto a minha retirada daquele planalto de má memória. Finalmente o Nord Atlas estacionara na pista envolto numa poeira avermelhada, e a ansiedade apoderou-se de todos nós, desejando correr de imediato na sua direcção, penetrar na sua fuzelagem e de lá não sair mais. Antes do embarque vieram-me à memória imagens da minha infância, que me recordaram a imensa alegria quando me aproximava de um carroçel numa qualquer feira, desejoso de montar um dos seus cavalos de pau. Ali estava eu; antes criança e agora feito soldado, impaciente por entrar naquele avião como se fora um brinquedo, "e nele me aconchegar e ali adormecer".

Quando o Nord Atlas levantou voo e já sobrevoava a densa mata e o Aquartelamento de Nangade ia ficando mais longe, instintivamente, e contrariando a minha vontade pois prometera não fazer, olhei por uma das janelas e, num gesto simples e em jeito de homenagem, acenei na direcção do aglomerado de palhotas de telhado de colmo que ladeavam o Aquartelamento, parecendo ver nos seus alpendres alguns amigos da população com quem convivi e ali deixei, alguns deles (é a primeira vez que o digo públicamente) há muito que sabia lutarem em trincheiras opostas (...)
Carlos Vardasca
03 de Novembro de 2007
Foto 1: Embarque da C.CAÇ. 3309 no Nord Atlas em Nangade.
Foto 2: Aquartelamento e aldeamentos de Nangade.