sábado, 29 de março de 2008

" O sossego do barbeiro"

(...) Tinha todos os dotes da arte de bem barbear e do esquartejar das fartas cabeleiras, que não resistiam às tórridas temperaturas que sopravam do Índico e se transformavam em carecadas exemplares que diziam pulsar de fresquidão. O Rodrigues (1) de alcunha o "barbeiro", depois de chegar do mato e de descansar o tempo que lhe era permitido, lá ia direitinho ao seu "posto de trabalho" à espera dos fregueses a quem cobrava algumas "quinhentas", que investia sem demora na frescura das 2M (2) que exibia como troféu e dizia ser o lucro possível da sua arte de bem "tosquiar". A "barbearia", na ausência daquele profissional que se encontrava no mato em operações integrado no seu Grupo de Combate, tornava-se um lugar inóspito, por vezes interrompido pelo chapinhar da água que escorria de um bidom meio ferrugento, que transformava aquela "oficina de um barbeiro ausente" num imenso balneário colectivo onde os "guerreiros do império" se livravam das poeiras do tempo e das angústias da guerra. De regresso ao Aquartelamento, logo que podia, sentava-se nos pequenos degraus esculpidos no tronco onde pendurava as ferramentas, e ali esperava pela clientela que não tardava, enquanto vasculhava as notícias do jornal regional que recebia com alguma regularidade e lhe anunciavam notícias da terra (...)
Carlos Vardasca
29 de Março de 2008
Foto: O "Barbeiro", aguarda tranquilo que a freguesia se aproxime do seu atelier de "corte e penteadura" no Aquartelamento de Tartibo. Moçambique 1971
(1) Artur Salgado Rodrigues, Soldado Atirador da Companhia de Caçadores 3309
(2) Marca de cerveja de Moçambique.

É hora do tacho em Nangade

(...) Ao som de pancadas que tilintavam fortes num ferro pendurado no cajueiro, os soldados aproximavam-se em fila indiana da cozinha, respondendo àquele chamamento que indicava que se aproximava a "hora do tacho" em Nangade. Como aquele som era audível nos dois aldeamentos que ladeavam o Aquartelamento, as crianças corriam desordenadamente para junto da cozinha militar na ânsia de também poderem partilhar daquele "manjar", onde aguardavam, sentados de cócoras, até ao final pela sua distribuição pelos militares. Dos caldeirões negros fumegava um odor que nos recordava uma ementa bastas vezes ingerida (que não fosse a escassez de alimentos jamais seria tragada) onde, num acto de malabarista, a solidez do arroz o mantinha colado à marmita e o cachucho meio queimado há muito que adivinhava a sua sorte. Cada soldado, depois de receber o seu quinhão de um cozinheiro mal humorado, sentava-se onde podia; no chão à porta da caserna ou em mesas de madeira meio toscas, construídas com tábuas de barris já sem qualquer proveito, enquanto algumas crianças, sentadas em pontos estratégicos esperavam ansiosamente por qualquer sobra. Os seus olhos, onde o brilho há muito já perdera qualquer reflexo, olhavam-nos vigilantes, sempre atentos a qualquer movimento que lhes devolvesse qualquer esperança, em partilhar o resto do rancho que acabava sempre por sobreviver a um canto da marmita. Quem é que comia tranquilo sabendo à sua frente crianças desnutridas, famintas, que desesperadamente se debatiam com a fome, com os seus olhos a implorar compaixão? A comida do rancho não era farta nem sobre a sua qualidade havia qualquer dúvida; era simplesmente intragável, mas, à falta de melhor, lá se conseguia "empurrar" com a ajuda de um copo de "água de Lisboa" (1) que já vinha caldeada da Manutenção Militar, o que era notório pela sua transparência que deixava ver o fundo do copo. Era raro o militar que não deixava uns restos para saciar o apetite devorador da criança mais próxima (sempre a troco da lavagem da marmita) e era impressionante ver como as suas mãos frágeis, feitas em concha, tentavam levar à boca aqueles escassos bagos de arroz que a muito custo conseguira juntar, misturados com pequenas lasca de peixe que teimosamente se mantinham acomodadas às espinhas, e que serviam de complemento à sua dieta diária, composta (ano após ano) por farinha de mandioca triturada no pilão da família, e por massarocas de milho apanhadas nas machambas um pouco distantes e muito para lá do arame farpado (...)
Carlos Vardasca
29 de Março de 2008

