sábado, 31 de julho de 2010

"O outro lado oculto da guerra"

(...) Lucas Likwalu[1] e Florinda Nakulola[2], pais de Raimundo, licenciaram-se ambos muito cedo em Antropologia no ISCSPU[3] em Lisboa, tendo partido para Moçambique depois de perderem algum tempo à procura de colocação que mais tarde vieram a perceber da sua impossibilidade, devido à sua participação em actividades na luta estudantil a favor da descolonização, actividade que a PIDE acompanhou desde o princípio e que lhes valeu alguns meses de prisão, encarregando-se posteriormente de lhes vedar o acesso a qualquer tipo de emprego.
Regressados a Moçambique e integrados voluntariamente numa das estruturas da FRELIMO, foram destacados em 1963 para o norte, para a Província de Cabo Delgado e, em Nangade, ajudaram a organizar uma das células que iria dar apoio ao início da Luta Armada de Libertação Nacional em Moçambique em 25 de Setembro de 1964, cuja missão era manter aquela célula em permanente contacto com os seus combatentes no mato, informando-os de todas as movimentações militares que vieram a desenvolver-se em Nangade.
Com o nascimento de Raimundo e com o recrudescimento da actividade guerrilheira e devido ao isolamento a que se dedicaram voluntariamente em favor da libertação de Moçambique, já tinham pensado enviar Raimundo para casa dos avós em Lourenço Marques, pois tomaram consciência de que estavam a comprometer o futuro do filho em termos educacionais mas, diziam, talvez valer a pena por se tratar de uma causa que diziam ser patriótica e que previam estar concluída para breve com a resolução do fim do conflito colonial.
Viviam totalmente integrados nos modos de vida e costumes da comunidade da etnia Maconde que os protegia, trabalhando Lucas como carpinteiro e Florinda na agricultura nas machambas próximas do aquartelamento, enquanto que Raimundo, no intervalo das aulas, se deslocava à zona militar para recolher as roupas dos soldados para a mãe lavar, contribuindo daquela forma para o desafogo do orçamento familiar.
A noite estava bastante quente e por cima dos telhados de colmo das palhotas brilhava uma cor de fogo que iluminava os batuques no aldeamento Maconde (...)
[1] Peixe magro em dialecto Maconde.
[2] Vou olhar por ti, em dialecto Maconde.
[3] Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas, actualmente Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).

