segunda-feira, 26 de março de 2018

Texto original da entrevista enviada à Revista do Correio da Manhã


 
 
 

 
Embarquei no navio Niassa, atracado no Cais da Alcântara no dia 24 de Janeiro de 1971, com destino aos aquartelamentos de Nangade, Nova Torres, Tartibo e mais tarde a Muidine, todos no Norte de Moçambique (zona de Cabo Delgado), junto à fronteira com a Tanzânia na margem do rio Rovuma, incorporado na Companhia de Caçadores 3309 pertencente ao Batalhão de Caçadores 3834 formado em Chaves.
Depois de embarcados, fomos amontoados no navio em porões nauseabundos sem o mínimo de condições de higiene e sem o mínimo respeito pela condição humana, enquanto os oficiais e sargentos gozavam de algum conforto, dispondo de camarotes e sala de refeições como se tivessem num hotel, e o navio Niassa lá nos foi levando até ao porto de Luanda, até chegarmos ao cais de cidade de Lourenço Marques (Maputo) na costa oriental de África, onde nos foi entregue todo o armamento pessoal.
Depois de Lourenço Marques, passámos ao largo da cidade da Beira, Quelimane e Nacala até atracarmos no cais de Porto Amélia (Pemba), onde dormimos dois dias ao relento, no chão, debaixo do alpendre na zona portuária, acção bem demonstrativa do desprezo a que mais uma vez fomos votados, apesar da missão a que nos iriam obrigar cumprir.
No dia seguinte embarcámos na fragata da Marinha de Guerra “NRP João Coutinho”, instalados no convés, com o salpico das ondas a encharcarem os dolmens[1] onde nos protegíamos, enquanto os oficiais e sargentos se acomodavam no interior do navio, fragata esta que nos levou mais para norte, até ao aldeamento de Palma, onde chegámos no dia 23 de Fevereiro de 1971.
Seguimos depois em coluna militar para o aquartelamento de Nangade, onde chegámos a 25 de Fevereiro. Enquanto a minha Companhia foi enviada para o aquartelamento de Nova Torres (Tartibo) junto ao rio Rovuma, eu e outros companheiros ficámos em Nangade a prestar apoio às colunas de reabastecimento que se efectuavam regularmente entre os aquartelamentos de Nangade e Palma, num trajecto de cerca de cem quilómetros, percurso que por vezes demorávamos um ou dois dias a percorrer devido às emboscadas desencadeadas pela FRELIMO, e às minas anticarro que eram montadas na picada, cujos rebentamentos provocaram muitas baixas nas nossas tropas durante esse período.  
Foi durante a realização de uma destas operações, que ocorreu algo que julguei nunca mais regressar daquele conflito colonial de má memória, não só para mim, mas para a toda a nossa juventude que nele participou durante os quatorze anos de guerra, e que passo a descrever.
A coluna de reabastecimento tinha saído de Palma de manhã cedo, e ao quilómetro 12 as Berliet já seguiam no seu vagaroso e agonizante andamento, uma vez que na sua frente seguia a pé um grupo de combate com a missão de detectar algumas minas, enquanto na mata circundante se multiplicavam os sons da natureza que enfrentavam a nossa indiferença, com as longas lianas que pendiam sobre a picada a sacudirem-nos o corpo à nossa passagem.
Estava-se em plena época das chuvas e o calendário, depois de arrancada a folha anterior mostrava agora o terceiro dia do mês de Janeiro de 1972.
Chovia torrencialmente, e as cerca de quinze viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas) transpor mais uma vez a "Descida dos Paus"[2], tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem para o profundo desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos restantes soldados, alguns deles em tronco nu que deixavam a chuva inundar as toscas tatuagens que garantiam fidelidades eternas, cerrando troncos de árvores para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas preocupações e canseiras davam de cada vez que as colunas de reabastecimento por ali passavam durante a época das chuvas.
Embora com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi mais uma vez transposto e, depois de passarmos uma pequena ponte improvisada que já fora por várias vezes dinamitada pelos guerrilheiros da FRELIMO[3], a ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante ansiosas por chegar ao aquartelamento mais próximo (Pundanhar).