Foto: Eu (de calções e meias até ao joelho) o Arteiro (de calções e camisa camuflados) e outros companheiros do Batalhão de Artilharia 2918, aguardamos na "bicha"a nossa vez para recebermos "arroz com peixe" junto à cozinha no Aquartelamento de Nangade.

terça-feira, 25 de março de 2008

"Não sei se volto desta"


(...) Era de manhã, bastante cedo, pelas 05,00 horas da madrugada que os soldados eram acordados de um sono que fora bastante irrequieto. O Aquartelamento tinha sido atacado nessa noite, a havia que fazer o reconhecimento na área circundante, para depois se partir em direcção à picada ao encontro da coluna de reabastecimento que já partira de Pundanhar com destino a Nangade. No meio da azáfama dos preparativos para a operação, os olhos dos soldados cruzavam-se numa cumplicidade que era partilhada por todos, e que se misturava numa intensa preocupação que se diluía no colectivo da incerteza.

- Vá lá malta, temos que sair cedo antes que os turras cheguem lá primeiro que nós - dizia o Alferes que ia comandar o Grupo de Combate a quem fora incumbida a missão, que foi logo interrompido por um soldado que estava mais próximo:

- Oh meu Alferes, deixe-se de tretas, se calhar eles ao saberem que está prestes a passar uma coluna na picada nem dormiram esta noite, e já lá estão à nossa espera.
Era assim, neste ambiente de incerteza que se vivia diariamente cada vez que se saía para uma operação, com os soldados a deixarem arrumadas todas as suas pertenças nas tendas, como se o pressentimento de um regresso incerto pairasse por cima das suas consciências como a humidade do cacimbo que sobrevoava sobre o capim.
- Epá, estás a deixar isso tão arrumadinho, até parece que é desta que já não voltas ao quartel!
- Sei lá! - disse o "Pragal" (1) - continuando com o seu desassossego:
- A FRELIMO tem feito tantas emboscadas ultimamente, que um gajo já nem sabe se é desta que nos calhada a nós "lerpar que nem um tordo".
Antes de o Pelotão iniciar a marcha e mergulhar naquela mata densa, o "Pragal" ainda voltou à tenda e entregou ao soldado que estava mais próximo um pequeno impresso amarelado, dizendo-lhe muito baixinho:
- Olha! - mais logo, se o helicóptero vier, mete-me este "bate estradas" (2) no saco do correio, pois "eu não sei se volto desta".
Era nesta constante incerteza que se vivia na frente de batalha, com os soldados a questionarem diariamente a sua sobrevivência, que estava sempre dependente de factores externos à sua própria vontade e em resultado da lógica da guerra.
No dia seguinte, de regresso ao quartel, todas as angústias eram afogadas nas "Laurentinas" (3) que se emborcavam para saciar a sede, enquanto outro Grupo de Combate acabava de sair para nova patrulha, como se fossem "anjos protectores" de quem agora fazia por descansar um pouco, ainda envolto pelo pó que tornava irreconhecível o rosto tisnado pelo calor e pela terra da cor do barro que se soltava da picada (...)
Carlos Vardasca
25 de Março de 2008
Foto: Soldados da C.CAÇ. 3309 numa patrulha na picada entre Tartibo e Pundanhar. Moçambique, 1971
(1) Alcunha do 1º Cabo Atirador Manuel das Dores Ricardo da C.CAÇ. 3309 (falecido na Vila do Pragal em 2005)
(2) Aerograma
(3) Marca de cerveja de Moçambique

domingo, 23 de março de 2008

"A minha África"