(...) Já a noite caminhava por entre recordações e lembranças fustigadas pela distância; pelo olhar de uma pequena fotografia meio amarrotada de um familiar bem distante e a embriaguez de quem não esquecia uma lua de mel interrompida por um papel timbrado feito nota oficiosa, quando ao longe várias rajadas de metralhadora soaram dentro do abrigo, fazendo com que a maioria dos presentes corresse de imediato para os postos de defesa, seguindo-se um ensurdecedor matraquear de disparos tanto dos quatro obuses e das antiaéreas dispostas em redor do aquartelamento, assim como dos postos avançados de defesa que faziam disparar a suas armas varrendo todo o matagal junto ao arame farpado, enquanto aquelas armas pesadas fustigavam o vale e as escarpas do planalto situado defronte de Nangade.
Não se ouviu, de facto, qualquer disparo de granadas de morteiro vindas do planalto bastante arborizado de onde era costume a FRELIMO atacar o aquartelamento, para justificar aquela reacção e, de madrugada, a notícia do que realmente tinha acontecido já se espalhava por toda a zona militar:
- Foram uns cabrões dos turras que tentaram entrar esta noite no arame farpado junto ao aldeamento dos Macondes, e parece que os nossos sentinelas abateram dois; um ainda conseguiu fugir mesmo bastante ferido:
- Pelos vestígios de sangue deixado no capim e junto ao arame farpado também não deve ter ido muito longe
- dizia um dos soldados da CCS que estivera de reforço durante a noite no posto avançado próximo do local do tiroteio.
A curiosidade fez com que Braz interferisse na conversa, interrogando o mesmo soldado sobre o ocorrido:
- Mas naquele posto do aldeamento Maconde não era hábito os cipaios fazerem lá o reforço da noite? - perguntou, denotando alguma preocupação sobre as circunstâncias do incidente.
- Era! - Respondeu o soldado bastante nervoso, continuando a contar o ocorrido:
Como o nosso comandante já andava desconfiado que eles permitiam a entrada dos turras durante a noite, substitui-os de surpresa por soldados da nossa tropa:
- Esta noite foram apanhados três na “ratoeira”; - Lerparam dois e houve um turra que conseguiu fugir para dentro do aldeamento; - andam agora as nossas tropas a “vasculhar” todo o aldeamento para ver se o encontram.
Um forte sentimento de perda penetrava bem fundo no subconsciente de Braz que decidiu tentar saber o que de facto ocorrera; se Lucas Likwalu estava envolvido no tiroteio e se alguma coisa de grave lhe acontecera.
Naquela noite Lucas regressava de mais uma das suas missões na mata, sendo surpreendido pelos disparos vindos do posto de observação próximo da abertura no arame farpado, por onde era hábito introduzir-se no aldeamento.
Gravemente ferido ainda conseguiu, a muito custo, chegar à sua casa e receber os primeiros socorros e, por estar no estado em que a tropa o encontrou depois de algumas buscas ao aldeamento, fizeram-lhe os curativos necessários e deixaram-no ficar na palhota não optando pela sua prisão, sabendo que por muito resistente que fosse a sua vida estava por um fio.
Quando Braz chegou próximo da palhota de Lucas já a mesma se encontrava rodeada de militares, enquanto que do interior se ouviam choros de angústia que Florinda Nakulola exteriorizava, misturados com injúrias em dialecto Maconde, disparadas em todas as direcções mas que visavam essencialmente a tropa, que tinha ferido gravemente o seu marido, tão inesperadamente e daquela forma tão trágica.
Justificando querer ir buscar alguma roupa que Raimundo lhe teria lavado, Braz teve a permissão para entrar em casa; até porque quem fazia a guarda à palhota eram dois soldados seus conhecidos que lhe avisaram:
- Entra mas despacha-te; porque parece que estão para chegar dois gajos da PIDE para reconhecerem a identidade do ferido e pode ser muito chato eles encontrarem-te aí dentro.
- Eu não me demoro
— tranquilizou Braz.
O corpo de Lucas permanecia deitado numa esteira, onde agonizava, agasalhado por uma manta escura, bordada com motivos tradicionais Macondes, com os olhos fixos no amigo que acabava de entrar.
Com a moral tremendamente desfigurada que o tornavam irreconhecível e consciente que a vida se desfalecia sem que alguém o pudesse socorrer, ainda esboçou algumas palavras que dirigiu à mulher e ao filho num dialecto que Braz não entendeu, virando-se inesperadamente para o amigo e, a muito custo, antes que sucumbisse, ainda conseguiu articular os lábios e soletrar aquela frase que jamais esquecera e a ela se referia sempre que se encontravam:
- Adeus “Fardado de Lama”; ― ao que Braz respondeu extremamente comovido e, em jeito de homenagem, pincelando a frase do simbolismo que se espelhava no seu semblante que traduzia aquele momento prenhe de emocionalidade:
- “Vai!... - vai guerrilheiro”:
- “Parte...! - parte para a densa mata e descansa aí tranquilamente o teu sono eterno, que a luta que não pudeste acabar fica em boas mãos; ― Eles, os teus companheiros de luta de certeza vão dar conta do recado”.
Consciente que Lucas não acabara de ouvir a sua frase, Braz repetiu-a sabendo-o já defunto, virando-se para a esposa dizendo ao seu ouvido:
- Não desesperes porque a independência de Moçambique já não tarda :
- Ele vai ter a justa homenagem que bem a merece.
Florinda
e seu filho Raimundo, sentados ao seu lado choravam lágrimas que pareciam de fogo, e os seus olhos humedecidos disparavam tristezas e angústias cuja dor se confundia com o ódio.
Depois de cumpridos os rituais Macondes; apesar de saberem não ser as suas origens mas querendo prestar-lhe a justa homenagem como um dos seus combatentes, o funeral de Lucas Likwalu realizou-se no cemitério junto ao aldeamento daquela etnia, com a presença de grande número de elementos da população nativa e de alguns militares. Braz também fez questão de comparecer acompanhado do Foz e do Nabais, sem que antes tivessem sido intimados a justificarem-se perante os dois agentes da PIDE, que os questionou sobre o motivo da sua presença ali, aos quais responderam que estavam ali por mera curiosidade; agentes que não arredaram pé, fazendo-se acompanhar por um elemento da população que lhes traduzia tudo o que era dito, certificando-se do enterro do corpo e garantirem, com a sua presença, que durante a cerimónia não ocorreriam quaisqueres manifestações de cariz independentista (...).

