quarta-feira, 21 de novembro de 2007

"...No aconchego do aquartelamento"


(...) Entre nós, e apesar da instabilidade vivida em função dos perigos vividos no nosso dia a dia, ainda sobravam alguns momentos para fortificar o espírito de camaradagem e solidificar a nossa amizade. Quando sabiamos que camaradas nossos estavam para chegar de uma operação (coluna de reabastecimento ou de uma acção de patrulhamento), havia sempre alguém (que tinha ficado no aquartelamento) que se lembrava de atestar os chuveiros (bidões vazios de combustível dos helicópteros) para que, quem acabado de chegar, tivesse a oportunidade de se "libertar das angústias embebidas em suores e de se sacudir do pó barrento que lhes invadia as entranhas". À noite, e sempre que o Furriel Gabriel tivesse recebido as suas "famosas encomendas da Metrópole", a malta reunia na oficina mecânica para aí conviver e soltar algumas raivas acumuladas. Mas nestas coisa dos petiscos havia sempre um ritual a cumprir:

Malta! - dizia o Furriel Gabriel - eu tenho aqui umas coisas que recebi hoje lá da "Santa terrinha" e agora desenrrascem-se:

- Entre todos organizem-se, e haja quem compre as cervejas:

- Já sei também que compete ao Foz (1) ir "comprar" as galinhas ao aldeamento, e da forma tão característica que ele tem, e que é de "bastante agrado dos nativos".
- Quanto ao resto já sabem - logo à noite, e no sítio do costume, há petisco.
Eram assim passadas as noites nos "intervalos entre combates", e que regra geral acabavam sempre encharcadas em "Laurentinas e 2M" e que não ajudavam em nada a conter a revolta. Outros, os mais conservadores, entoavam até à exaustão a canção de Paco Bandeira tão em voga na altura, e que dizia:
Lá longe, onde o sol castiga mais,
não há suspiros nem ais,
há coragem e valor...
Perante tanta lamúria, meio desconjuntada pelo álccol mas que não lhes toldava as ideias, ouvia-se quase em surdina por entre o som das latas de cerveja que se abriam em catadupa:
- Epá, essa canção tem cá uma letra mais reaccionária e patrioteira que até enjoa!
- Cada um chora ao som da música que tem à mão (resposta imediata de quem se sentia atingido).
Era nesta diversidade de opiniões e na partilha de cumplicidades que decorriam os nossos petiscos, quando não eram interrompidos quando chegava a "hora Maconde":
- Morteirada...morteirada - gritava alguém que passava a correr pelo local e batia com tanta violência na porta:
- Todos para os abrigos... os cabrões dos "Turras" estão a atacar Nangade e as putas das granadas estão a cair mesmo dentro do aquartelamento (...)
Carlos Vardasca
21 de Novembro de 2007
(1) Alcunha do Soldado Condutor Eduardo da Silva Machado, que desde que regressámos de Moçambique até hoje, nunca mais deu "sinais de vida", e parece "vegetar pelas agruras da vida" e em parte incerta.

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