(...) Quando se partilha de uma certa tranquilidade, é sempre o momento propício para rever alguns filmes que nos fascinaram pela sua história, pela beleza paisagística, e pelo sopro dos ventos de África que nos trazem o cheiro do capim queimado, ao som da excelente música escrita por John Barry. "África minha" é uma dessas belezas da Sétima Arte que preenche de uma certa nostalgia quem por lá andou, embora noutras circunstâncias que eram de facto bem diferentes. Quando recordo África não é pelas mesmas razões da história desse belíssimo filme, mas por outras que foram moldando o meu tempo e o modo como hoje ainda as vivo. Ao olhar África a esta distância, recordo-me do momento em que embarquei no Niassa e os meus olhos pareciam fotografar o seu pôr-do-sol; as queimadas que diziam iluminar a noite na mata densa invadida pela escuridão, assim como o choro angustiante das hienas que rondavam os aquartelamentos. Quando me recordo de África, assalta-me a memória as cumplicidades partilhadas com os meus companheiros no fundo do porão do navio que nos transportou para aquele inferno; os momentos gélidos quando a Companhia de Caçadores 3309 mergulhou no Índico para fazer a sua aproximação às praias de Palma e os momentos dramáticos vividos nas margens do rio Rovuma. África obriga-me a recordar imagens de rara beleza mas que não as podíamos beber com a contemplação que exigia o momento, pois caminhávamos exaustos pelo capim com outras preocupações que nos prendiam a respiração e nos estrangulavam a alma, não fosse o sopro de uma bala nos "rasgar aquele quadro pintado sobre a copa dos embondeiros e das acácias" e nos fazer tombar na berma da picada. Ainda hoje África me recorda o rufar dos tambores por cada companheiro tombado sem jeito nem glória, ao serviço de "uma pátria que os pariu e os enjeitou" para endeusar falsos heróis que bebiam na mesma gamela dos fazendeiros e se espojavam nos lucro dos cafezais. A África que me recordo traz-me à memória as longas noites ensurdecedoras dos batuques, iluminadas pelas fogueiras que ajudavam a clarear o Planalto dos Macondes, e que ajudavam a queimar as memórias de tantas infâncias agora distantes, enquanto o orvalho da manhã transformava em gotas o cacimbo que teimosamente escorria sobre o capim. África recorda-me o imponente pôr-do-sol que se escondia para lá das montanhas da Tanzânia, e que no seu recolhimento deixou escurecer a juventude de milhares de jovens que nele se aqueciam, para tombarem sem jeito nem prosa "ao serviço de uma pátria que não os mereceu e deles se serviu em troca de nada". Não posso recordar as fascinantes paisagens de África e do seu deslumbrante pôr-do-sol, sem me lembrar das baixas ocorridas em combate por parte do Batalhão de Caçadores 3834:
Companhia de Caçadores 3309 - 4
Companhia de Caçadores 3310 -14
Companhia de Caçadores 3311 - 1
Assim como dos seus feridos em combate, alguns deles com alguma gravidade:
Companhia de Comando e Serviços - 3
Companhia de Caçadores 3309 - 23
Companhia de Caçadores 3310 - 44
Companhia de Caçadores 3311 - 10
A África que eu recordo é tudo isto, mas também os encontros onde nos reunimos anualmente com uma imensa felicidade, onde homenageamos todos aqueles que já não estão connosco e que, "no seu sono eterno" nos fazem ainda recordar os laços de camaradagem que se fortaleciam com o clarear da savana e o troar dos canhões que jamais os farão apagar da nossa memória (...)
Carlos Vardasca
23 de Março de 2008
Foto: Pôr-do-sol em Cabo Delgado. Moçambique 1971

sexta-feira, 21 de março de 2008

"... Sucumbiu à nossa ingratidão e teve um fim inglório"


(...) Não fosse a sua anterior utilidade, aquela caixa não nos despertaria tanta angústia apesar da sua "nova missão". Ali estava ela, inerte, pendurada no tronco da palmeira que servia também de pau de bandeira, sempre pronta a deixar-se esventrar, sempre indiferente a quem nela depositava as suas "lamurias" e outros tantos segredos, para serem lidos por alguém que deles necessitava como da sua própria existência.
Outrora fora um cunhete de munições onde repousaram granadas de morteiro 81mm, mas agora aquela caixa cumpria a missão de fazer de "Marco do Correio" do Aquartelamento de Nova Torres.
Era nela que os soldados da Companhia de Caçadores 3309 ali estacionados depositavam todas as esperanças em clarificar algumas incertezas forjadas pela distância ou diluídas pelas cheias do Rovuma; questionavam a ausência de notícias que começaram a escassear pela distância; tentavam dar algum alento a amores bastas vezes traído pela ausência, ou então jurar e reivindicar fidelidades a quem se prometera na hora da partida.
Aquela caixa, apesar da sua robustez (que talvez impressionasse os frágeis aerogramas nela depositados) era uma fiel confidente dos lamentos e das inquietações de todos quantos ali tentavam sobreviver, dando-lhes a confiança de que as várias confissões e incertezas ali depositadas seriam, lá longe, numa qualquer aldeia de xisto ou no rebuliço da urbanidade, desfeitas ou confirmadas e outras tantas mal resolvidas, algumas delas depois de serem vasculhadas pela PIDE, não fossem elas transportar nas entrelinhas pequenas revoltas ou alguma ingenuidade traduzida pelo descontentamento.
Embora confidente daqueles soldados durante vários meses, aquela pequena caixa agora sem qualquer utilidade, também ela sucumbiu sem nenhum lamento à nossa ingratidão e teve um fim inglório, tal como foi inglória a nossa presença naqueles "subúrbios do céu", deixada para traz quando o Aquartelamento foi abandonado e entregue à voracidade das águas barrentas do rio Rovuma (...)
Carlos Vardasca
21 de Março de 2008
Foto: "Marco do Correio" do Aquartelamento de Nova Torres, na fronteira com a Tanzânia nas margens do rio Rovuma. Moçambique 1971.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Para dormir tinhamos que subir às árvores




