sexta-feira, 5 de março de 2010

“O fascínio e o drama dos calendários”

Nunca lhe demos grande importância. Pequenos pedaços de fino cartão, onde ocasionalmente nos certificávamos de determinada data quando planeávamos algo fora do normal, muitos deles embelezados numa das faces por beldades da Sétima Arte ou meros apontamentos publicitários, sobre a Pasta Medicinal Couto ou da marca de cigarros “Definitivos”.
Alguns destes calendários começaram a estranhar a importância que lhe passámos a dar, a partir do momento em que eles passaram a ser uma espécie de fronteira entre o curto tempo que ia passando e um outro muito longo que faltava percorrer.
Dava uma certa pena ver, quando a partir do dia do embarque no navio “Niassa”, alguns soldados começavam a fazer os primeiros riscos, e verificavam que ainda tinham muitos dias para riscar até ao seu regresso, que a partir dali se adivinhava bastante incerto.
Previa-se que, para além daquele calendário que começara a ser riscado em 24 de Janeiro do ano de 1971, ainda teriam que ser riscados outros dois, pois era o tempo de comissão que estava destinado à Companhia de Caçadores 3309 por terras de Moçambique.
E assim se iniciou a “odisseia de abater cada dia que passava” naqueles frágeis calendários.
Os primeiros dias a serem riscados foram os doze dias de viagem até Luanda, depois os nove até Lourenço Marques e de seguida os sete que demorámos até ao aquartelamento de Palma, já em Cabo Delgado, depois de o Niassa ter ancorado em Nacala e Porto Amélia.
Até aqui, cada risco efectuado nunca fora perturbado nem pelo salpicar das ondas que inundavam o convés da Corveta “João Coutinho”
[1]; pelo troar dos canhões, nem pelas inundações do rio Rovuma que nos encharcaram a alma e desafiaram a revolta.
Mas quando o dia 10 de Março de 1971 fora riscado, já ao Elias
[2] fora amputada uma perna nas margens do rio Metumbué por ter pisado uma mina anti-pessoal, e as águas intranquilas daqueles rios já inundavam o aquartelamento de Nova Torres, obrigando a que todos dormissem em cima das árvores durante algumas semanas.
Embora o tempo parecesse não se mexer, tal como as plantas dos cajueiros naqueles dias em que o vento parece não existir, o calendário já ia com cerca de sete meses de comissão quando é riscado o dia 14 de Julho, que assinala o ferimento grave em combate do Serrinha
[3], assim como o dia 20 de Julho de 1971, dia trágico, tal como todos os outros que se seguiriam, e que assinalou a morte em combate dos nossos companheiros Victor[4] e Sousa[5], e de mais oito civis que também seguiam naquele Unimog 404.
De cada vez que algum Grupo de Combate chegava do mato, havia sempre alguém que, apesar de extremamente exausto, corria apressado para a sua tenda e aí, como se fosse um guerreiro vitorioso, riscava no calendário aquele dia com a força que ainda lhe restava, ao fim de tantos dias em patrulha na mata densa, dizendo:
Porra! ― Deste já me safei, e os dias que ficaram para trás já ninguém me os rouba ― vincando bem o seu traço para que o tempo não o apagasse.
Aos nove meses de comissão e ainda o calendário tinha uma imensidão de meses por transpor, o primeiro de Outubro de 1971 foi o dia que fora riscado mais tardiamente, devido ao intenso ataque a que o aquartelamento de Tartibo foi sujeito por parte da FRELIMO, ficando o dia seguinte marcado pelo falecimento em combate do “Almada”
[6] devido aos ferimentos graves resultantes daquele ataque.
Nem todos os dias do calendário foram riscados na aparente tranquilidade das casernas, à luz de uma pequena lanterna enquanto se escrevia para alguém distante.
Alguns deles, tiveram antes o sabor amargo da pólvora que ficava depois dos ataques ao aquartelamento e das emboscadas violentas; das longas patrulhas que nunca mais tinham fim salpicadas por chuvas torrenciais que inundavam cada dia do calendário, ou dos rebentamentos das minas anti-carro que enegreciam o capim e não deixavam que mãos trémulas desenhassem aquele risco com a perfeição de outros dias mais tranquilos.