In: "Fardados de Lama" (Romance). Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009. Páginas 230, 231, 232 e 233.

Foto 1: O Braz na pista de aterragem de Nangade, num dos dias em que o Nord Atlas ali aterrou para abastecimento e levar forças de Paraquedistas para uma intervenção de ataque às Bases da FRELIMO nas redondezas.
Foto 2: Vista aérea do Aquartelamento de Nangade e aldeamentos da várias etnias (Maconde e Macua) que o ladeavam.
Foto 3: Bandeira da FRELIMO encontrada junto de uns panfletos de propaganda encontrados na mata próximo do Aquartelamento de Pundanhar-

terça-feira, 20 de julho de 2010

Em homenagem ao "Didiá" e ao "Básico" falecidos em combate em 20 de Julho de 1971

(...) Em 20 de Julho de 1971, quando uma viatura Unimog 404, a gasolina, se dirigia à machamba, junto ao rio Litinguinha para levar elementos da população de Nangade aos trabalhos agrícolas, com três militares, accionou um engenho explosivo altamente reforçado, que causou a morte de dois militares da Companhia de Caçadores 3309, seis mortos civis, cinco graves e dois ligeiros, civis, além de um ferido ligeiro (Furriel).
A viatura ficou totalmente destruída. Mais tarde vieram a falecer dois feridos graves civis (...)
In: Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade. Duodécimo fascículo (mês de Julho de 1971) página 2.

Albino Dias de Sousa. Soldado dos Serviços Básicos NM 07013070. Companhia de Caçadores 3309

(...) Depois de ter passado toda a noite de reforço num dos postos de defesa do aquartelamento de Nangade, Albino Dias de Sousa dirigia-se para a sua caserna para descansar, quando o Victor Manuel da Silva (1º Cabo condutor) que seguia num Unimog 404 com destino ao posto avançado das “Águas” o convidou para lhe fazer companhia. Sempre prestável como era sua característica, o Sousa subiu de imediato para a viatura, que tinha como missão levar elementos da população para os trabalhos agrícolas na machamba situada no vale do Rio Litinguinha, junto ao posto avançado de captação de água que era fornecida ao aquartelamento de Nangade.
A meio do trajecto da picada de acesso ao posto avançado cuja extensão era de cerca de três quilómetros, dá-se uma violenta explosão. O Unimog 404 tinha accionado uma mina anti-carro fortemente reforçada, e vitimou aqueles dois militares da Companhia de Caçadores 3309 no dia 20 de Julho de 1971, assim como 8 elementos da população, ferindo gravemente outros 3 e dois feridos ligeiros onde se incluía um Furriel adido à CCS do Batalhão de Artilharia 2918.
Albino Dias de Sousa nasceu em 17 de Fevereiro de 1949 na Freguesia de Lavra, concelho de Matosinhos. Era filho de Júlio Alves de Sousa e de Maria Dias da Silva. Na altura do seu falecimento era casado com Ana de Sousa Rosas e morava na Rua Caminho Novo, casa nº 30, Pampelido, Lavra. Ainda muito criança e apenas com 10 anos de idade, foi trabalhar como servente na construção da Petrogal em Matosinhos. Quando ingressou no serviço militar era operário da construção civil com a profissão de estucador, e foi incorporado em 20 de Julho de 1970 no Regimento de Infantaria (...)
In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". Moçambique 1971-1973. História da Companhia de Caçadores 3309, páginas 308 e 310. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009.

Victor Manuel da Silva. 1º Cabo Condutor Auto Rodas NM 11694170. Companhia de Caçadores 3309

(...) No dia 20 de Julho de 1971, Victor Manuel da Silva e o Albino Dias de Sousa ambos da Companhia de Caçadores 3309 seguiam numa viatura Unimog 404, a gasolina, que se dirigia à Machamba, junto ao Rio Litinguinha (no Vale de Nangade) para levar elementos da população de Nangade aos trabalhos agrícolas. Aos cerca de 2 quilómetros do trajecto a viatura accionou um engenho explosivo altamente reforçado, ficando a viatura totalmente destruída e que causou de imediato a morte do Sousa.
O Victor, que fora cuspido para fora da viatura indo cair na mata sem qualquer ferimento, veio a falecer de seguida, dado que o Unimog 404 onde seguia, devido ao impacto da explosão, foi ao ar e, ao cair, caiu em cima dele o que provocou a sua morte. O mesmo acidente provocou ferimentos ligeiros num Furriel que estava adido ao Batalhão de Artilharia 2918 e que participava na construção da Estação de Tratamento de Águas, e fez também cinco feridos graves e dois ligeiros assim como a morte de mais seis civis. Mais tarde vieram a falecer dois dos feridos graves.
Victor Manuel da Silva nasceu em 10 de Maio de 1949 na freguesia do Lumiar em Lisboa, e era filho de António Patronilo da Silva (Estivador) e de Natalina Augusta da Silva (Vendedeira). Morava no Bairro Dr. Mário Madeira Lote 24 nº 188 na Pontinha. Ainda jovem foi estafeta num escritório em Lisboa e mais tarde, até ingressar no serviço militar, foi vendedor de roupas em mercados e feiras onde ajudava a mãe nessa actividade. Foi incorporado em 26 de Janeiro de 1970 no Grupo de Companhias do Trem Auto (GCTA) em Lisboa (...)