(...) Havia muito pouco tempo que a Companhia de Caçadores 3309 tinha chegado a Nova Torres, mas tinha sido impossibilitada de se instalar naquele Aquartelamento de onde já se tinha retirado a Companhia de Artilharia 2745. Ambas as Companhias encontravam-se agora refugiadas na "Posição DAMA", nome de código atribuído e uma pequena elevação a cerca de 600 metros do Aquartelamento de Nova Torres, que se encontrava totalmente alagado pelas cheias e em consequência da junção das águas dos rios Rovuma e Metumbué. Embora ali refugiados, ninguém estava tranquilo, pois as águas continuavam a subir substancialmente, ao ponto de estar também eminente a inundação daquela pequena elevação, sendo urgente encontrar nova posição de emergência pois foi necessário os soldados durante a noite refugiarem-se no cimo das árvores onde passaram a viver durante algumas semanas. Para o efeito saiu um Grupo de Combate em barcos de borracha que, depois de encontrarem um novo local a sul do rio Metumbué, denominaram essa nova pequena elevação de "Posição FLECHA", e aí ficaram instalados provisoriamente todos os efectivos de ambas as Companhias. Apesar de totalmente alagado, do Aquartelamento de Nova Torres ainda sobressaíam ao longe pequenas elevações, onde se refugiavam das inundações alguns animais selvagens uma vez que toda a área circundante estava alagada, sendo visível bastantes crocodilos que vagueavam agora pelas trincheiras inundadas do Aquartelamento.
Foram momentos dramáticos vividos por ambas as Companhias, especialmente pela Companhia de Caçadores 3309 que ali ficou estacionada, dado ter rendido a Companhia de Artilharia 2745 que ao fim de alguns dias se deslocou para Nangade, Aquartelamento situado já no Planalto dos Macondes onde as cheias já não se faziam sentir, "nem o desespero de quem ficou nas áreas inundadas se fazia ouvir" (...)


Carlos Vardasca
19 de Março de 2008

Foto 1: 1º Cabo Apontador de Metralhadora José Gomes Gonçalves e o 1º Cabo Atirador Jaime Pereira Marques da C.CAÇ. 3309, em plena Operação nas proximidades do Aquartelamento de Nova torres.
Foto 2: 1º Cabo Apontador de Metralhadora José Gomes Gonçalves, 1º Cabo Atirador Jaime Pereira Marques e o Soldado Baltazar da Silva Carneiro da Companhia de Caçadores 3309, durante a mesma operação na área inundada próximo do Aquartelamento de Nova Torres.

terça-feira, 18 de março de 2008

"Quem cala consente"

Bartoon por Luis Afonso
Jornal "Público" de 18 de Março de 2008

segunda-feira, 17 de março de 2008

"Temos que ganhar para a bucha"