Eu seguia no "Rebenta Minas"[4] com mais quatro militares de um Grupo de Combate da Companhia de Caçadores de Mocímboa da Praia e da Companhia de Artilharia 2745 que estava estacionada em Nangade, que faziam a protecção à coluna de reabastecimento em conjunto com a Companhia de Caçadores 3472[5]. Na ânsia de sairmos rapidamente daquela zona e por não nos termos apercebido do atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros.
Quando nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento e antes que conseguíssemos imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões no rodado traseiro da viatura de três minas anticarro em simultâneo, accionadas à distância, que destruiu a Berliet imobilizando-a de imediato.
Logo após aquelas explosões, foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras por um grupo avaliado entre 6 a 10 guerrilheiros da FRELIMO[6] que, sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam intensamente na nossa direcção. Foi um momento de vida ou de morte e, no meu caso, embora já tivesse uma opinião formada sobre as causas daquele conflito colonial, tivemos que resistir, protegidos pelos destroços da viatura, respondendo ao ataque dos guerrilheiros apesar de alguns de nós já estarmos feridos, alguns dos ferimentos já contraídos em consequência dos rebentamentos das minas.
Não fora a nossa resistência e a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que as que ocorreram.
Naquela emboscada eu fui ferido em combate, atingido numa mão por um tiro de Kalashnikov[7], e quanto aos restantes ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos; um no peito, outro num ombro e um terceiro com ferimentos ligeiros numa perna, em resultado do rebentamento das minas anticarro, da emboscada e dos disparos daquelas armas automáticas.
Efectuado o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma enquanto eram prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma clareira na mata com o derrube de algumas árvores para facilitar o acesso do helicóptero e efectuar a evacuação, tendo todos nós sido transportados para o Hospital situado mais a sul, no Aquartelamento de Mueda, onde fiquei internado cerca de um mês.
Foram momentos dramáticos e, sinceramente, durante toda a minha existência e desde o incêndio da Fragata D. Fernando II e Glória em 03 de Abril de 1963 a que sobrevivi com a idade de 13 anos, nunca como naquele dia me senti tão consciente de estar “tão próximo do outro lado do muro" e não regressar daquele inferno para onde fui enviado “sem jeito nem prosa”, para “defender uma pátria que nos foi madrasta”.
Ao longo dos 26 meses de comissão, o rebentamento das minas, o disparar das Kalashnikov, os disparos das nossas armas pesadas quando respondíamos aos ataque da FRELIMO, deixaram-me algumas mazelas do foro psicológico, ao ponto de nos primeiros anos após o meu regresso não poder ouvir os foguetes das festas, que ficava altamente perturbado, o que felizmente já passou.
Por outro lado, o som da chegada dos helicópteros à mata para evacuação dos feridos ou mortos em combate, como foi uma cena que vivi com bastante regularidade de cada vez que saía para a picada em colunas de reabastecimento ao longo dos 26 meses, de tal forma que ainda hoje e passados que são cerca de 45 anos do meu regresso daquele conflito colonial de má memória, ainda me sinto bastante emocionado de cada vez que ouço o barulho do sobrevoar de um helicóptero, ao ponto de sentir as lágrimas a escorrerem-me pela face, vindo-me à memória os momentos dramáticos vividos naquele inferno em pleno “Planalto dos Macondes”.
No final da Comissão regressei a Portugal em 6 de Março de 1973, tendo a minha Companhia (Companhia de Caçadores 3309) regressado com quatro baixas e vários feridos, e o nosso Batalhão com 20 baixas na sua totalidade, companheiros que nunca foram esquecidos, dado que são sempre homenageados anualmente nos nossos Encontros Nacionais, assim como em dois livros que editei em sua memória com o título: “Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas” (2012) e num romance autobiográfico a que dei o nome de “Fardados de Lama”, editado em 2015.
     Alhos Vedros, 28 de Fevereiro de 2018
     Carlos Vardasca
Ex-militar da Companhia de Caçadores 3309
Norte de Moçambique. Cabo Delgado (1971-1973)
68 anos. Casado. Tenho duas filhas e três netos.