In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas". Moçambique 1971-1973. História da Companhia de Caçadores 3309, páginas 317 e 318. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009.

Foto 1: Albino Dias de Sousa (em tronco nu) na companhia do Soldado Condutor Auto Rodas NM 15189470, Eduardo da Silva Machado (com paradeiro desconhecido) em cima de uma Berliet minada, e do Furriel Miliciano NM 11260769, Domingos Manuel Gabriel da Silva, juntos da oficina da C.CAÇ. 3309 no Aquartelamento de Nangade. 1971
Foto 2: Albino Dias de Sousa (fazendo a continência) numa brincadeira com o 1º Cabo de Transmissões NM 16945270, Eduardo Manuel da Silva Trinta (falecido em 2005) junto da secretaria da C.CAÇ. 3309 em Nangade. 14 de Junho de 1971.
Foto 3: Victor Manuel da Silva (a olhar para o fotógrafo) junto do corpo do 1º Cabo Pedrosa da CCS do BART 2819, abatido a tiro numa emboscada desencadeada pela FRELIMO próximo Aquartelamento de Nangade em 10 de Maio de 1971.
Foto 4: Victor Manuel da Silva, junto de um bombardeiro T6 que se abastecia de combustível em Nangade, depois de participar numa operação de bombardeamento de bases da FRELIMO próximas do Lago Lidede. 1971.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Quem são os Macondes?

Como seria compreensível, para a maioria de nós, o contacto com as populações autóctones só passou a ser uma realidade devido ao eclodir da Guerra Colonial, apresentando-se-nos através dos manuais do regime Marcelista aquelas populações e a sua revolta contra um sistema colonial que os oprimia como potenciais inimigos, cuja expressão se traduzia no apoio à formação de Movimentos de Libertação do jugo colonial.
Foi o caso da FRELIMO em Moçambique com quem nós ex-combatentes da Companhia de Caçadores 3309 viemos a tomar contacto mais directo, cujos guerrilheiros lutavam contra uma ideia de “Império”, pela libertação e independência do seu povo, conflito que contrastava com a evolução das sociedades democráticas que apoiavam o desenvolvimento e a libertação dos povos sujeitos a regimes coloniais, sendo Portugal condenado nas instâncias internacionais, nomeadamente na Organização das Nações Unidas (ONU) devido à sua política colonial.
A visão colonial seguida por Portugal nas colónias africanas impediu que, devido a uma lógica imposta pelo regime Marcelista, que a maioria de nós tivéssemos conhecimento da verdadeira expressão cultural daqueles povos, sendo uma das preocupações do exército ocupante controlar e acantonar as populações junto dos aquartelamentos militares para que mais facilmente no terreno, se pudesse dar combate ao seu exército de libertação, a FRELIMO, e evitar o seu contacto com as populações impedindo que estas pudessem prestar apoio aos seus guerrilheiros.
Os textos que se transcrevem na íntegra e que foram extraídos de obras editadas sobre as duas etnias mais representativas da zona geograficamente denominada por Planalto dos Macondes (os Macondes e os Macuas) e onde foi o centro da actividade militar da Companhia de Caçadores 3309, são a expressão mais cabal de que para além do epíteto de “terroristas” com que eram classificados pela potência colonial devido à geo-estratégia política determinada pela “Guerra Fria”, existia naqueles povos toda uma riqueza de vivência e de costumes sociais enriquecidos por uma diversidade cultural por nós desconhecida e que aqui, em jeito de uma pequena homenagem, se transcreve algumas passagens das obras que são referenciadas na bibliografia. (1)
Carlos Vardasca
16 de Julho de 2010
(1) In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas. Moçambique 1971-1973. História da Companhia de Caçadores 3309", página 53. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009.