(...) A última carta que recebi dele, foi quando me mandou uma foto sua para a colocar no livro da história da C.CAÇ. 3309, para ilustrar um pequeno depoimento que se prestou elaborar sobre um dos episódios da "odisseia trágico-marítima" por que passou nas águas do rio Rovuma em 1971.
Hoje mesmo telefonei-lhe para confirmar se recebera a foto que lhe devolvi, e quem me atendeu foi a esposa que, com uma voz que denotava alguma preocupação, me anunciou que a Adega Cooperativa de Sanfins do Douro onde ambos trabalhavam encerrara por má gestão, sendo-lhes anunciado que teriam que ir para o desemprego.
O Carlão (1) e a esposa são mais dois trabalhadores rurais que, a exemplo do que se passa na generalidade do país, vão agora engrossar o grande contingente de desempregados que, depois de uma vida de trabalho, não só não viram o seu esforço compensado como são agora atirados para a "berma da estrada", e sobreviver com o magro salário do Fundo de Desemprego que decerto se "irá perder na profundidade dos seus bolsos".
Como ambos ganhavam naquela Adega Cooperativa apenas o ordenado mínimo nacional, para fazer face às necessidades da sua própria sobrevivência tinham que se socorrer de outros trabalhos suplementares "esgravatando" a terra de outros proprietários, para assim desta forma poderem "ganhar para a bucha".
Nunca se imaginou o Carlão que, depois de ter sido considerado um herói (mas logo tão depressa esquecido) por ter participado no Grupo de Combate que capturou um barco à FRELIMO, numa operação deveras arriscada no rio Rovuma em 25 de Junho de 1971 e, pelo feito ter sido condecorado com a Cruz de Guerra de 4ª Classe, se visse agora na situação ingrata de constatar que essa mesma sociedade que o medalhou o atira agora para o desemprego, numa atitude tão inglória idêntica a tantas outras que empurraram tantos milhares de desempregados para a marginalidade social, e que são o produto das políticas neoliberais que fizeram escola neste país, que se dizia (logo após a queda do Estado Novo) vir a ser mais solidário com os mais fracos mas que cada vez mais os ignora, para ser mais reconhecido e benevolente com os mais abastados (...)

Carlos Vardasca
17 de Março de 2008

Foto1: O Carlão no Aquartelamento de Nangade na companhia do Alferes Gonçalves e do Soldado Dias Meira.
Foto 2: O Carlão nos trabalhos da vindima em Sanfins do Douro.
(1) Mário Augusto da Silva Carlão, Soldado Transmissões de Infantaria da C.CAÇ. 3309

sexta-feira, 14 de março de 2008

"... Na aldeia de Astérix"

(...) A vasta mata foi desbravada para dar lugar a um minúsculo aquartelamento a que se deu o nome de Tartibo. De condições muito rudimentares, cada um desenrascou-se como pode para inventar da natureza as condições ideais para se acomodar e propiciar um sono mais tranquilo.
Dos pequenos troncos que sobraram do derrube das árvores para a construção dos abrigos, surgiram então tão rudimentares camas que nunca se imaginou suportarem tanta intranquilidade.
À noite, e depois de um dia de patrulhamento, desbravando mato à força de catanas para fugir aos trilhos tradicionais e montar emboscadas aos guerrilheiros da FRELIMO, ou regressado de uma coluna sem que o cantil já vertesse qualquer gota de água, quem caísse naquelas camas dormiria com a mesma facilidade, não se apercebendo da sua fragilidade devido ao cansaço que na sua pressa não deixava tempo para despir o camuflado.
Numa das muita vezes que fui ao Tartibo em colunas de reabastecimento, cheguei a dormir numa daquelas camas devido à hospitalidade que me foi reservada pelo Valoura, simples habitante daquela espécie de "aldeia de Astérix", que me cedera a sua cama para nela sonhar com aquele guerreiro gaulês na sua luta incansável contra os invasores de Roma, protagonizados pelos pequenos troncos que facilmente fugiam debaixo de nós a cada movimento por um melhor aconchego.
As camas de ferro contavam-se pelos dedos, e estavam reservadas para quem daquela guerra dizia ter direito a outros confortos.
Costuma-se dizer que "um corpo cansado dorme em qualquer lado" mas para "Astérix e seus guerreiros", diziam bastar uns pequenos troncos e uma placas de cartão para lhes servir de leito, não fosse o farto conforto não os deixar atentos à "invasão romana que a cada momento podia surgir do lado de fora do perímetro defensivo, saída do escuro da mata circundante" (...)
Carlos Vardasca
14 de Março de 2008
Foto: Caserna dos soldados da Companhia de Caçadores 3309 no Aquartelamento de Tartibo.