[1] Capa de oleado, em tons de camuflado.
[2] “Descida dos Paus”. Itinerário muito íngreme, de piso lamacento e escorregadio devido às fortes chuvadas, sendo necessário colocar troncos de árvores para facilitar a passagem das Berliet que integravam
as colunas de reabastecimento entre os Aquartelamentos de Palma, Pundanhar e Nangade.
[3] Frente de Libertação de Moçambique
[4] “Rebenta Minas”. Berliet que seguia sempre na frente das colunas de reabastecimento, reforçada
com sacos de areia para resistir ao impacto do rebentamento de minas anti-carro.
[5] Que rendeu a Companhia de Caçadores 2703 no Aquartelamento de Pundanhar em 02 de Janeiro de 1972.
[6] Registado no Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade.
Décimo oitavo fascículo (Janeiro de 1972) Capítulo II, página 1. Arquivo Histórico Militar de Lisboa.
[7] Arma automática de fabrico russo utilizada pelos guerrilheiros da FRELIMO.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Breve síntese de Encontros e Desencontros. Companhia de Caçadores 3309. Batalhão de Caçadores 3834

 
 
Brazão do Batalhão de Caçadores 3834
 
Do cais de Alcântara, Lisboa, por volta das doze horas do dia 24 de janeiro de 1971 a Companhia de Caçadores 3309 integrada no Batalhão de Caçadores 3834, embarcou no navio Niassa com destino à colónia portuguesa de Moçambique, com escala por Guiné “forçada” (evacuação de homem gravemente ferido), Luanda e Lourenço Marques (hoje Maputo), onde, volvidos vinte e dois dias atracou.
Para a maioria do pessoal, tratava-se de um destino desconhecido, como que um tiro no escuro. Era o tempo de “Angola é nossa” cantava-se a altos brados, enquanto se esqueciam as dezenas de mortos e mutilados.
Foi uma viagem com alguns episódios sórdidos, peripécias rocambolescas e desconcertantes dos quais o mais grave foi o do soldado “Tarzan” que “caiu” ou “atirou-se” borda fora. De imediato alguém lançou a tal boia “luminosa” enquanto o barco fazia a manobra de recuperação do náufrago.
Já ninguém contava com o infeliz, naqueles mares de turbulência e infestado de tubarões. O “maralhal” abeirou-se da borda carregado de curiosidade, embora, já fosse noite. Por pouco não tivemos um naufrágio estupidamente infantil, não fosse o alerta dum altifalante manhoso que berrou para sairmos dali, porque o barco adornava bastante para o mesmo lado e virar-se era uma forte possibilidade. Além do nosso batalhão, iam outras companhias militares.
O náufrago foi resgatado são e salvo perante a estupefação dos “mirones”. Milagre, gritava alguém. Como foi possível? Comentavam outros. Este foi um, de muitos episódios.
O “Niassa” era um paquete “muito jeitoso” para transporte de animais.
Finalmente no dia 25 de fevereiro de 1971 esta C.Caç. 3309 chegou a Nangade, sede operacional e destino último, desmembrada das restantes companhias do Batalhão e agregando-se a outro desconhecido até então. Fomos apelidados de “enteados”.
A Companhia de Caçadores 3309, pisava terra firme no dia 6 de março de 1973, depois de 3 longos anos de angústia, inglória e sofrimento. Foi no auge da nossa adolescência, que nos obrigaram a comer o pão que o diabo amassou. Arrastados para esta guerra como “voluntários à força”, somos agora apelidados “heróis do silêncio”.
Infelizmente quatro dos nossos não nos acompanharam: o Vitor “Didiá”, o Albino Sousa “Serviços Básicos”, o Pedro Augusto “Almada” e o Pereira “Alentejano”. Vidas ceifadas a troco de nada.
Dezassete partiram, já na metrópole. Também estes continuam presentes no nosso pensamento e pesar. Andámos na roda dos 68/69 anos. Pertencemos ao rol dos “Cocuanas Cacimbados” que agora nem olham para as garridas capulanas, nem ouvem os batuques de marrabentas.
Dezoito anos depois, em 09/03/1991, reunimo-nos pela primeira vez na cidade do Porto, na praça do Marquês. Foi no restaurante CAPOEIRA. Eramos 85 ex-militares e respetivos familiares e a organização esteve a cargo de Arteiro, César e Moreira. Chovia que deus a dava torrencialmente, mas nem isso esmoreceu os convivas. Festa molhada, festa abençoada.
Entre lágrimas de saudade e sorrisos, abraços de nostalgia apimentámos o reencontro com muita alegria. Chorar de rir, chorar de sentir.
Em cada Encontro há uma nova história, um novo conto.
Depois foi o deambular pelo País: Paredes de Coura, Ponte de Lima, Póvoa de Varzim/Vila do Conde, Braga, Bragança, Mirandela, Castelo Branco, Fundão, Vila Nova de Gaia, Pateira de Fermentelos, Guia, Pombal …até Vila Viçosa. O maior número de presenças (112), registou-se no XXI encontro no dia 5/3/2011 nas Caldas da Rainha. Tempo frio, mas com boas abertas. Era altura do Carnaval. Fizemos dois em um.
45 anos depois, já estamos no XXVIII Encontro Nacional, escolhendo novamente a bela e laboriosa cidade de S. João da Madeira que tão bem nos acolheu e recebeu, não esquecendo a prestimosa colaboração da Exª. Câmara, na pessoa do Sr. Presidente em colaboração com a Junta de Freguesia pela sua generosidade e lembranças para cada um dos ex-militares.
Este nosso XXVIII Encontro Nacional teve na Organização o camarada Pinto Almeida, filho muito conhecido da terra e conceituado empreiteiro da empresa “Pintal”, que em todos os Encontros se esmera em ser um ativo e generoso colaborador.
 João da Silva Arteiro
10 de Março de 2018

domingo, 11 de março de 2018

XVIII Encontro Nacional dos ex-militares da C. CAÇ. 3309 (Fotos)


 
 
 
 
 
 
45 anos depois do seu regresso (Moçambique 1971-1973). XXVIII Encontro Nacional dos ex-militares da Companhia de Caçadores 3309. S. João da Madeira, 10 de Março de 2018.