Já com o calendário de 1971 (que alguém trouxera de terras de Espanha) concluído e com o de 1972 a iniciar a sua ingrata tarefa, o dia 03 de Janeiro é logo assinalado por uma emboscada à coluna de reabastecimento onde o Braz
[7] é ferido em combate com um tiro numa mão, enquanto que em Julho e ao riscar-se o dia 05 daquele mês, tomba em combate o “Alentejano”[8] numa trágica cena que envolve o ferimento de mais treze soldados da Companhia de Caçadores 3309, alguns deles com alguma gravidade.
Houveram raros períodos que pareceram ter passado por nós sem que deles nos tivéssemos dado conta (embora o calendário prosseguisse diariamente a sua agonia de se deixar dilacerar) tal foi o efeito anestesiante das “Laurentinas” e das “2M”
[9], que mesmo depois de emborcadas até à exaustão (talvez para nos esquecermos do vergonhoso Massacre de Wiriyamo em 16 de Dezembro), ainda nos deixaram alguma força para riscarmos o último dia do mês de Dezembro de 1972 e comemorarmos a chegada de 1973 já no aquartelamento de Balama, cada vez mais para sul e com os olhos postos no aeroporto de Lisboa.
Aqueles calendários foram de facto os nossos companheiros inseparáveis, tanto nos momentos de rara felicidade assim como nos de intensa intranquilidade, mas coitados; ― nem sei como resistiram à angústia de serem dilacerados dia após dia, sem um queixume, sem nenhum lamento, talvez para não nos lembrarem dos dramas que fomos deixando para trás, ou para não perturbarem o fascínio que sobre nós exerciam por cada dia que lhe íamos riscando “indiferentes à sua dor”.
Cada dia riscado ia-nos aproximando cada vez mais de quem tínhamos deixado no Cais de Alcântara em Janeiro de 1971, e que agora já olhava o mês de Março de 1973 na esperança de abraçar um regresso há muito desejado.
Embora inertes, deixando-se utilizar para fins que gradualmente nos iam deixando rasgar uma imensidão de sorrisos a cada risco que lhes desferíamos, estes calendários cumpriram perfeitamente a sua missão, depois de também terem embarcado no Niassa e connosco terem partilhado os vários silêncios, e agora, bem aconchegados nos bolsos de cada um, regressavam também ao solo pátrio de onde (tal como nós) nunca deveriam ter partido.
Já com o Boeing 707 a sobrevoar Lisboa à noite e os olhares fixos nos limites iluminados da pista de aterragem, houve alguém que, parecendo livrar-se de um fardo que carregara durante cerca de vinte e seis meses, disse, evidenciando bem o seu sotaque transmontano:
― Carago! ― Afinal sempre regressámos ― ao mesmo tempo que olhava para o calendário (enquanto o Boeing já se fazia à pista) onde riscara o dia 04 de Março de 1973 ainda num dos recantos da cidade da Beira, onde lhe acrescentou apressadamente, mas com os olhos postos no dia 06 de Março (bem assinalado por uma seta pontiaguda) um afrancesado mas tranquilizador C’Est Fini.
Terminava assim, em 6 de Março de 1973, a tão ingrata e inglória “Odisseia trágico-terrestre” da Companhia de Caçadores 3309 por terras do Índico.

Carlos Vardasca
05 de Março de 2010

Nota: Os calendários da foto, fiéis protagonistas desta “Odisseia”, foram gentilmente cedidos pelo ex-Alferes Miliciano NM 10124269, Fernando Manuel Pêgo da Silva Barros, da Companhia de Caçadores 3309.
[1] Corveta da Marinha de Guerra Portuguesa que transportou a C.CAÇ. 3309 de Porto Amélia até Palma.
[2] Elias Riça, Soldado Atirador NM 71269470, do Grupo de Integração nº 55, incorporado na Companhia de Caçadores 3309.
[3] António Natálio Sequeira Serrinha, 1º Cabo Atirador NM 13382970.
[4] Victor Manuel da Silva, 1º Cabo Condutor Auto NM 11694170.
[5] Albino Dias de Sousa, Soldado dos Serviços Gerais NM07013070.
[6] Pedro Manuel Gaspar Augusto, 1º Cabo Atirador NM 13619570.
[7] Carlos Alberto Correia Braz Vardasca, Soldado Condutor Auto NM 15263570.
[8] António José Pereira, 1º Cabo Atirador NM 11934670.
[9] Marcas de cerveja de Moçambique.