"...Até parecia que mordia a madeira"


(...) Nunca cheguei a saber onde aprendera a arte da marcenaria. De início, quando chegou ao aquartelamento de Nangade, os seus olhos pareciam que brilhavam cada vez que via um pedaço de madeira que pudesse ser moldado. Quem o queria ver nas horas vagas, era sentado num pequeno banco com o pequeno madeiro entalado entre os joelhos, manuseando as ferramentas até alterar a sua fisionomia, exibindo um tique que lhe era muito característico. A sua língua saía fora dos lábios e ficava entalada entre os dentes, as suas sobrancelhas gesticulavam numa dança que evidenciava alguma fonte de inspiração e, os seus olhos, quase encostados ao punção, como que a indicar-lhe o caminho que devia percorrer no trajecto da arte de bem moldar. O que é certo, é que daqueles pedaços de madeira sem vida surgiam sempre pequenas flores desenhadas em relevo, envoltas por um emaranhado de outros ornamentos que faziam lembrar pequenas peças de arte esculpidas por um mestre entalhador. O Duarte, devido ao seu característico tique que o acompanhava sempre que tentava dar vida àqueles pequenos tarolos, ficou mais conhecido como o "Mordedor de madeira"(1), a quem todos nós lhe chamávamos de uma forma tão afectiva que lhe provocava um ligeiro sorriso pois sabia que da nossa parte longe estava a ideia da mera chacota.
Raro foi o oficial ou Furriel da C.CAÇ. 3309 que não solicitasse os serviços do "Mordedor de madeira", sendo uma das formas de durante algum tempo este ter escapado às incursões na mata, ficando no Aquartelamento embrenhado na moldagem em pequenas mobílias de alguns arabescos, que entrelaçava em cavidades que à força rasgava empunhando com arte os vários punções, que depois de muito esforço e arte davam forma em pequenos enfeites que com muita mestria esculpia na madeira (...)
Carlos Vardasca
14 de Março de 2008
Foto: Depois do rebentamento de uma mina anti-carro na viatura conduzida pelo "Mordedor de madeira", a viatura está a ser preparada para ser rebocada.
Na foto estão o "Mordedor de madeira" com um ligeiro sorriso nos lábios por ter escapado ileso daquela explosão, o João Luís dos Santos Nabais (falecido em 07 de Maio de 2007) de lenço preto ao pescoço junto ao rodado, e o Alfredo Bernardino Pereira (falecido em 1975 ) em pé e de tronco nu, todos da Companhia de Caçadores 3309.
(1) Alcunha do Soldado Condutor Auto Rodas, António Duarte da Silva Pereira.

segunda-feira, 10 de março de 2008

"... O murmúrio dos vários silêncios"