(...) A região ocupada pelos Macondes de Moçambique é uma área de cerca de 40.000 km2, onde, além deste grupo étnico, se encontram outros povos. A chamada circunscrição dos Macondes cobre uma área de 22.200 km2, havendo também elementos deste povo em várias circunscrições vizinhas.
Os Macondes moçambicanos encontram-se distribuídos nesta área de maneira desigual e devem perfazer na sua totalidade cerca de 130.000 habitantes segundo estimativa de 1962.
A densidade da população com base na mesma estimativa variava muito entre o planalto de Mueda e as baixas de Nairoto e Negomano. Enquanto nestas últimas a densidade era de 1, ou inferior a 1 habitante por km2, em certas partes do planalto é cerca de 30.
O planalto, habitado exclusivamente por Macondes, é o centro de cultura da área que, na sua periferia, se vai tornando marginal pelos contactos que estabelece com outras etnias.
Antes da desarticulação dos agregados familiares imposta pela política colonial, que privilegiava a concentração das populações junto dos aquartelamentos militares a pretexto da sua defesa mas que o principal objectivo era o seu controlo para que não pudessem prestar auxilio aos guerrilheiros da FRELIMO, cada aldeia era uma unidade independente que obedecia ao seu chefe, embora esta ouvisse a opinião dos chefes de família do seu grupo.
As aldeias nesse período eram dotadas de mobilidade (o que na verdade inspirou a guerrilha) mudando-se segundo a vontade do chefe para qualquer outro lugar, longe ou perto da antiga povoação conforme os interesses do grupo o que se veio a alterar com a instituição de Administrações que estabeleceu regulados com áreas definidas.
A distribuição das aldeias dependia muito das áreas. Nas baixas ou no centro do planalto as aldeias encontravam-se mais afastadas umas das outras, perdidas no isolamento do mato.
No bordo do planalto, especialmente na região de Miteda e Muatide, a concentração era muito maior. (2)
(2) In: "Os Macondes de Moçambique", de Jorge Dias e Margot Dias, Volume III, Vida Social e Ritual, páginas 11, 12 e 212. Edição da Junta de Investigação do Ultramar. Centro de Estudos de Antropologia Cultural. Lisboa 1970.
Quem são os Macondes
(...) Os Macondes são um povo da África Oriental, que habita 3 planaltos do norte de
Moçambique e sul da Tanzânia. Têm como actividades principais, a agricultura e a escultura. Sendo apreciados mundialmente pela suas belas máscaras e esculturas de madeira, que reflectem a sua estética e cultura ricas.
A maioria dos cerca de 1.260.000 Macondes mantêm uma religião tradicional embora parte da população seja hoje cristã. Os Macondes são um povo Bantu provavelmente originário de uma zona a sul do Lago Niassa – fronteira entre Moçambique, Malawi e Tanzânia. A hipótese desta origem foi apurada a partir da análise de fontes escritas e orais, e é ainda reforçada por semelhanças culturais com o povo Chewa, que ainda hoje habita uma vasta zona a sul e sudoeste do Lago Niassa, no Malawi e na Zâmbia. Os Macondes teriam assim pertencido, em tempos remotos, a uma grande federação Marawe, que teria iniciado a sua migração para nordeste, ao longo do Vale do rio Lugenda, em tempos bastante longínquos.
Mantiveram-se muito isolados até tarde, pois só no século XX é que os portugueses, que na altura colonizavam Moçambique, conseguiram controlar as zonas por eles habitadas. Isto deveu-se à sua localização, protegida por zonas íngremes de difícil acesso e por florestas densas. O facto de os Macondes terem ganho uma imagem de violentos e irrascíveis, também ajudou ao seu isolamento. Desta forma, conseguiram manter uma forte coesão cultural, que apesar de ter diminuído nos anos que se seguiram à chegada dos portugueses, ainda assim conseguiu resistir em vários aspectos. Também a religião tradicional se manteve dominante, tendo as conversões ao cristianismo começado apenas por volta de 1930 (...)
[3]

Foto 1: Elementos da etnia Maconde num postal de 1952. Instituto de Investigação Científica Tropical de Lisboa.
Foto 2: Família Maconde. Nangade 1971 (foto do autor).