(...) Tinha escurecido, e tudo indicava que iria ser mais uma noite quente. Rodeados pela densa mata, os soldados aconchegavam-se no seu interior ou debaixo das viaturas enfileiradas na picada, e aí presenciavam os vários silêncios emitidos por um estranho desconforto, e pelo recorte das várias silhuetas desenhadas pelas lianas entrelaçadas por entre o vasto arvoredo. A lua emprestava agora alguma claridade, mas sentia-se o seu esforço em penetrar através dos pequenos círculos onde os soldados se atarefavam em abrir as pequenas latas de conserva, débil refeição que a ração de combate nos proporcionava.
Já a noite pairava sobre os dólmens onde se enroscavam "crianças exaustas que pareciam dormir um sono eterno" quando por entre os arbustos alguém se aproximou do local onde tentávamos dormir e perguntou, parecendo falar de dentro de uma concha do mar:
Epá! onde está o enfermeiro a dormir? - está ali uma gaja da população que veio na coluna e está com dores de parto: - só nos faltava mais esta.
Devido ao rebentamento de duas minas anti-carro ao quilómetro 15 entre Pundanhar e Palma, seguido de uma violenta emboscada que provocou duas baixas e três feridos graves entre as nossas tropas, a coluna de reabastecimento teve que interromper o seu percurso e pernoitar na mata, devido ao atraso da chegada dos helicópteros para efectuarem as respectivas evacuações para o hospital de Mueda. Aquela jovem negra fora aconselhada a não prosseguir na coluna e ficar no Aquartelamento de Pundanhar devido ao estado avançado da sua gravidez, tendo recusado, pois era sua intenção ter a criança junto dos seus pais na povoação de Palma.
Os vários silêncios da noite foram interrompidos pelo chorar interrupto daquela criança que acabava de nascer em condições precárias, mas sob a protecção dos soldados e o recorte meio escurecido das Berliets, que também descansavam extenuadas pelo matraquear das balas e pelo cheiro intenso a pólvora, que pareciam ainda vaguear por entre o capim e o cacimbo que penetrava nos camuflados impregnados de terra avermelhada.
A jovem parecia estar feliz, pois os seus olhos reflectiam um brilho intenso que inundava o seu rosto negro, que contrastava com o reflexo muito branco e muito límpido dos seus dentes.
Malta! - quem é que ainda tem água no cantil? - disse o enfermeiro que assistiu ao parto.
Num acto simbólico, fez despejar uma pouca quantidade de água sobre a testa do recém-nascido, ao mesmo tempo que murmurava de forma a que todos os presentes o ouvissem:
"Eu te baptizo, Zungo Berliet Tropa"
Foi assim desta forma um pouco insólita que foi dado nome àquela criança, por ter sido um Zungo (1) que assistiu ao seu parto; por ter nascido em cima de uma Berliet e por ter sido a Tropa a proporcionar aquele nascimento, apesar das condições muito rudimentares em que o mesmo ocorreu.
Apesar da satisfação do soldado enfermeiro por tudo correr sem problemas, este quando se aproximou de mim e antes de se aconchegar no recanto da mata onde iria tentar dormir, ainda desabafou muito baixinho:
Braz! - desculpa-me lá este desabafo: - deus que me perdoe mas se calhar até ajudei a nascer mais um turra que nos irá mais tarde chatear os cornos".
Antes de me enroscar no dólmen e de ter matado algumas formigas de cabeça grande, acastanhada, que já se tinham agarrado ao camuflado, ainda lhe disse:
-Fica tranquilo que quando ele tiver a idade de vir para a mata combater-nos, já nós não estamos cá e, de certeza, pelo caminho que as coisas estão a levar, esta puta de guerra já há muito tem acabado (...)

Carlos Vardasca
10 de Março de 2008

Foto: O Pinheiro e o "Alentejano" (este último falecido em combate no dia 05 de Julho de 1972) aproveitam uma pausa na operação para abrirem uma lata da ração de combate e sentirem o estômago mais aconchegado. Ao fundo ainda se pode ver o Azevedo, todos eles da Companhia de Caçadores 3309.
(1) Branco, em dialecto Macua.




quinta-feira, 6 de março de 2008

"...Regressámos sim... mas alguns ficaram para traz"


(...) Nem todos dormíamos quando as luzes da cidade de Lisboa já salpicavam num emaranhado de outras tantas que nos diziam estar próximo o nosso regresso. O Boieng 707 da Força Aérea saíra da cidade da Beira no dia 05 e, depois de várias horas de voo com escala em Luanda, sobrevoava agora por cima das sete colinas durante uns largos minutos, dado não haver de momento espaço na pista de aterragem, enquanto alguém me acordava dando largas à sua alegria:
- Acorda lá Braz: ao mesmo tempo que soletrava com o seu característico e exagerado bairrismo nortenho:
- Mouro d'um cabrão, então não vês que já estás mesmo às portas das tuas muralhas".
Finalmente o avião lá pousou no Aeroporto da Portela às 01,00 horas do dia 06 de Março de 1973, e a primeira pessoa que vi por casualidade, foi a minha tia Ana, que fazia parte das funcionárias da limpeza que subiam para o avião, enquanto nós nos encaminhava-mos para o autocarro que nos levaria até à gare do aeroporto. Habituado ao calor tórrido de África, fiquei deveras impressionado quando a abracei devido os fartos agasalhos que envergava. A noite estava muito fria, e entre o esfregar intenso das mãos que se escondiam por dentro de uma luvas grossas, lá desabafou por entre os dentes bem serrados, recorrendo-se da sua religiosidade que aprendera com o pároco de S.Pedro de Agostém, por onde escorriam as águas do Tâmega:
- Olha o meu querido sobrinho! Afinal deus quis que voltasses - acabando por comentar:
- A tua mãe Gracinda está ali dentro danadinha por te abraçar.
Transportados para o RAL1, ali fizemos o espólio de todos os nosso utensílios militares, e cada um despediu-se dos seus companheiros para de seguida rumar às sua terras de onde tinham partido há cerca de 26 meses.
Durante as despedidas, vieram-me as lágrimas aos olhos quando a minha mãe me perguntou se tinham morrido alguns companheiros meus, e me apercebi mais uma vez que de facto "já não estávamos ali todos". Interiormente, e refugiando-me no meu silêncio, "fiz uma espécie de chamada às tropas e, por muito que chamasse pelos seus nomes eles nunca mais iriam responder".
Teimosamente insistia:
- Albino Dias de Sousa ...
- António José Pereira ...
- Pedro Manuel Gaspar Augusto ...
- Victor Manuel da Silva ...
Decorria o dia 06 de Março de 1973 e, enquanto tentava dormir um pouco dentro do velho Chevrolet Bel Air do meu cunhado João Almeirão (que me transportava para Alhos Vedros onde passaria a morar), fui-me dando conta que de facto, "e por não terem respondido à chamada", que eu tinha regressado "mas que alguns tinham ficado para traz".
E porque hoje passam precisamente 35 anos do regresso da Companhia de Caçadores 3309 de Moçambique, aqui fica o abraço solidário de quem sobreviveu (...)