In: "Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas. Moçambique 1971-1973. História da Companhia de Caçadores 3309". Páginas 55,56 e 57. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

António José Pereira, falecido em combate em 05 de Julho de 1972

É sempre bom recordarmos os amigos. O António José Pereira(1) era um deles, entre tantos, dos que connosco conviveram durante o conflito colonial, e de quem recordamos com aquela saudade que une os ex-combatentes daquela Guerra que vitimou "um pedaço da nossa juventude".
Integrado numa pequena coluna de reabastecimento que se dirigia de Nangade para Muidine em 05 de Julho de 1972, quando ao quilómetro 9 a Berliet onde seguia accionou duas minas anti-carro que a destruiu totalmente, causando a sua morte e cerca de 14 feridos com alguma gravidade, todos da Companhia de Caçadores 3309.
Para melhor testemunhar o ocorrido naquela madrugada de 05 de Julho de 1972, aqui vos deixo, em jeito de homenagem, um pequeno texto enviado pelo Cardoso(2) que, em jeito de homenagem, nos descreve o que aconteceu naquele dia trágico para a Companhia de Caçadores 3309.



(...) Numa madrugada solarenga, partimos de Nangade com destino a Muidine, para mais uma operação militar rotineira, em duas viaturas, uma Berliet à frente e uma Mercedes atrás.
Eu era enfermeiro da viagem; - Ia na viatura detrás com alguns soldados e o capitão "CHECA" (3), mais conhecido por capitão "pistolas".
Tínhamos andado poucos quilómetros, e ainda estávamos próximos de Nangade, quando num ápice se deu um violento rebentamento. A viatura onde eu ia circulava a cerca de duzentos metros da viatura da frente, por motivos de segurança e pelo pó que fazia.
O cenário que me ficou na retina nunca mais o vou esquecer: triste, desolador, "pó era mato", bocados da viatura voavam a bastantes metros de altura e de seguida fez-se silêncio por alguns segundos.
Fui ver mais de perto, aproximei-me da viatura minada, e o capitão "pistolas" verificava o terreno, confirmando que ainda estavam duas minas anti-carro por rebentar.
Tinham rebentado duas à frente do lado esquerdo e as outras duas minas eram supostamente para rebentar no rodado detrás, do lado esquerdo também, tendo em conta a sua colocação.
Mesmo assim, ficou um buracão na picada e a Berliet toda danificada, como podem verificar pela foto. Havia muitos feridos, alguns sentados na berma da picada, olhavam-me nos olhos mas não falavam, não sabiam onde estavam nem o que faziam, estavam atordoados com o rebentamento.
Dirigi-me de seguida para o lado direito da viatura, onde se encontrava o "Alentejano" (4), deitado ao comprido na valeta da picada, com o cinturão das munições da metralhadora à cinta. Tinha a cabeça partida e os miolos inteirinhos no chão, sendo o único morto confirmado no local.
Evacuei 14 ou 15 militares na viatura para Nangade, entre os quais o Portugal (5), que tive alguma dificuldade em reconhecer devido ao estado em que se encontrava, pois tinha a cara toda preta. Todos estes feridos bem como o falecido "Alentejano" foram depois evacuados para o hospital de Mueda (...)

Do amigo Cardoso
05 de Julho de 2010

(1) António José Pereira, 1º Cabo Atirador NM 11934670 da Companhia de Caçadores 3309
(2) Manuel Inácio de Aguiar P. Cardoso, 1º Cabo Auxiliar Enfermeiro NM 08648170 da Companhia de Caçadores 3309.
(3) Gabriel Monteiro Magno de Barros, Capitão do Quadro Especial de Oficiais da Companhia de Artilharia 3506 que foi render a C.CAÇ. 3309 ao Aquartelamento de Tartibo (falecido em 28 de Abril de 1992).
(4) Alcunha de António José Pereira.
(5) Portugal Henrique Barreto, 1º Cabo Atirador NM 13303970 da Companhia de Caçadores 3309.
Foto 1: O "Alentejano" na companhia do Ruben, quando a Companhia de Caçadores 3309 aguardava embarque no BC 9 em Viana do castelo. 1970
Foto 2: O "Alentejano" numa operação da C.CAÇ. 3309 no rio Metumbué (Cabo Delgado, norte de Moçambique) e uma foto sua em destaque.
Foto 3: A Berliet minada onde faleceu o "Alentejano" e ficaram feridos 15 elementos da C.CAÇ. 3309, quando era retirada da picada por elementos da Companhia de Engenharia 2736 radicada em Nangade.