Carlos Vardasca
06 de Março de 2008

Foto 1: Boieng da Força Aérea que nos transportou da Beira para Lisboa.
Foto 2: RAL 1, onde efectuámos o espólio militar.




quarta-feira, 5 de março de 2008

"...Nem os filmes viamos até ao fim"


(...) De quando em vez, e quando às chefias militares bem instaladas em Nampula lhes dava na real gana, lá vinham no helicóptero do correio umas bobinas com as maravilhas de "Sétima Arte", para nos retirarem alguns momentos ao desconsolo do isolamento. Os filmes eram projectados na parede de uma escola onde, e para o efeito, foi pintado eufemisticamente um ecran com a inscrição "Cine Nangade", que nos remetia (salvo as devidas dimensões) para a Avenida da Liberdade e o seu rodopio de néons que nos anunciavam bastas emoções, levadas à cena por um qualquer projeccionista de serviço. As populações dos aldeamentos Macua e Maconde que ladeavam o Aquartelamento também assistiam à sua projecção, mas raramente conseguiamos ver os filmes até ao fim. Na maioria das vezes, as fitas "enlatadas" traziam-nos aquelas "coboiadas" de raciocínio fácil onde o "rapaz" era o bom, e os índios expulsos selváticamente dos seus territórios e chacinados pela fúria colonizadora, apresentados sempre como os maus da fita. Era mesmo na altura, e quando as cenas nos ofuscavam fazendo esquecer o silêncio da noite pouco tranquilizador, que os céus se iluminavam com o lançamento de very-lights (cada um a sinalizar o local dos dois aldeamentos) informando a FRELIMO que do outro planalto se preparava para atacar o aquartelamento, que este se situava entre aqueles dois fachos luminosos. Momentos antes, e sem que os militares dessem pelo facto, já os elementos da população (na sua maioria miúdos e que pareciam estar avisados) se tinham ausentado à pressa daquela "sala de espectáculos" que não era à prova do cacimbo, para depois o Aquartelamento ser flagelado com alguma intensidade com disparos de morteiro 82mm e Canhão sem Recuo, cujas granadas caíam com alguma precisão no seu perímetro defensivo devido às coordenadas previamente anunciadas por aqueles objectos luminosos. Lembro-me que dos dois ataques (entre outros) mais intensos que Nangade sofreu enquanto a C.CAÇ. 3309 ali esteve estacionada, estavam a ser projectados nesses dias os filmes "D. Camilo na Rússia" com Fernandel (12 de Junho de 1971) e "O Príncipe Ladrão" com Tony Curtis e Piper Laurie (18 de Junho de 1971), e até parecia que a FRELIMO naqueles dias pretendia tomar de assalto o aquartelamento, dado os efectivos envolvidos naquelas duas operações, a intensidade e a duração do ataque que foram deveras perturbadores.
Ambas as projecções foram interrompidas no "melhor da fita", com os soldados a fugirem por todos os cantos e a refugiarem-se nos abrigos por entre laivos de patriotismo balofo:
- Cabrões dos turras pareçe que andam assanhados que nem os filmes nos deixam ver descansados (...)
Carlos Vardasca
05 de Março de 2008
Fotos: No Cine Nangade, na companhia do Soldado da C.CAÇ. 3309 Rangi Calá (de origem indiana).